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O BISCOITO MOLHADO
Edição 5065 Data: 12 de
março de 2015
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MINIDICIONÁRIO AUTOBIOGRÁFICO XIX
GATOS – Não foram só os cachorros que povoaram a nossa casa,
os gatos também, mas em número bem menor, na verdade, foram três, todos machos.
Nosso primeiro gato foi o Chiminho, não
sei o porquê desse nome, se foi adotado pela minha mãe ou se a Dona Iolanda, moradora
do apt. 102, que tinha uma gataria em casa, o doou.
Chiminho era extremamente pacífico,
incapaz de nos mostrar as garras e isso o fez sofrer muito nas minhas mãos, não
por que eu fosse mau com os animais, nunca fui, mas, com 5 ou 6 anos de idade,
exagerava nos meus carinhos. Só faltou eu transformar o Chiminho no meu
travesseiro.
Uma manhã, meu pai veio com as garrafas
de leite e com uma má notícia: Chiminho estava morto no corredor do prédio que conduzia
à portaria e terminava na cerca do nosso quintal. Ele imaginou que o nosso
bichano recebera uma pancada de algum veículo e caminhou até morrer.
Ficamos alguns anos só com o Big e
Veludo em casa até que surgiu um gato, o Fluminense, em 1960.
Meu irmão Claudio havia trazido um
filhotinho para casa, meu pai viu e ordenou, com brados homéricos, que ele
tratasse de pôr aquilo onde o achara.
No dia seguinte, minha mãe me levou com
ela para visitar nossos parentes que residiam na Rua José Bonifácio, na altura
do que seria, 30 anos depois, o Norte Shopping – meu hipocondríaco tio previa
que o lugar seria ocupado por um hospital. Fomos a pé, era uma boa caminhada.
Na volta, o meu irmão Claudio informou que pegara de volta, no terreno baldio,
o filhotinho e o colocara num caixote pequeno. Minha mãe esbravejou com ele,
disse-lhe que não queria saber de bicho, que o colocasse onde o apanhara.
Quando ela viu aquele minúsculo bichano, recém-nascido, de orelhas e olhos
fechados, o seu amor pelos animais a transformou completamente. O meu pai, por
outro lado, concordou, dizendo que ele, sem a mãe para amamentar, morreria
logo.
Para que o gatinho sobrevivesse, a
minha mãe passou a alimentá-lo com leite misturado em água através de um conta-gotas.
Assim, ele chegou aos alimentos mais sólidos e vingou. Recebeu o nome de
Fluminense, o clube de coração que quase todo o mundo lá em casa.
Parecia que o Chiminho reencarnara para
se vingar dos carinhos exagerados que recebeu e tanto o machucou: Fluminense
era irascível, só aceitava cafunés daquela que o aleitara. Eu e Claudio tivemos
a primeira prova do seu mau gênio quando nós, simulando uma briga, no saguão do
primeiro andar do prédio, fomos atacados por ele. Aquilo era maneira de um gato
separar uma briga entre irmãos – simulada, repito? Arranhou-nos de tirar
sangue.
Mesmo as brincadeiras do Fluminense
eram estúpidas. Escondia-se felinamente nos tufos de capim do corredor de
entrada do prédio, dividido longitudinalmente de concreto e de terra, e atacava
as pernas do Luiz Alberto – garoto, como
nós, que morava no 202 – quando por ali passava. “Dona Vivi, Dona Vivi, o
Fluminense...” - buscava o socorro da minha mãe sempre que vislumbrava um corpo
de pelo preto de branco à espreita no meio do verde do capim.
Quando nos mudamos da Rua Cachambi para
a São Gabriel, nos últimos meses de 1961, não houve problemas com ele, ao
contrário do nosso cachorro Big. Fluminense logo se enturmou na nova casa, onde,
aliás, encontrou um ambiente melhor para as suas escapadas atrás das fêmeas no
cio e para as suas brigas, pois agora a rua de trânsito pesado, a Rua Cachambi,
ficava bem mais distante.
Desse período, recordo-me que pisei
inadvertidamente no seu prato com leite, que se espatifou sob os meus pés,
cortando-me. No SAMDU - somente no ano seguinte, 1963, seria inaugurado o
Hospital Salgado Filho - recebi alguns pontos no corte e relutei em tomar o
soro antitetânico, porque era alérgico. Mas voltemos ao Fluminense, que é o
protagonista dessa história.
Quando nos mudamos para a Rua Chaves
Pinheiro, vieram os problemas com ele. Não quis saber de política de boa
vizinhança, mal chegou e se atracou com um gato. Os dois rolaram para baixo de
um carro que estava estacionado e o meu irmão Claudio, tentando separar a luta
com um comprido bambu de pegar pipa, cutucou, sem querer, o nosso gato. Logo
depois, o Fluminense sumiu. Minha mãe ficou abalada, ele, que sempre retornava
para casa, depois de cair na esbórnia, desaparecera. E assim, passou uma
semana, duas semanas e nada. Depois de 17 dias, Dona Gildete, vizinha da casa
nº 18 da vila de onde nos mudamos, comunicou à minha mãe que vira um gato
parecido com o Fluminense. Ela se bateu para lá e, horas depois, retornava com
o Fluminense nos braços embrulhado num lençol. Estava irreconhecível:
esquelético, sem brilho nos olhos e no pelo.
Em poucos dias, a minha mãe colocava o
Fluminense de novo na primeira divisão; ficou com o mesmo vigor de antes do seu
desaparecimento. Voltou a mesma têmpera irascível e partiu para as brigas. Numa
delas, seu adversário estava hidrófobo e lá se foi a minha mãe tomar a vacina.
Esses contratempos não esmoreciam o
amor da minha mãe pelos animais e ela adotou outro gato, trazido filhote também
pelo Claudio. Era de cor ruça e, suspeitávamos, míope; antítese do Fluminense,
tão tranquilo que lhe demos o nome de Peçanha. Explico: havia um quadro de
programa humorístico na TV cujo bordão, dito pela atriz Consuelo Leandro era:
“Aceita um croquete, Seu Jacinto”, em que o personagem Peçanha, o único que não
se envolvia nas discussões de um grupo que terminavam em briga, levava a culpa
de tudo.
Fluminense não o hostilizou, respeitava
a minha mãe. Na semana em que o Silveira desapareceu, a trégua acabou: os dois
se atracaram e, para surpresa geral, o Fluminense perdeu a briga. Minha mãe
suspeitava que algum morador da vila enfiara o Silveira no porta-malas do carro
e sumiu com ele. Soube, depois, que o
Tatu, morador de um cortiço da Rua Americana, baixo e atarracado, que ganhara
essa alcunha por beber copos e mais copos de “Tatuzinho”, era comedor de gatos.
Minha mãe foi até o barraco dele e o advertiu, mesmo não tendo certeza de nada.
Mas o Fluminense envelhecia; perdeu a
agilidade dos velhos tempos, a derrota para o Peçanha já fora um sintoma, ele não
era, também, tão assíduo das farras.
Talvez porque o considerasse frágil para lutar com os gatos de rua, a
minha mãe resolveu fechá-lo em casa. O máximo que lhe permitia era tomar banho
de sol, sob a sua vigilância, na frente da nossa casa na Chaves Pinheiro, que
ele assumiu como território seu, hostilizando o Veludo e a Manon caso se
aproximassem.
Quando houve uma festa de aniversário,
com presença de parentes e vizinhos da rua Chaves Pinheiro, o Fluminense já
vivia enclausurado, dormindo sobre os móveis. Nessa ocasião, um dos meus primos
estourou uma garrafa de champanhe desastradamente; a rolha foi projetada sobre
uma convidada, enquanto o Fluminense irritado com a estampido e pelo líquido
borrifado em cima dele partiu, quase voou, em direção ao meu primo, sendo
impedido pelo Claudio no meio do caminho.
Foi, podemos dizer, a última façanha do
Fluminense dos velhos tempos. Envelhecido, a presença do veterinário passou a
ser constante lá em casa.
Com 10 anos de idade, estava mal de
saúde. Na última visita do veterinário, ele lhe aplicou uma injeção de
Benzetacil e, segundo a minha mãe, o matou com a medicação errada. Fluminense
estrebuchou nos braços do Claudio e, quando a sua língua enrolou, e meu irmão
fez menção de puxá-la, minha mãe o deteve; não havia mais nada a fazer.
Meu irmão chorou, mas isso é segredo.
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