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quinta-feira, 19 de março de 2015

2815 - Felideano Dicionário Biográfico


 

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O BISCOITO MOLHADO

Edição 5065                                   Data:  12 de março de 2015

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MINIDICIONÁRIO AUTOBIOGRÁFICO XIX

 

GATOS – Não foram só os cachorros que povoaram a nossa casa, os gatos também, mas em número bem menor, na verdade, foram três, todos machos.

Nosso primeiro gato foi o Chiminho, não sei o porquê desse nome, se foi adotado pela minha mãe ou se a Dona Iolanda, moradora do apt. 102, que tinha uma gataria em casa, o doou.

Chiminho era extremamente pacífico, incapaz de nos mostrar as garras e isso o fez sofrer muito nas minhas mãos, não por que eu fosse mau com os animais, nunca fui, mas, com 5 ou 6 anos de idade, exagerava nos meus carinhos. Só faltou eu transformar o Chiminho no meu travesseiro.

Uma manhã, meu pai veio com as garrafas de leite e com uma má notícia: Chiminho estava morto no corredor do prédio que conduzia à portaria e terminava na cerca do nosso quintal. Ele imaginou que o nosso bichano recebera uma pancada de algum veículo e caminhou até morrer.

Ficamos alguns anos só com o Big e Veludo em casa até que surgiu um gato, o Fluminense, em 1960.

Meu irmão Claudio havia trazido um filhotinho para casa, meu pai viu e ordenou, com brados homéricos, que ele tratasse de pôr aquilo onde o achara.

No dia seguinte, minha mãe me levou com ela para visitar nossos parentes que residiam na Rua José Bonifácio, na altura do que seria, 30 anos depois, o Norte Shopping – meu hipocondríaco tio previa que o lugar seria ocupado por um hospital. Fomos a pé, era uma boa caminhada. Na volta, o meu irmão Claudio informou que pegara de volta, no terreno baldio, o filhotinho e o colocara num caixote pequeno. Minha mãe esbravejou com ele, disse-lhe que não queria saber de bicho, que o colocasse onde o apanhara. Quando ela viu aquele minúsculo bichano, recém-nascido, de orelhas e olhos fechados, o seu amor pelos animais a transformou completamente. O meu pai, por outro lado, concordou, dizendo que ele, sem a mãe para amamentar, morreria logo.

Para que o gatinho sobrevivesse, a minha mãe passou a alimentá-lo com leite misturado em água através de um conta-gotas. Assim, ele chegou aos alimentos mais sólidos e vingou. Recebeu o nome de Fluminense, o clube de coração que quase todo o mundo lá em casa.

Parecia que o Chiminho reencarnara para se vingar dos carinhos exagerados que recebeu e tanto o machucou: Fluminense era irascível, só aceitava cafunés daquela que o aleitara. Eu e Claudio tivemos a primeira prova do seu mau gênio quando nós, simulando uma briga, no saguão do primeiro andar do prédio, fomos atacados por ele. Aquilo era maneira de um gato separar uma briga entre irmãos – simulada, repito? Arranhou-nos de tirar sangue.

Mesmo as brincadeiras do Fluminense eram estúpidas. Escondia-se felinamente nos tufos de capim do corredor de entrada do prédio, dividido longitudinalmente de concreto e de terra, e atacava as pernas do Luiz Alberto –  garoto, como nós, que morava no 202 – quando por ali passava. “Dona Vivi, Dona Vivi, o Fluminense...” - buscava o socorro da minha mãe sempre que vislumbrava um corpo de pelo preto de branco à espreita no meio do verde do capim.

Quando nos mudamos da Rua Cachambi para a São Gabriel, nos últimos meses de 1961, não houve problemas com ele, ao contrário do nosso cachorro Big. Fluminense logo se enturmou na nova casa, onde, aliás, encontrou um ambiente melhor para as suas escapadas atrás das fêmeas no cio e para as suas brigas, pois agora a rua de trânsito pesado, a Rua Cachambi, ficava bem mais distante. 

Desse período, recordo-me que pisei inadvertidamente no seu prato com leite, que se espatifou sob os meus pés, cortando-me. No SAMDU - somente no ano seguinte, 1963, seria inaugurado o Hospital Salgado Filho - recebi alguns pontos no corte e relutei em tomar o soro antitetânico, porque era alérgico. Mas voltemos ao Fluminense, que é o protagonista dessa história.

Quando nos mudamos para a Rua Chaves Pinheiro, vieram os problemas com ele. Não quis saber de política de boa vizinhança, mal chegou e se atracou com um gato. Os dois rolaram para baixo de um carro que estava estacionado e o meu irmão Claudio, tentando separar a luta com um comprido bambu de pegar pipa, cutucou, sem querer, o nosso gato. Logo depois, o Fluminense sumiu. Minha mãe ficou abalada, ele, que sempre retornava para casa, depois de cair na esbórnia, desaparecera. E assim, passou uma semana, duas semanas e nada. Depois de 17 dias, Dona Gildete, vizinha da casa nº 18 da vila de onde nos mudamos, comunicou à minha mãe que vira um gato parecido com o Fluminense. Ela se bateu para lá e, horas depois, retornava com o Fluminense nos braços embrulhado num lençol. Estava irreconhecível: esquelético, sem brilho nos olhos e no pelo.

Em poucos dias, a minha mãe colocava o Fluminense de novo na primeira divisão; ficou com o mesmo vigor de antes do seu desaparecimento. Voltou a mesma têmpera irascível e partiu para as brigas. Numa delas, seu adversário estava hidrófobo e lá se foi a minha mãe tomar a vacina.

Esses contratempos não esmoreciam o amor da minha mãe pelos animais e ela adotou outro gato, trazido filhote também pelo Claudio. Era de cor ruça e, suspeitávamos, míope; antítese do Fluminense, tão tranquilo que lhe demos o nome de Peçanha. Explico: havia um quadro de programa humorístico na TV cujo bordão, dito pela atriz Consuelo Leandro era: “Aceita um croquete, Seu Jacinto”, em que o personagem Peçanha, o único que não se envolvia nas discussões de um grupo que terminavam em briga, levava a culpa de tudo.

Fluminense não o hostilizou, respeitava a minha mãe. Na semana em que o Silveira desapareceu, a trégua acabou: os dois se atracaram e, para surpresa geral, o Fluminense perdeu a briga. Minha mãe suspeitava que algum morador da vila enfiara o Silveira no porta-malas do carro e  sumiu com ele. Soube, depois, que o Tatu, morador de um cortiço da Rua Americana, baixo e atarracado, que ganhara essa alcunha por beber copos e mais copos de “Tatuzinho”, era comedor de gatos. Minha mãe foi até o barraco dele e o advertiu, mesmo não tendo certeza de nada.

Mas o Fluminense envelhecia; perdeu a agilidade dos velhos tempos, a derrota para o Peçanha já fora um sintoma, ele não era, também, tão assíduo das farras.  Talvez porque o considerasse frágil para lutar com os gatos de rua, a minha mãe resolveu fechá-lo em casa. O máximo que lhe permitia era tomar banho de sol, sob a sua vigilância, na frente da nossa casa na Chaves Pinheiro, que ele assumiu como território seu, hostilizando o Veludo e a Manon caso se aproximassem.

Quando houve uma festa de aniversário, com presença de parentes e vizinhos da rua Chaves Pinheiro, o Fluminense já vivia enclausurado, dormindo sobre os móveis. Nessa ocasião, um dos meus primos estourou uma garrafa de champanhe desastradamente; a rolha foi projetada sobre uma convidada, enquanto o Fluminense irritado com a estampido e pelo líquido borrifado em cima dele partiu, quase voou, em direção ao meu primo, sendo impedido pelo Claudio no meio do caminho.

Foi, podemos dizer, a última façanha do Fluminense dos velhos tempos. Envelhecido, a presença do veterinário passou a ser constante lá em casa.

Com 10 anos de idade, estava mal de saúde. Na última visita do veterinário, ele lhe aplicou uma injeção de Benzetacil e, segundo a minha mãe, o matou com a medicação errada. Fluminense estrebuchou nos braços do Claudio e, quando a sua língua enrolou, e meu irmão fez menção de puxá-la, minha mãe o deteve; não havia mais nada a fazer.

Meu irmão chorou, mas isso é segredo.

 

 

 

 

 

 

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