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segunda-feira, 9 de março de 2015

2803 - Endividado Dicionário Biográfico


 

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O BISCOITO MOLHADO

Edição 5053                 Data:  22 de fevereiro de 2015

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MINIDICIONÁRIO AUTOBIOGRÁFICO

PARTE XIV

 

DÍVIDA – Foi em 2001, um professor da Fundação Getúlio Vargas, com curso na Alemanha, falou para nós, em determinado momento da aula, sobre a dívida externa brasileira. Disse que, certa vez, conversando com uma amiga alemã sobre este tema, afirmou-lhe que a nossa dívida não deveria ser paga porque foi contraída sem a participação do povo brasileiro. Não pôde – segundo ele – apresentar-lhe mais argumentos porque ela, para a sua surpresa, reagiu com extrema contrariedade, garantindo que, caso ele prosseguisse com aquelas ideias, ela se retiraria.

Tempos depois, lendo um texto no jornal O Globo, entendi a reação da amiga do nosso professor. No idioma da Alemanha, a raiz das palavras dívida e culpa é a mesma: Schuld significa culpa e Schulden, dívida. Explica o economista alemão Tobias Hentze, do Instituto de Pesquisas Econômicas de Colônia, no referido texto, que, no inconsciente alemão, ficar endividado tem o sentido de algo tão ruim que é passível de penitência.

Bem, entre a Alemanha e mim existe não só um oceano. O meu bisavô materno casou com uma alemã, na Paraíba, mas ela não durou muito, embora lhe desse seis filhos; do seu segundo casamento veio uma segunda ninhada (ele parecia Bach, maritalmente falando), de onde despontou o meu avô como primogênito. Não possuo, portanto, ascendência alemã; contudo, sou como o povo desse país, no que diz respeito a dívidas e também à poupança. Aliás, não pincei desse texto a alusão à poupança, vamos a ela.

“Os alemães começaram a poupar com a Soziale Marktwirtschaft (Economia de Mercado Social) introduzida no país arrasado pela Segunda Grande Guerra; e se apaixonaram pela prática. Em julho passado (2014), pesquisa da Associação dos Bancos Alemães indicou que 35% dos alemães, entre 18 e 59 anos, têm o hábito de guardar até 100 euros por mês e 25% se esforçam para poupar até 200 euros. O motivo? Nada de construir patrimônio ou fazer compras exorbitantes: 53% pensam em uma emergência – enquanto apenas 1% dos entrevistados contou que poupavam para viajar.”

A emergência fica sobre as nossas cabeças como a Espada de Dâmocles; se não tivermos dinheiro guardado e ela bater à nossa porta, teremos de recorrer aos empréstimos.

Não vivi com a minha família numa terra revirada pela guerra, mas senti, sem passar fome, o quanto era necessário o dinheiro. Assim, as moedas que me chegavam às mãos, desde garoto, eram, em maior número, entocadas. Durante muitos anos, carreguei o apelido de Tio Patinhas entre os mais íntimos.

Quando calculei que o dinheiro poupado e investido me livrariam do constrangimento de ter de pedir dinheiro emprestado, o escorpião saiu do meu bolso, o que não significa que eu me tornara perdulário; ainda me tachavam  de Tio Patinhas e eu reagia como antes: “Não sou pão-duro, sou controlado.”

Para demonstrar o meu temperamento alemão quanto à dívida, vale registrar um fato ocorrido em meados da década de 80. Eu costumava levar as minhas duas sobrinhas, Verônica e Luciana, para passearem na pracinha de Del Castilho. Algumas vezes, passando por um posto de gasolina, eu comprava duas garrafas de refrigerante para elas beberem. Um dia, as duas se apressaram alegremente em direção à geladeira do posto em busca da bebida. Enfiei a mão no bolso e lhes disse que não seria possível, pois me faltavam 50 centavos. O frentista, atento a essa cena, afirmou que não haveria problemas, que eu ficaria devendo os 50 centavos e, prontamente, serviu as meninas.

Na noite seguinte, não houve passeio com elas, ainda assim, fui até o posto de gasolina e lhe apresentei uma moeda.

-O que é isso? - indagou.

-A quantia que eu lhe devo.

-Meteu a moeda no bolso olhando-me de cara amarrada.

Somente horas depois, entendi aquela reação; ele não queria estragar a alegria das crianças por causa de 50 centavos, era a sua contribuição para a festa das duas e eu, pagando-lhe, estraguei tudo.

 

OVO - Sempre gostei de ovo. Concordava plenamente com o Sérgio Porto quando ele declarava que qualquer comida era gostosa com um ovo estrelado por cima. Podia estar no meu prato arroz e feijão, grudados pela farinha, como argamassa, como já escrevi alhures mais tripa (dobradinha), que bastava eu colocar um ovo estrelado por cima – isso antes de eu ler o Sérgio Porto – que a comida se tornava apetitosa.

Eu não ficava limitado apenas ao ovo frito, também o comia cozido, o que, para a maioria, fica muito aquém, em sabor.

Meu pai, cultivador das piadas sarcásticas, logo me apelidou de “Papa-Ovos”.

Então, o ovo caiu em desgraça nas páginas médicas: era uma das principais causas de enfartes devido ao seu elevado teor de colesterol.

Confrontei, por conseguinte, o humorista Stanislaw Ponte Preta, o Sérgio Porto, com o jogador de futebol Brito, que veio a ser campeão do mundo em 1970.

Sérgio Porto faleceu, se não me engano, no quinto enfarte. E o Brito?... Ah, sim, tenho antes de explicar o porquê de o futebolista entrar neste texto, confrontado com o escritor que partiu tão cedo (45 anos) no auge da sua criatividade.

Brito foi considerado, por uma equipe médica, o jogador mais saudável da Copa de 70; derrotou alemães, ingleses, franceses, enfim, os jogadores de países que, segundo o Nélson Rodrigues, têm saúde de vaca premiada. Entrevistado, ele revelou a sua receita: o café da manhã. O mesmo consiste em uma garrafa de Caracu, quatro ovos com casca, mel e canela batidos no liquidificador. Quando chegou à seleção brasileira, o médico Lídio Toledo, lhe disse que os ovos faziam mal, ele não deu ouvido ao Galeno e seguiu adiante.

Há pouco tempo, estive com um empresário da navegação marítima e, ao saber que era morador antigo da Ilha do Governador, indaguei-lhe se conhecia o Brito do escrete, agora com 73 anos de idade.

-Está vendendo saúde. - respondeu-me.

Volto ao Sérgio Porto, ele, como escreveu, consumia ovo frito, e os malefícios à saúde estavam, certamente, na gordurada necessária para a fritura e não nele, ovo, que viria a ser reabilitado pelas pesquisas médicas.

Mesmo antes dessa reabilitação, eu continuava justificando o apelido que o meu pai me dera: Papa-Ovos.

 

 

 

  

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