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quarta-feira, 25 de março de 2015

2819 - Barateante Dicionário Biográfico


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O BISCOITO MOLHADO

Edição 5069                                Data:  21 de março de 2015

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MINIDICIONÁRIO AUTOBIOGRÁFICO

PARTE XXI

 

BARATA – No casarão da minha avó, construído no início do século XX, eu me deparei com baratas cascudas. Eu sofria com elas o terror que, poucos anos depois, me causariam os vampiros das telas de cinema. Na casa da sua irmã, de onde, reza a lenda dentro da família, o Ary Barroso transmitiu uma partida de futebol, porque a direção do Vasco proibiu a sua entrada no estádio de São Januário, também havia cascudonas. O meu pai, sobrinho dela, contava que, na festa do casamento dessa minha tia-avó, uma barata posou na parte de cima do seu vestido. Quando descobriram que não se tratava de um broche, foi um Deus nos acuda; tropeçaram no tripé para câmara fotográfica do Ibrahim Sued, na época, um simples fotógrafo.

-Nascimento, uma velha cega quase quebrou a minha câmara. - queixou-se ao meu avô, colega dele de jornal.

Como fui carregado pela minha mãe à casa dessa tia-avó poucas vezes e, principalmente, nunca dormi lá, não houve problemas para mim, mas no casarão da vovó... Eu tinha de dormir lá. Ela enviuvou muito cedo, nem conheci meu avô, que faleceu em 1946; por isso, para que não ficasse sozinha, a minha  mãe escalava ora a mim, ora a minha irmã, para lhe fazer companhia quando estávamos em férias escolares.

Havia lá duas salas: uma, na altura da metade da casa, a de jantar, e a outra, com janelas que se abriam para a Rua General Padilha, era a de lazer, onde ficavam a televisão, poltronas e sofás. Entre as duas salas estavam os quartos. Um corredor estreito, onde se achava uma estante repleta de livros, ia de uma sala a outra; em seguida, vinha a cozinha e, depois, o banheiro que era pequeno, cabia nele apenas a privada e a pia para lavar o rosto. A casinha, de tamanho dos apartamentos de hoje, se localizava no meio do quintal, perto da jaqueira e era lá que se tomava banho.

No corredor e na cozinha, à noite, as baratas cascudas faziam a festa, Atravessá-los, nas horas noturnas, requeria de nós, crianças indefesas, uma coragem dos soldados que desembarcaram na Normandia em 6 de junho de 1944. O que fazer se sentíssemos uma necessidade fisiológica no meio da noite?... Previdente, a minha avó deixava penicos para ela e os convidados. Sempre considerei aqueles vasos de louça, ferro ou do material que fosse, nojentos, mas preferia tapar o nariz do que sentir o meu corpo transformado em aeroporto de cascudonas.

Nas casas em que residi, eu me deparei com duas ou três baratas dessa espécie, se tanto; havia, isso sim, as de cor de verniz, que pareciam subdesenvolvidas comparadas em robustez com aquelas. Apareceu, é verdade, na nossa casa na Rua Chaves Pinheiro, uma barata branca que a minha irmã, sempre romântica, disse que estava vestida para se casar.

O pavoroso era que, entre as baratas envernizadas, surgiam algumas periplanetas americanas, as voadoras.

Voltando à Rua Chaves Pinheiro. Certa tarde, acomodado numa poltrona, eu conversava animadamente com um colega de trabalho, quando a minha atenção convergiu para algo que entrou voando pela janela. É um pássaro? É um avião? É o Super-Homem?  Não. É uma barata. O telefone caiu das minhas mãos, corri em busca de abrigo, enquanto o meu interlocutor não tinha a mínima ideia do que acontecia comigo.

A chegada intempestiva dessas voadoras provocava um rebuliço dos diabos, pois elas se desfaziam da virilidade de todos os homens lá de casa, inclusive a do meu pai. Ele, ao tentar matar uma delas, que pousara na parte alta da janela da sala, na Rua Chaves Pinheiro, usou uma força desproporcional, provocada pelo medo e estilhaçou o vidro sem matar a dita cuja. A minha mãe, que sofria e ainda sofre de fobia de lagartixa, era a única, entre nós, a enfrentar as periplanetas americanas até matá-las. Houve, então, uma espécie de pacto entre os meus pais: ele matava as lagartixas e ela, as voadoras; o meu pai ainda contemporizava com argumentos que as lagartixas são úteis aos humanos, que comem os mosquitos, mas não adiantava. O jeito era afastar, com a vassoura, as lagartixas para o lugar mais distante possível e dizer para ela, depois, que foram exterminadas.

Não sou casado, mas já dormi no sofá da sala algumas vezes. Isso acontece quando entra uma barata voando pela janela do meu quarto.

 

PÁSSAROS – Não sou como aquele personagem de “Os Pássaros”, de Alfred Hitchcock, que confundiu melro com corvo. No entanto, não entendo muito de pássaros, embora sempre houvesse gaiolas penduradas nas cozinhas ou nas varandas das casas em que morei.

Os mais remotos, aqueles que se fixaram na minha retentiva, foram um sabiá e uma jandaia. O meu avô se mudou do Cachambi para o Jardim Botânico e deixou as aves silvestres para o filho, no apartamento 103, que ocupamos saindo do 201.

Embora eu não saiba diferenciar o canto do sabiá de algumas aves canoras, digo que ela tem a mais bela voz entre os pássaros. A explicação para essa incongruência eu creio que está no fato de o canto daquele sabiá ter se entranhado tanto nos meus ouvidos infantis, que eu disse que não havia nada mais bonito e fui pelos anos afora repetindo isso mesmo não o ouvindo mais. Sim, embora a minha vida fosse povoada de gaiolas, não apareceu mais uma só sabiá; eram só canários, curiós e coleiros. Da jandaia, só me recordo dos sons estridentes que emitia.

Mortas essas aves que meu pai herdou, ele as substituiu por coleiros, e os batizava com nomes dignos de um livro de autoestima para aves canoras: “Possante”, “Caruso”, Gigli”, “Schippa”.

A preferência da minha mãe recaía sobre os canários. Quando já morávamos na Rua São Gabriel, ela teve um canário belga que tinha o design (se assim podemos dizer) do avião Concorde; e ela, naturalmente, lhe deu esse nome.

O meu irmão Claudio preferia os curiós, e na sua casa, já casado, batizou uma fêmea de Tia Hilda – xará de uma das tias das crônicas do Mauro Rasi; e um macho, de Boticão de Ouro, homenagem a um craque do hipódromo da Gávea que foi sacrificado porque fraturou uma pata em uma corrida domingueira.

Tivemos três gatos, inúmeros cachorros, muitos passarinhos, e, hoje, onde moro, só resta um bicho: uma canária, já idosa, que a minha mãe chama de Maria Chiquinha.

 

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