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terça-feira, 1 de novembro de 2011

2040 - uma goteira de taxi

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O BISCOITO MOLHADO

Edição 3870 Data: 27 de outubro de 2011

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DA DOMINGO DE MAGALHÃES A MODIGLIANI

Entrei no táxi do Flamenguista. A vantagem é que não se fala de futebol. Nesse dia, ele mesmo puxou conversa.

-Olha: uma parte da rua asfaltada e outra com paralelepípedos.

-E isso nós vemos em várias ruas.

-Ah, sim. - concordou comigo.

-Lá, na Praça Manet, as ruas começaram a ser asfaltadas duas semanas antes das eleições pela interferência política do Eider Dantas. Dias antes da votação, parou tudo.

-Não se asfaltou mais. - sorriu o Flamenguista.

-Acredito que era uma espécie de ameaça: se elegessem o Eider Dantas, o asfaltamento prosseguia, se não elegessem, ficaria pela metade.

-O Eider Dantas era, na época, secretário de Obras do prefeito César Maia e concorria à Câmara Legislativa?...

-Isto. - confirmei.

-Mesmo eleito, há umas ruas por lá sem asfalto.

-A Sisley é de paralelepípedos, só cobriram uns 10 metros de asfalto. A Rua Van Gogh está como antes, isto é, sem asfaltamento.

-Antes do Eider Dantas, a Rua Renoir já estava asfaltada.- lembrou.

-Sim; Biliu, como cabo eleitoral, dizia num carro de som que o candidato dele asfaltaria todo bairro de Del Castilho, mas só asfaltou a Rua Renoir.

Muito safado. - criticou o Flamenguista, mas com a expressão de bom humor.

-Nós tivemos um ministro do Transporte que disse que duas coisas pretas que o brasileiro gostava: Pelé e asfalto.

O Flamenguista soltou uma gargalhada.

-Foi tachado de racista, mas se desculpou dizendo-se preto também. Era da cor do azeviche, ou melhor, da cor do asfalto.

Antes de o táxi me deixar na Rua Modigliani, não posso esquecer o Machado, que reaparecia entre os colegas, no ponto do metrô, em Maria da Graça e me saudava com um gesto efusivo de nordestino.

No dia subsequente, a corrida se deu no táxi do Bob Esponja. Machado bisava o dia anterior, ou seja, lá estava.

-Tudo bem?- gritou, enquanto eu abria a porta do carro.

Sentado, protegido pelo cinto de segurança, comentei a fidelidade do Machado com os velhos amigos. A reação do Bob Esponja me surpreenderia; primeiramente, nada entendi,

-Ele é o “góti”.

Quereria falar ghost?...Mas Machado nada tinha de fantasma, pelo contrário...

-Como ele é chamado mesmo?

-Gote de goteira. Ele sempre bate aqui, por isso é chato como uma goteira.

Surpreendi-me, pois julgava que ele fosse querido por todos. Bob Esponja continuou com sua hostilidade.

-Ele vendeu a participação na Metrô Táxi; não tem, então, mais nada que fazer aqui.

-Mas o carro dele não fica alinhado com o de vocês, da cooperativa. - tentei defendê-lo.

-Mas na primeira oportunidade, ele pega passageiros que são nossos.

Pensei no período em que o Machado ficara sem trabalhar, quando um abalroamento colocou seu táxi de pneus para o ar; e eu, no ponto da Rua Domingo de Magalhães, por várias vezes telefonei para a central da cooperativa Metrô Táxi, pedindo um carro.

Bob Esponja, agora, se tornava didático.

-Nós, taxistas, temos os passageiros da maçaneta...

-O que é passageiro da maçaneta?

-É aquele que faz sinal na rua pedindo táxi.

Depois deste esclarecimento, prosseguiu:

-Temos os passageiros dos pontos.

-Como os pontos da Rua Van Gogh, de manhã, e da Rua Domingo de Magalhães, de tarde?

-Sim, mas o nosso ponto mais lucrativo é o do Shopping Nova América.

E passou para o terceiro tipo de passageiro: o do rádio.

-Temos uns 100 mil passageiros de rádio.

O número era tão absurdo que, por momentos, imaginei que o Bob Esponja se referia a toda a cidade do Rio de Janeiro.

-Esses nossos passageiros do rádio, no entanto, são esporádicos; solicitam táxi para ir a uma festa, para almoçar no fim de semana...

-Os de maior fidelidade são os dos pontos? - concluí com uma pergunta retórica.

-E estão querendo acabar com os pontos de táxi. Vai virar bagunça. - previu.

-Na Marinha Mercante, onde trabalho, havia as Conferências de Fretes: a Netumar só podia pegar carga geral nos Estados Unidos; a Aliança, na Europa; a Frota Oceânica, no Extremo Oriente... O Consenso de Washington, de 1989, acabou, praticamente, com as conferências de fretes.

-Modigliani. - anunciou.

Na quarta-feira, vislumbrei o carro do 017 ponteando a fila, e me preparei para a corrida com o Dedão do Arqueiro Inglês. O rádio estava ligado, mas não era o da cooperativa, monótono e irritante para os passageiros. O Dedão do Arqueiro Inglês ouvia música e, mais do que isso, cantava junto:

“Deus me faça brasileiro criador e criatura/

Um documento da raça pela graça da mistura/

Do meu corpo em movimento, as três graças do Brasil/

Têm a cor da formosura três meninas do Brasil.”

-Bom ouvir uma música no rádio para relaxar. - manifestei-me.

-Ah, sim, quando a música é bonita, tem a letra inteligente...

O cantor desta música é marido da Amelinha... Quem é mesmo?- sacrifiquei a minha memória, enquanto ouvia a sua voz e a do Dedão do Arqueiro Inglês cantando as “três graças do Brasil”. Da Amelinha, eu não esquecia porque ela fora aluna de ginástica de um colega meu, da SUNAMAM, e custou a pagar. Ele teve de fazer a cobrança ao cantor das “Três Meninas do Brasil.”

Quando eu constatava que nunca vira o 017 tão relaxado, o nome do cantor me veio à cabeça.

-Quem canta é o Zé Ramalho, não é?

-Parece que é ele mesmo. - disse.

-Hoje, o pessoal quer música com ritmo de bate-estaca, sem letra que o faça pensar.

Surpreendentemente, ele não concordou inteiramente comigo:

-Hora das festanças, escuta-se, então, músicas como o senhor falou agora, mas na hora em que você quer espairecer, uma música como esta, tranquila, letra inteligente, vem a calhar...

-”Deus me faça brasileiro criador e criatura” - cantou.

Vamos chegar à Rua Modigliani e esta canção não termina e fico sem ter mais informações. - preocupei-me.

A canção terminou antes, mas de nada valeu, pois a estação de rádio emendou com outra canção.

-Modigliani. - avisou ele o fim da corrida.

Soube, horas depois, que o cantor era o Moraes Moreira, não o Zé Ramalho.

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