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quinta-feira, 24 de novembro de 2011

2050 - a neve dos viciados

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O BISCOITO MOLHADO

Edição 3880 Data: 20 de novembro de 2011

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DA GRÉCIA PARA A RÚSSIA

Como lembrarão os leitores do Biscoito Molhado, eu e o Elio estávamos na Grécia, em meados da década de 70, no meio dos paparazzi que fotografavam a ex-primeira dama dos Estados Unidos, que se exercitava com os trajes de Eva antes da maçã.

-Elio, temos de voltar para o Brasil do ano 2011, se não, vamos perder a boca-livre do aniversário do Dieckmann.

-Carlos, o Dieckmann nunca se coçou quando a conta do restaurante chegava.

-É verdade; como o Carvalho Pinto, ele tinha um escorpião no bolso.

Elio voltou ao presente e era um presente de grego, isto é, a década de 70.

-Você viu como o filho do Aristóteles Onassis, o Alexandre, foi paciente com o filho da Jacqueline Onassis, o adolescente John-John Kennedy, ensinando-lhe a pilotar avião?

-Vi, Elio; Alexandre morrerá daqui a pouco pilotando e, décadas depois, será a vez do John-John. Depois deste relacionamento Onassis e Jacqueline Kennedy, um urubu pousou na sorte de muita gente. A Maria Callas foi a primeira vítima: já morreu de tristeza.

-É mesmo, Carlos; vamos fugir desta tragédia grega.

Dito isso, eu e Elio Fischberg sacamos ao mesmo tempo o nosso cachimbo de ópio e fumamos. Quando a névoa se desfez, nós nos vimos em outro lugar.

-Onde estamos?... Qual é o ano?...

Enquanto o Elio fazia perguntas, puxei um jornal que estava sob flocos de neve e vi a fotografia do Pelé vestido de soldado. Busquei outro jornal, a dois metros de mim, e lá estava o grande craque da Copa da Suécia com o uniforme do Exército brasileiro.

-Elio, voltamos para 1959.

-Mas aqui não é a Grécia, faz um frio de transformar os soldados de Napoleão em picolé.- manifestou-se o Causídico Verborrágico.

-Sim, estamos na Rússia. Eu peguei um jornal, que era o Pravda, peguei outro e era o Izvestia..

-Aqui só existem esses dois jornais, Carlos; Pravda quer dizer Verdade, e Izvestia, Notícias. Diz o povo russo que no Pravda não tem notícias, e no Izvestia, não tem verdade.

-Não há um jornal alternativo como o Biscoito Molhado? - perguntei.

-Se tivesse, não seria Biscoito Molhado, e sim, Biscoito Gelado.- respondeu.

-Napoleão Bonaparte dizia: “Raspe um russo, e encontrará um tártaro.”

-E Napoleão sabia das coisas.- concordou.

-O russo com essa tendência para ser escravizado... - comentou o Elio com um esgar.

-É verdade; as pessoas ligam à escravidão ao negro africano, mas a palavra escravo provém de eslavo.- acrescentou.

-Anton Tchekov escreveu que precisava espremer gota a gota a mentalidade de escravo de seu sangue para amadurecer como indivíduo.

-Já que estamos na Rússia ... - disse o Elio.

-É melhor nós andarmos um pouco, Elio, para aquecer.

-Nada disso, vamos fumar o nosso ópio e sair daqui.

-O fumo congelou, Elio.

-Que coisa! O idioma russo é difícil. É uma língua de acento tônico variável com função distintiva; possui dois sinais ortográficos, vinte consoantes e dez vogais. - lamentou.

-Console-se, Elio, poderíamos estar na Polônia, que possui trinta consoantes e uma vogal.

-Você brinca, mas nenhum livro de Dostoiewsky, Tolstoi, Turguenev, Gogol, nós lemos traduzidos diretamente do russo, sempre havia uma tradução francesa, ou inglesa, no meio do caminho até nós.

-Isso vem mudando, Elio.

Bem, o jeito é caminhar mesmo para aquecer.- conformou-se.

Andamos, andamos, até que topamos com um evento onde havia um grande número de pessoas, principalmente com máquinas fotográficas na mão.

-Algum evento importante acontece por aqui, Elio.

-Vamos ver.- mostrou curiosidade.

Dois homens caminhavam, enquanto várias pessoas o ladeavam.

-Elio, aquele baixinho gordo, de chapéu para esconder a calva, se parece com um professor de Desenho que tive no 2º ano ginasial.

Era o líder da União Soviética, Nikita Kruschev, que acompanhava o vice-presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon, na exposição comercial americana em Moscou.

-Não seria o presidente dos Estados Unidos que deveria estar aqui, o Dwight Eisenhower?

-Quando comandou os exércitos aliados, na Segunda Guerra Mundial, a saúde dele estava ótima, mas no governo americano, teve vários enfartes. Talvez, Nixon o substituísse num desses enfartes.- aventei a hipótese.

-Parece que eles discutem. - apontou o Elio.

-Vamos chegar mais perto.

Esgueirando entre os jornalistas, aproximamo-nos dos dois líderes da guerra fria.

Quando passaram por uma cozinha com eletrodomésticos sofisticados para a época, Nixon vangloriou-se:

-Nos Estados Unidos, nós tratamos de facilitar a vida das mulheres.

-Nossos eletrodomésticos são ainda mais avançados do que esses.- replicou Kruschev.

-Comunista mentiroso.- sussurrou Nixon.

-O que você disse? - desconfiou o Chefe do Partido Comunista da União Soviética.

-Eu disse que as mulheres americanas são as mais felizes do mundo.

-O tratamento capitalista que vocês dão às mulheres não existe no comunismo.

-É claro que não. - concordou Nixon com a expressão irônica.

-Se este sujeito fosse russo, eu o mandava para Sibéria.- pensou Kruschev.

-Se este sujeito fosse americano, eu colocava o macartismo nos calcanhares dele.- pensou Richard Nixon.

-As casas que vocês, americanos, constroem, não duram mais de vinte anos, enquanto as casas da União Soviética resistem por várias gerações. - provocou o líder soviético.

-As casas americanas são duráveis, mas os cidadãos americanos gostam de ter acesso às últimas novidades tecnológicas. - retrucou Nixon.

-Não me diga? - pilheriou.

-Deixe que as pessoas escolham o tipo de casa, de sopa e de ideias que elas querem ter.- retrucou o vice-presidente dos Estados Unidos.

As intervenções de um e de outro eram aplaudidas diplomaticamente, além de arrancar sorrisos, mas as vozes aumentaram de volume e um desfecho desagradável se avizinhou.

-Carlos, os fotógrafos estão excitadíssimos.

-Não querem perder o melhor ângulo quando os dois saírem na porrada.

-Dois anos atrás, lançamos um Sputinik no espaço. Cadê os Estados Unidos?... Daqui a alguns anos, alcançaremos tamanha dianteira que, ao olharmos para trás, não veremos nada, então, bye, bye, bye...

A cada bye que dava, Nikita Kruschev, com um largo sorriso, acenava com um lenço debochadamente.

-Kruschev é um homem do povo, rude, de arrancar o sapato e bater com ele na mesa da ONU, o Nixon não vai conseguir se controlar.- cochichei no ouvido do Elio.

-Os dados econômico-financeiros estão em qualquer publicação séria para mostrar a superioridade do regime capitalista sobre o comunista. E quanto à corrida espacial, logo superaremos a União Soviética.

-Você parece bravo, como se quisesse brigar comigo. - queixou-se o soviético.

Nesse instante, diplomatas russos e americanos se aproximaram discretamente para impedir, se fosse necessário, que os dois se embolassem no chão da cozinha da exposição americana.

-Você ainda está bravo comigo?- provocou mais uma vez.

Resolvemos, então, sair do meio do tumulto.

-Elio, presenciamos um dos fatos mais célebres da guerra fria: o Debate da Cozinha.

-A coisa ficou tão quente que descongelou o nosso ópio, vamos fumar logo que é hora de voltarmos para o Brasil.-

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