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segunda-feira, 18 de maio de 2015

2854 - o país do futuro


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O BISCOITO MOLHADO

Edição 5104                                   Data:  11 de maio de 2015

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120ª VISITA À MINHA CASA

 

-Stefan Zweig, de volta ao Brasil?..

-Vim ver se o Brasil confirmou as minhas previsões de 1941.

-O país do futuro?!... Continua, há mais de 70 anos, sendo o país do futuro.

-Vai melhorar, vai melhorar.

-O otimismo não foi cultivado por você.

Mal fechei a boca, percebi que havia sido grosseiro com o visitante ilustre.

-Em 1942, a Alemanha nazista, até então, não perdia uma só batalha. A barbárie subjugava a civilização europeia, o meu povo era exterminado. O pessimismo tomou conta de mim por completo.

Intentei mudar de assunto.

-Assisti, dias atrás, a um grande filme”O Grande Hotel Budaspeste”. Soube, depois, que o enredo fora inspirado num dos seus trabalhos.

-Apesar de eu ter vivido apenas 61 anos, a minha obra é vasta. Não conhece nada que eu tenha escrito?

-Evidentemente que conheço, seria uma lastimável lacuna no meu currículo de leitor não ter lido nada seu. Li a sua biografia do Balzac.

-Em 1920, eu escrevi “Três mestres: Balzac – Dickens – Dostoiévski”.

-Há uma curiosidade nessa leitura, Stefan Zweig: eu li essa biografia numa tradução do alemão para o português de Portugal e havia o seguinte trecho: “Balzac gastava como um chichisbéu”.

-O que quer dizer chichisbéu?

-Fiz essa pergunta para o pai dos burros, como é chamado, na intimidade, o dicionário no Brasil e ele me respondeu que é o galanteador inoportuno e insistente. Ora, havia, no meu trabalho, na época, um colega que se ajustava como uma luva nesse substantivo e lhe pus esse apelido que pegou como visco depois que expliquei aos gozadores o significado de chichisbéu.

-Lembro-me, agora – manifestou-se – da palavra italiana cicisbeo, o galanteador inoportuno. 

-Também li, da sua autoria, “Fernão de Magalhães – O homem e sua ação” - mas confesso que todas as páginas do livro se apagaram na minha retentiva; tenho de relê-lo. Como não poderia deixar de ser, li o seu livro que mais celeuma provocou nesta terra: “Brasil, o País do Futuro”.

-Cunhei essa expressão e, agora, os brasileiros mais céticos a usam como ironia amarga.

-Há uma celeuma entre seus biógrafos que você escreveu esse livro de louvor ao Brasil para obter o visto de residência, modelo 19, com a sua esposa Lotte, do governo ditatorial.

-Queriam que eu escrevesse a biografia do Getúlio Vargas, mas recusei alegando que não dominava a matéria e era verdade. Todos os meus biografados foram redigidos depois de eu me debruçar sobre montanhas de papel.

-Você recebeu o visto do DIP – Departamento de Imprensa e Propaganda, não foi?

-O Lourival Fontes era o ministro do DIP, ele se aproximou muito de mim porque, como romancista, eu era muito famoso no mundo intelectual. Mas eu não me deixaria manipular.

-Os mais venenosos disseram que você escreveu “Brasil, o País do Futuro” por dinheiro.

-Eu era filho de um industrial, Moritz Zweig, e a minha mãe, Ida Brettauer, pertencia a uma família de banqueiros. Para a partilha da herança, só havia meu irmão. Sem falar da venda dos meus livros e as adaptações para o cinema que me rendiam polpudos rendimentos.

-Sua formação foi em Viena, onde você nasceu?

-Sim, estudei Filosofia na Universidade de Viena e, em 1904, com 23 anos de idade, obtive o doutorado com uma tese sobre “A Filosofia de Hippolyte Taine”.

-Você disse que a sua mãe e seu pai eram judeus por acidente de nascimento.

-Disse isso dentro do contexto religioso. O judaísmo sempre esteve entranhado em mim, como se constata nas minhas obras.

-Em 1915, você se casou com Friderike von Winsternit depois de obrigá-la a se separar do marido.

-Não a obriguei, estávamos apaixonados. Comprei, então, uma casa na terra de Mozart, Salzburgo e lá vivemos durante 15 anos. Foi o período da minha vida em que tive mais inspiração para criar.

-No seu casamento, a Primeira Guerra Mundial já eclodira.

-No início, o nacionalismo exacerbado me levou a aderir à causa germânica. Com o correr da guerra, com toda aquela sangueira, voltou-me a lucidez e me tornei um pacifista convicto para toda a vida.

-Separou-se de Friderike e se casou com sua secretária, Charlotte Elizabeth Altmann.

-Eu a tratava de Lotte e todos assim a chamavam.

-Seus amigos, até os do Brasil, não entenderam essa sua ligação com Lotte, porque ela era feia, asmática e sem a cultura da Friderike. Eu, particularmente, vendo as fotos da sua segunda esposa, a achei bonita.

-Não me separei intelectualmente de Friderike, sempre nos correspondemos por cartas.

-Voltando ao “Brasil, País do Futuro”, houve getulistas que o criticaram porque você não escreveu sobre o progresso econômico e tecnológico do país, detendo-se no barroco e no folclore.

-Há críticas que são bem-vindas.

-Um dos seus biógrafos mais destacados, Alberto Dines, alude a um militante político, que você conheceu na Europa, Bélgica, se eu não me engano, que pregava uma variante do sionismo, ou seja, um território para abrigar os milhões de refugiados judeus. Influenciado por essa ideia, você escreveu vários folhetos territorialistas e passou à ação, indo até Salazar, 1938, em busca de um território africano para esses refugiados. No que concerne ao “Brasil, País do Futuro”, ele ressalta várias passagens em que você escreveu que o Brasil podia fazer a felicidade de milhões de refugiados.

-Eu me sentia angustiado com a crueldade contra o povo judeu.

-Hitler avançava na Europa e o povo judeu era exterminado.

-De Petrópolis, onde aluguei uma casa para morar com Lotte, escrevi estas palavras numa carta à Friderike: “O que a velhice poderia me trazer de bom, recolhimento, repouso, reflexão e honra, me traz caçada, isolamento e ódio...  Não fale a ninguém do meu aniversário.”

-No carnaval de 1942, você veio ao Rio de Janeiro com a Lotte, para se distrair, segundo seus amigos brasileiros, porém, depois de ler notícias terríveis sobre a guerra, retornou para casa com ela.

-Quando almocei com esses amigos no Restaurante Minhota, na Rua São José, eu já estava decidido a me matar.

-Um dia antes da tragédia, 22 de fevereiro de 1942, você escreveu para Friderike sobre a sua agonia, que não o deixava mais se concentrar, e lamentou não ter podido concluir a  biografia de Balzac.

-Mas pedi a ela, nessa carta, que não tivesse pena de mim.

-Manuel Bandeira traduziu o seu “Último Poema”, eu o tenho aqui em mãos.

“Suave as horas bailam sobre

O cabelo branco e raro.

A áurea taça a borra cobre;

Sorvida, eis o fundo, claro!

Pressentimento da morte

Não turba, é alívio profundo.

O gozo mais puro e forte

Da contemplação do mundo

Só o tem quem nada cobice.

Nem lamente o que não teve.

Quem já o partir na velhice

Sinta – um partir mais de leve.

O olhar despede mais chama

No instante de despedida.

E é na renúncia que se ama

Mais intensamente a vida.”

 

-Foi tudo muito triste. - balbuciou.

-Você deixou uma tocante carta de despedida, deixe-me ver se a encontro. - disse-lhe rumando para o computador.

-Não há necessidade, eu a citarei de memória.

E assim o fez:

-”Antes de deixar a vida por vontade própria e livre, com minha mente lúcida, imponho-me última obrigação; dar um carinhoso agradecimento a este maravilhoso país que é o Brasil, que me proporcionou a mim e a meu trabalho tão gentil e hospitaleira guarida. A cada dia, aprendi a amar este país mais e mais e, em parte alguma, poderia eu reconstruir minha vida, agora que o mundo de minha língua está perdido e o meu lar espiritual, a Europa, autodestruído. Depois de 60 anos, são necessárias forças incomuns para começar tudo de novo. Aquelas que possuo foram exauridas nestes longos anos de desamparadas peregrinações. Assim, em boa hora e conduta ereta, achei melhor concluir uma vida na qual o labor intelectual foi a mais pura alegria e a liberdade pessoal o mais precioso bem sobre a Terra. Saúdo todos os meus amigos. Que lhes seja dado ver a aurora desta longa noite. Eu, demasiadamente impaciente, vou-me antes. Stefan Zweig”.

Suavemente, partiu.

 

 

 

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