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sexta-feira, 8 de maio de 2015

2848 - do dragão ninguém fala


 

 

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O BISCOITO MOLHADO

Edição 5098                                   Data:  4  de maio de 2015

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200ª CONVERSA COM OS TAXISTAS

 

Gosto do 140 pelos seus gestos e, principalmente, pela sua fala tranquila; ele é de uma mansuetude que  faz bem. Há pessoas assim, mas rareiam no corre-corre do mundo atual.

-Tudo bem? - foram as suas palavras quando entrei no seu táxi.

-A semana que vem é praticamente morta... feriado na terça, na quinta-feira.

O 019, por exemplo, açulado por esse meu comentário, investiria contra as medidas das autoridades brasileiras que agem como se o Brasil fosse um país rico, e, assim, seus demais colegas, mas o 140 se limitou a esboçar um sorriso; em seguida, perguntou-me:

-Vai enforcar a semana toda também?

-Não; as minhas férias são tripartidas em 10 dias, se não fosse trabalhar nessa semana, eu me sentiria numa quarta férias. Mas eu poderia enforcar.

-O chefe é boa praça?

-Nada disso; ele desconta as horas dos funcionários que batem o ponto, somem e reaparecem muito tempo depois. Dois deles até procuraram o sindicato alegando sofrerem assédio moral.

-Assédio moral do chefe porque os coloca para trabalhar?...

Riu com a sua pergunta e eu retomei o meu discurso.

-Eu poderia tirar a minha quarta férias sem estresse, usando o meu banco de horas, mas não é o momento.

-Vai deixar o seu banco quietinho, deixando as retiradas para outra oportunidade.

-Isso; mas esse banco tem um limite de depósitos: até 40 horas por ano.

-Não é como o Bradesco. - riu com a sua piada.

-É um absurdo, aqui no Rio de Janeiro, colocar um feriado dois dias depois de outro. Um convite ao ócio e prejuízo às atividades econômicas, pois só ganham o setor de hotelaria, os comerciantes de Shopping Center, os cobradores de pedágio...

Interrompeu-me:

-Mas vai dizer a um devoto de São Jorge que o feriado do dia 23 está muito próximo do feriado de Tiradentes, eles lhe responderão que o problema é dos portugueses, que deveriam ter enforcado o Tiradentes em outro dia.

-O santo guerreiro ofuscou os acontecimentos históricos do dia 21 de abril: o martírio de Tiradentes, os 30 anos de morte do Tancredo Neves e o aniversário da inauguração de Brasília. Quanto à inauguração de Brasília, não é para ser lembrada e sim, lastimada.

-Minha mãe era devota de São Jorge. - revelou após meu comentário.

-Ela estava numa feira, viu uma imagem de São Jorge e quis comprá-la. O dinheiro que tinha na bolsa não dava, triste, ela seguiu em frente e achou uns cruzeiros no chão. Ele agora tinha a quantia necessária, voltou e comprou a imagem. Ela, com isso, ficou ainda mais devota de São Jorge.

-É compreensível. - disse-lhe, já saltando do seu táxi na rua Modigliani.

Na semana aludida de enforcamentos, resolvi retirar 8 horas do meu banco, e não fui ao serviço na segunda-feira, mas quarta-feira, dia 24, foi diferente e, de volta do trabalho, quando saí da estação do metrô de Maria da Graça, deparei-me, por feliz coincidência, com o táxi do 140.

-Festejou muito São Jorge? - brincou, enquanto eu encaixava o cinto de segurança no banco do carona.

-Que foguetório! Superou o da passagem do ano. - observei.

-A alvorada foi às 5 horas da manhã, mas os devotos, nas igrejas e nos terreiros de umbanda, já estavam em vigília toda a madrugada. - informou.

-Numa dessas alvoradas, eu caminhava pelas ruas do outro lado do conjunto de Del Castilho e temi que a barulhada, com os estalidos que não eram só bombas.

-Nem sempre são, apenas, morteiros, cabeças de negro, malvinas. - juntou suas palavras às minhas.

-Eu me senti aliviado, quando escovando os dentes, estrondou o foguetório. Na hora de eu sair para caminhar, 30 minutos depois, a intensidade seria menor,

-Mas a intensidade não caiu tanto assim, não. - contrapôs.

-Sim, mas não me aventurei por lugares distantes da minha casa; nem circundei a Praça Manet, que alcança a sua agitação máxima do ano no Dia de São Jorge.

-Não tem chegada de Papai Noel de helicóptero, futebol de fim de ano com jogadores profissionais de férias, não tem ninguém para disputar prestígio com São Jorge. - animou-se sem se exaltar, o que fugiria da sua brandura.

-Eu vinha notando, desde o início deste mês de abril, que, naquela parte gramada perto do trailer “A Fofoca da Madrugada”, na Praça Manet, colocaram uma redoma sobre um pedestal e, em volta, cultivaram um jardim, um canteiro,  melhor dizendo, bem colorido por flores,  cercado por uma grade de uns 80 centímetros de altura. Faltava o santo para ocupar aquela redoma.

-São Jorge, e seria colocado no dia dele. - adivinhou.

-Estava na cara, mas a curiosidade persistia e aumentava até o dia 23 de abril: como seria a imagem do santo?

-Como é?... Eu ainda não vi.

-Hoje, quando saí para trabalhar, vi aquela redoma iluminada de longe e até me desviei do meu caminho para vê-lo de perto. Colocaram, creio que por volta das 18 horas de ontem, a imagem do santo, com a sua lança encravada no dragão, rodeado por flores vermelhas e brancas. Soube pela esposa do meu irmão que o cunhado dela iluminou o santo guerreiro no meio da festa. Para os moradores de Del Castilho e adjacências, era como se a árvore de Natal estivesse sendo acesa na Lagoa.

Notei que me ouvia com atenção redobrada.

-Ontem, a quadra de vôlei e basquete ficou tomada por mesinhas e cadeiras, como nos bares e restaurantes, porque foi servida uma feijoada, na hora do almoço, paga, naturalmente. De tarde, serviram churrasco, este gratuitamente, para quem se habilitasse.

-Xi!... Com o preço dos açougues e supermercados, a carne deveria ser suspeita. - manifestou-se.

-Mais suspeita do que a carne dos chineses?

-Eu é que não vou à pastelaria de chinês. - garantiu-me.

Por volta das 6h 30min da noite, soltaram morteiros incessantemente. Eu assistia a um filme na televisão e nada escutava, coloquei o volume no máximo, mas não adiantou. Eu pedia a todos os santos, menos São Jorge, que aquela munição se esgotasse logo. Nem na época em que o poderoso chefão era vivo, se festejou tanto.

-O Dudu trazia cavalos da fazenda dele para cá e alguns deles eram cavalos mangalarga marchador, mas a maioria era matungo. - lembrou.

-Sim, saía pelas ruas, lá pelas 5h 30 min, um misto de cavalhada com carreata. Depois, onde houve a feijoada este ano, realizavam uma missa. Eu só vislumbrava da minha janela uma multidão e as cores vermelha e branca.

-Dudu deu muito trabalho a São Jorge, até que não deu mais. - aludiu ao seu assassinato.

-São Jorge teve mais trabalho matando o dragão do que protegendo o Dudu.

Esse meu último comentário foi feito já na Modigliani, quando eu saltava do seu táxi.

-A imagem do santo guerreiro está naquele  lado. - apontei.

-Vou lá ver.

Evidentemente que ele era influenciado pela devoção da mãe, embora não demonstrasse abertamente.   

 

 

                    

 

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