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quinta-feira, 30 de abril de 2015

2843 - Rock Around the Clock


 

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O BISCOITO MOLHADO

Edição 5093                                     Data:  26  de abril de 2015

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XXXII  MINIDICIONÁRIO AUTOBIOGRÁFICO

 

LOROTA – Conheci muitos loroteiros na vida, mas vou destacar dois, pois eles me levavam ao Barão de Münchausen por causa da fertilidade de imaginação, tamanha que dela brotavam mentiras para o mercado interno e externo.

Um deles foi o meu professor de Moral e Cívica do primeiro ano ginasial do Visconde de Cairu. Ele portava uma perna mecânica que arrancava uma atenção mórbida de mim. Até aquele momento, eu só conhecia as pernas de pau dos piratas de gibi e do cinema. Quanto à vida real, conhecia o manquejar daquele que se anunciava pelo Cachambi com uma voz abaritonada e de extensão operística: “Leopoldo Sapateiro”. A sua prótese era um cotoco de pau que lhe saía da canela e substituía o pé; carregava sempre, pelas ruas, um saco de sapatos às costas que desequilibrava o seu corpo ainda mais.

Perna mecânica eu só fui ver mesmo, pela vez primeira, nesse meu professor de Moral e Cívica. Algumas vezes, desci as escadarias do colégio com ele à minha frente. Cada degrau que ele superava, apoiado na sua inseparável bengala, a perna mecânica traçava um semicírculo. No instante em que seus sapatos se juntavam no degrau, eu podia deixá-lo para trás, mas, por delicadeza e curiosidade, freava a minha pressa e o observava com discrição.

Na sala de aula, reinado dos professores nas décadas passadas, a classe silenciava para ouvi-lo. Não falava em acontecimentos funestos quando se desviava da matéria escolar, nunca nos contou como perdera a perna e nenhum de nós ousou perguntar-lhe. O drama que viveu, talvez desde garoto, não anuviou o seu espírito, pelo contrário, falava de coisas alegres. E um dia contou aos seus alunos como enfrentou a Turma do Imperator.

Em meado dos anos 50, surgiu nos Estados Unidos o rock and roll e, com ele, rapazes que faziam questão de ostentar a sua rebeldia em relação aos adultos, a chamada juventude transviada. O Brasil, como os demais países do mundo ocidental, não era, depois da Segunda Grande Guerra Mundial, imune à influência americana.

Quando se ouviu “Rock Around The Clock”, no filme “Sementes da Violência”, em 1955, moças e rapazes se agitaram e os distúrbios nas salas de cinema chegaram aos jornais.

Em 1956, a explosão foi incontrolável nos cinemas quando chegou à tela o filme “Ao Balanço das Horas”, no original, “Rock Around The Clock”, com o conjunto de rock Bill Haley & His Comets. Em São Paulo, o Governador Jânio Quadros pediu a proibição desse filme alegando o tumulto que aquele ritmo selvagem provocava.

Nessa esteira, espalharam-se patotas de transviados, uma delas era a Turma do Imperator. Encontravam-se na galeria do cinema Imperator e se diferenciavam da mocidade bem comportada pelos topetes, calças jeans apertadas, blusões à James Dean ou à Marlon Brando do filme  “O Selvegem”, e também, no caso daqueles que tinham pais endinheirados, pelas lambretas. Nem todos eram moradores do Méier, lá se juntavam até gente da zona sul; nem todos eram desordeiros. Integravam a Turma do Imperator rebeldes sem causa que se sobressairiam, anos depois, na vida artística, como Nélson Mota, Roberto Carlos, Erasmo Carlos, Tim Maia, Wanderléa. Porém, a fama deles era de arruaceiros que entravam em conflito com outras patotas como a Turma da Urca.

Assim, a garotada bem comportada, os cidadãos de respeito evitavam o contato com aquela gente transviada, não foi o caso do nosso professor de Moral e Cívica. Na sala de aula, sentado à sua mesa, exigiu silêncio absoluto dos seus súditos e passou a contar a sua história.

Ele pretendia assistir a um filme no Imperator e, inevitavelmente, viu-se obrigado a passar por aqueles transviados que formavam uma espécie de corredor polonês. Seguia sossegadamente no seu caminho quando ouviu uma piada dirigida a ele, ocultou-nos a piada, não revelou se era referente ao seu defeito físico. Disse-nos, apenas, que parou, dirigiu-se, decidido, ao grupo de onde partira a chacota, mas ninguém se identificava. Passou, então, uma descompostura em todos, disse-lhes palavras duras que tinham de ouvir dos pais. Houve reação dos transviados, julgaram que ele ia recuar, mas não, avançou.

-Coloquei a Turma do Imperator para correr. - bradou brandindo a bengala que pegara de sobre a mesa de aula.

Outro mentiroso, mas que tecia fantasias ainda mais delirantes, era um primo meu de primeiro grau. Para que não surjam problemas na família, usarei um nome fictício; vai lá Marcelinho, já que não tenho parente algum próximo que assim seja nomeado.

A lorota que contou e não me saiu da mente, embora não a tenha decorado em sua inteireza, pois quando ele dava asas à imaginação nem avião conseguia acompanhá-lo, se deu também no início da década de 60.

Marcelinho era bem mais velho do que eu; tinha uns 20 anos de idade, enquanto eu não chegava aos 13.

Um dia, numa visita à nossa casa, percebeu que havia plateia na sala: meus pais, eu e minha irmã; e pôs-se, então a narrar a sua aventura.

Arrumara uma namorada, moça de boa família, que tinha ojeriza a transviados.

-Vejam vocês, os pais dela não permitiam namoro no portão, tinha de ser no sofá, sentados sob a vigilância ou do pai ou da mãe, mas, geralmente, dos dois. Segurar a mão do broto podia, mas beijar estava fora de cogitação. Eu tinha de ser rápido nas beijocas.

Se Marcelinho era interrompido por nós, ignorava o aparte e prosseguia a narrativa de onde parou.

-Eu podia partir para outras namoradas, mas ela era tão formosa que mantive o namoro. E assim foi quando, num sábado, avisei a ela que não apareceria para namorar e, evidentemente, tive de deixar os seus pais também informados.

Sem pausas, prosseguiu:

-De noite, nesse sábado, os pais dela ligam a televisão, sintonizam a TV Rio e me veem dançando rock no programa “Hoje é Dia de Rock”, do Jair de Taumaturgo.

-Quando apareci lá, eles me espinafraram, disseram que não permitiriam o namoro da filha com um transviado. E mais: estava com eles o Carlos Lacerda, que era tio da moça. Tive, então, de debater com os três, de defender a minha posição. No fim, os dois desistiram e só ficamos eu e o Carlos Lacerda discutindo. Depois de um tempo Carlos Lacerda apertou a minha mão e disse:

-Rapaz, eu não queria ser o seu adversário na política.

O fecho da sua aventura foi surpreendente, e, quando ele se foi, meu pai comentou:

-Marcelinho mente mais do que um colega meu de jornal.

 

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