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segunda-feira, 6 de abril de 2015

2826 - Veraneando e Invernando Dicionário Biográfico


 

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O BISCOITO MOLHADO

Edição 5076                                    Data:  31 de março de 2015

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MINIDICIONÁRIO AUTOBIOGRÁFICO

PARTE XXV

 

CADERNO – No verbete TREM , depreender-se-á facilmente que, na faculdade de economia, bastava saber quais as matérias foram ministradas por cada professor, na sua disciplina e aparecer para as provas semestrais; não havia a necessidade premente de comparecimento às aulas. Assim foi no tempo do ministro Mário Henrique Simonsen, assim foi no meu tempo.

Quando se aproximavam essas provas, apareciam os turistas, aqueles que só marcavam presença na hora da avaliação dos professores. Eles buscavam freneticamente os cadernos dos alunos assíduos nas salas de aula com os assuntos que foram tratados durante o semestre. De posse desses cadernos, tiravam várias xerox, geralmente  nos locais em que trabalhavam e elaboravam as suas colas.

Apesar dos estágios que fiz durante três anos dos quatro em que cursei a faculdade, dificilmente eu perdia uma aula, logo, o meu caderno era um bem valiosíssimo para eles. Num desses estágios, um colega da Universidade Gama Filho me aconselhou a cobrar dos alunos relapsos por cada página xerocada do meu caderno, quanto a ele, estipulava um valor para quem quisesse colar durante as provas.  Não fiz isso, evidentemente.

O meu caderno era parrudo, um cartapácio com peças laterais coloridas a cada 70 ou 80 páginas, separando as disciplinas do ano letivo.  Ele já não era impecável como as das meninas caprichosas, de tão manuseado tinha orelhas de Dumbo. Com vários alunos bissextos levando-o para tirar xerox, o seu estado físico piorou. Um dia, quando estava nas minhas mãos, a sua capa se soltou do fio em espiral e caiu. Inspirado, escrevi uns versos; perdi o papel em eles estavam, mas não os esqueci.

“Andando de mão em mão,

Igual a mulher do Mangue,

Meu caderno perde a capa,

Que caiu no chão exangue.

Igual a um desesperado,

Que frequenta várias seitas,

Frequentou diversas casas,

As de família e as suspeitas.

 

Foi ao BB, ao IPERJ,

Inda mais à Eletrobrás.

Cansou-se tanto, coitado,

Que caiu morto pra trás.

 

Mas hoje, no cemitério,

Um epitáfio se avista:

Aqui jaz o meu caderno,

Vitimado por turista.

 

INVERNADA – Meu pai dizia que o caldeirão do diabo estava no Méier, tanto era o calor que irradiava desse bairro e adjacências: Cachambi, Del Castilho, etc. Em Olaria, que se localiza perto do Méier, o calor deve ser parecido. Quanto ao frio, não deve haver também diferença entre os bairros.

Certa vez, queixei-me que esfriara muito – a temperatura caíra para uns 18º – e deixei um amigo português da Rua Chaves Pinheiro escandalizado:

-Frio?!... Você chama isso de frio?!... Frio eu senti em Portugal. - deu ele proporções siberianas ao inverno do seu país tal a sua ênfase.

Mesmo não existindo frio no Rio de Janeiro, apenas calor, houve invernada em Olaria. Isso aconteceu pela primeira vez, em 1962, no governo Carlos Lacerda e durou alguns anos. Não tinha nada a ver com a estação do ano, e sim com forças policiais. Falo da Invernada de Olaria.

Seu período áureo foi o tempo do mencionado governador, quando até alguns dos seus policiais se entrincheiraram com ele no Palácio Guanabara, logo que estourou a Revolução de 1964.

Desses policiais, o mais famoso entre nós, moleques das ruas São Gabriel e Americana, era o Neto que, soube depois, era o segundo da hierarquia desse grupo ligado ao Departamento Estadual de Segurança Pública.

O Cachambi tinha os seus delinquentes, mas, entre eles, dois despontavam: Borboleta e Cabeção. Dois bandidos românticos comparados com os de hoje – afirma o meu irmão Claudio. Talvez, tenha razão. Já servi de garoto de recado do Borboleta que, um dia, na Americana, me pediu para chamar o Cabeção, que morava numa cabeça de porco dessa rua. Fui, quando perguntei por ele, e as senhoras souberam que era o Borboleta que o procurava, estamparam apreensão no rosto e me falaram que eu dissesse que ele não estava em casa. Obedeci.

Cabeção não parecia má pessoa; subia, muitas vezes, a Rua São Gabriel, dobrava a Americana, via a nossa turma reunida e participava pacificamente das conversas. Era uma turma bem heterogênea; faziam parte dela adolescentes, como eu, de 15 anos, adultos na casa dos 20, 30 anos de idade, e até o guarda-noturno, que sempre parava a sua ronda para bater papo com a gente.

Um dia, o Guaraci, amigo e vizinho, um dos mais velhos do grupo, alertou-me para evitar dizer o nome Cabeção quando os dois se achavam juntos.

-O guarda não sabe e nem pode saber. - salientou.

Um dia, correu o bochicho que o Neto, da Invernada de Olaria, andava atrás dele e o encontrou, pois o Cabeção ficou um bom tempo sem comparecer as nossas reuniões noturnas, quando o vimos, estava com esparadrapos e gases num dos olhos, um tampão enorme.

Borboleta não era tão próximo de nós quanto o seu companheiro, mas os rumores sobre ele sempre chegavam. Disseram um dia, que ele, ao ver a mulher do Neto, na Rua Getúlio, segurou os testículos e os balançou à sua frente. Esse boato não se confirmou, mas Borboleta tomou um chá de sumiço, reapareceu todo estropiado.

Cabeção e Borboleta, tanto um quanto o outro logo, soltos, estava prontos para outra.

Quanto a nós, moleques da Rua Americana, que não roubávamos nem pirulito de criança – é verdade que havia algumas exceções – morríamos de medo da Invernada de Olaria. Quando o camburão com esse temível nome na lataria despontava na esquina, tremíamos de medo. Os mais experientes nos pediam tranquilidade, que prosseguíssemos discutindo futebol, pois, se levantássemos suspeitas, os homens poderiam vir até nós e exigir os documentos de todos.

Quando, em 1963, assassinaram o primogênito do escritor Odylo Costa, filho, em Santa Teresa, enquanto namorava, o governador Carlos Lacerda declarou guerra implacável ao crime, então, o nosso medo se tornou pavor. Mal o camburão da Invernada de Olaria era vislumbrado por um de nós, o alarme soava, disparávamos cada um para a sua casa. Quinze, vinte minutos depois, com passos miúdos e olhares alongados, certificando-nos de que o perigo já passara, retornávamos ao nosso antigo posto.

Os anos se passaram, a Invernada acabou e caiu no esquecimento. Na década de 90, eu almoçava com uma colega de trabalho, num restaurante do Centro, quando um senhor ocupou uma cadeira ao lado da nossa e, não contente em se comunicar apenas com o garçom, interrompeu intempestivamente a nossa conversa para falar da ineficiência da nossa polícia.

-Você talvez tenha conhecido a Invernada de Olaria?- dirigiu-se a mim.

Depois da minha confirmação, exclamou com suspiros de saudade:

-Aquilo é que era polícia!

 

 

 

 

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