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O BISCOITO MOLHADO
Edição 5083 Data: 09 de abril de 2015
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MINIDICIONÁRIO AUTOBIOGRÁFICO
PARTE XXX
FESTA JUNINA - Eu estava na primeira infância e não posso,
portanto, afirmar que o meu pai herdou do dele, o paiol de fogos de artifício,
quando meu avô se mudou para o Jardim Botânico e nós ocupamos o apartamento que
deixara vazio, o 103, da rua Cachambi; mas me parece que sim.
Numa noite junina, toda a família se
reuniu no quintal e meu pai abriu o paiol que, na verdade, se resumia a uma
caixa. Não havia morteiros, nenhum explosivo que nos ferisse os ouvidos e nos
assustasse, e sim, buscapés. A alegria dos astrônomos, imprimindo os seus nomes
na história da Astronomia ao descobrirem um cometa no céu, ficava longe da
nossa com os buscapés, pois o contentamento das crianças é incomparável.
Depois
que todos os buscapés riscaram os ares, a atenção do meu pai convergiu para uma
rodinha. Colocou-a no chão e acendeu o pavio.
Deus do céu, foi uma loucura! Girando, enquanto soltava fagulhas, ela
veio atrás de mim e da minha irmã, nós dois corremos gritando alucinadamente.
Com quase toda a sua energia queimada, a rodinha bateu numa reentrância do chão
e pendeu para o lado, soltando as suas últimas fagulhas até apagar. Tranquilos, agora, eu e minha irmã retornamos
revigorados para a farra.
Então, vieram os balões japoneses. Meu
pai acendia a pequena bucha branca e o nosso maior sonho naquele momento era
que o balão iluminado ficasse pousado nas nossas mãozinhas adquirindo força
para ganhar o céu. Não subia muito, mas isso não nos frustrava, pois a sua
queda nas redondezas era outra razão de júbilo.
Quando a caixa se esvaziou, o que
poderia significar o fim da festa, nosso pai nos surpreendeu: pegou folhas de
jornal, amassou-as e uniu as suas pontas, enquanto olhávamos cheios de
curiosidade. Isto é galinha preta. - disse para nós, que o rodeávamos. Aquele
papel amarrotado ganhou, de fato, o formato de um frango depenado. Em seguida,
ele colocou fogo numa das pontas e a subida da galinha preta sobre nossas
cabeças reacendeu a nossa alegria.
Vieram outras festas juninas, a mais
remota, depois dessa, foi na casa da minha avó na Rua General Padilha. O
quintal era enorme, aliás, essa casa e a vizinha, a do Seu Teixeira,
proprietário das duas, viriam a ser, depois de uma reforma radical, a primeira
sede, em 1976, do SBT, canal 11.
No dia de um dos três santos, não me
lembro qual, enfeitaram tudo com bandeirinhas e armaram mais ao fundo, longe do
pé de jaca, uma fogueira que me pareceu de tamanho descomunal. Havia muita gente,
muitos parentes, mas não senti a mesma felicidade daquela noite junina
promovida pelo meu pai. Ficaram-me na memória apenas as bandeirinhas e as
batatas doces retiradas das brasas das fogueiras e esfriadas pela minha mãe
para eu comer.
Seguiram-se as festas juninas no
colégio. As professoras do Colégio Manoel Bomfim, com a proximidade do mês de
junho, já nos preparavam para o evento. Elas juntavam os grupos de alunos e
alunas que dançariam a quadrilha e nos levavam até o pátio para o ensaio. No
comando da marcação da dança, partiam as suas ordens num francês estropiado,
mas ninguém, ali, estava interessado em saber que se tratava de uma tradição da
nobreza da França do século XVII, que nos chegou através de Portugal. “Anarriê”
(en arrière). Os casais vão para trás –
dizia a professora em bom português. “Alavantú” (en avant tous) – outra ordem,
outro desentendimento. Todos os casais, agora, vão para frente – voltava a
falar ela em português claro. “Olha o Túnel” - esta parte todos entendiam e
gostavam de fazer. “Changê” (era o momento de os pares serem trocados).
“Cumprimentos vis-à-vis” e os casais, frente a frente, se cumprimentavam.
“Otrefoá” (autre fois”). A professora traduzia: “Outra vez”, e nós repetíamos o
passo.
No dia da festa, não haveria traduções
– deixavam as professoras isto definido – elas fariam as marcações em francês,
apenas, porque era muito mais chique e impressionava mais.
A festa junina do ano em que eu cursava
a Admissão foi o mais marcante; ensaiamos bastante no pátio, enquanto víamos e
ouvíamos a barulhada vinda dos trabalhadores que armavam as arquibancadas que
receberiam os espectadores: pais, parentes e vizinhos dos componentes da
quadrilha, além da direção da escola.
Eu e minha irmã estávamos entre os
dançantes e, para o nosso agrado, não formávamos um casal, nem no momento da
troca, o nosso contato maior seria no “Olha o túnel”.
A festa duraria horas e o grande
momento, a dança, estava marcada para a
tarde, às três ou às quatro horas, não me recordo bem. O que não me saiu da cabeça
foi que, por volta das duas horas, escutei um estranho rangido e vi o rosto de
pavor de uma professora. Meu Deus! - exclamou. Uma parte da arquibancada caiu.
Ambulâncias com médicos, enfermeiros e macas não ocuparam os espaços exteriores
da escola, nem corpos de mortos e feridos foram estendidos no lugar da dança da
quadrilha, fora apenas um susto. Naquela hora, um número um pouco menor do que
o de uma partida entre Canto do Rio x Portuguesa se achava ali, ou seja, seis
ou sete pessoas, e elas não se machucaram. Isolada essa parte da arquibancada,
a festa seguiu seu rumo.
Entendendo bem o francês arrevesado da
nossa professora, a quadrilha fez bonito e mereceu aplausos, muitos aplausos,
embora ninguém pedisse bis. Ainda bem.
Recordo-me de outra festa junina, num
arraial armado em São Cristóvão, a que compareci por insistência de primos que
moravam na Rua General Almério de Moura. Ela aconteceu no dia 14 de junho de
1970. Por que sei da data? Porque nesse dia houve o jogo Inglaterra x Alemanha,
e as bandeirinhas, os balões, os quitutes, as barracas com seus desafios e
brindes, não arrancavam o meu pensamento sobre o que acontecia no estádio de
León no México.
Na Rua Chaves Pinheiro, diferentemente
das duas onde morei; a tradição das festas juninas foi mantida pelo Lar de
Júlia e pela casa da Dona Zita, uma vizinha. Eu comparecia às duas
esporadicamente. Quanto à festa do Lar de Júlia, parece que acabou, enquanto a
da Dona Zita, que faleceu há alguns anos, seus descendentes levam a festa
junina adiante, sem ano para acabar.
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