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sexta-feira, 17 de abril de 2015

2833 - Anarriê


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O BISCOITO MOLHADO

Edição 5083                                 Data:  09  de abril de 2015

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MINIDICIONÁRIO AUTOBIOGRÁFICO

PARTE XXX

 

FESTA JUNINA - Eu estava na primeira infância e não posso, portanto, afirmar que o meu pai herdou do dele, o paiol de fogos de artifício, quando meu avô se mudou para o Jardim Botânico e nós ocupamos o apartamento que deixara vazio, o 103, da rua Cachambi; mas me parece que sim.

Numa noite junina, toda a família se reuniu no quintal e meu pai abriu o paiol que, na verdade, se resumia a uma caixa. Não havia morteiros, nenhum explosivo que nos ferisse os ouvidos e nos assustasse, e sim, buscapés. A alegria dos astrônomos, imprimindo os seus nomes na história da Astronomia ao descobrirem um cometa no céu, ficava longe da nossa com os buscapés, pois o contentamento das crianças é incomparável.

 Depois que todos os buscapés riscaram os ares, a atenção do meu pai convergiu para uma rodinha. Colocou-a no chão e acendeu o pavio.  Deus do céu, foi uma loucura! Girando, enquanto soltava fagulhas, ela veio atrás de mim e da minha irmã, nós dois corremos gritando alucinadamente. Com quase toda a sua energia queimada, a rodinha bateu numa reentrância do chão e pendeu para o lado, soltando as suas últimas fagulhas até apagar.  Tranquilos, agora, eu e minha irmã retornamos revigorados para a farra.

Então, vieram os balões japoneses. Meu pai acendia a pequena bucha branca e o nosso maior sonho naquele momento era que o balão iluminado ficasse pousado nas nossas mãozinhas adquirindo força para ganhar o céu. Não subia muito, mas isso não nos frustrava, pois a sua queda nas redondezas era outra razão de júbilo.

Quando a caixa se esvaziou, o que poderia significar o fim da festa, nosso pai nos surpreendeu: pegou folhas de jornal, amassou-as e uniu as suas pontas, enquanto olhávamos cheios de curiosidade. Isto é galinha preta. - disse para nós, que o rodeávamos. Aquele papel amarrotado ganhou, de fato, o formato de um frango depenado. Em seguida, ele colocou fogo numa das pontas e a subida da galinha preta sobre nossas cabeças reacendeu a nossa alegria.

Vieram outras festas juninas, a mais remota, depois dessa, foi na casa da minha avó na Rua General Padilha. O quintal era enorme, aliás, essa casa e a vizinha, a do Seu Teixeira, proprietário das duas, viriam a ser, depois de uma reforma radical, a primeira sede, em 1976, do SBT, canal 11.

No dia de um dos três santos, não me lembro qual, enfeitaram tudo com bandeirinhas e armaram mais ao fundo, longe do pé de jaca, uma fogueira que me pareceu de tamanho descomunal. Havia muita gente, muitos parentes, mas não senti a mesma felicidade daquela noite junina promovida pelo meu pai. Ficaram-me na memória apenas as bandeirinhas e as batatas doces retiradas das brasas das fogueiras e esfriadas pela minha mãe para eu comer.

Seguiram-se as festas juninas no colégio. As professoras do Colégio Manoel Bomfim, com a proximidade do mês de junho, já nos preparavam para o evento. Elas juntavam os grupos de alunos e alunas que dançariam a quadrilha e nos levavam até o pátio para o ensaio. No comando da marcação da dança, partiam as suas ordens num francês estropiado, mas ninguém, ali, estava interessado em saber que se tratava de uma tradição da nobreza da França do século XVII, que nos chegou através de Portugal. “Anarriê” (en arrière).  Os casais vão para trás – dizia a professora em bom português. “Alavantú” (en avant tous) – outra ordem, outro desentendimento. Todos os casais, agora, vão para frente – voltava a falar ela em português claro. “Olha o Túnel” - esta parte todos entendiam e gostavam de fazer. “Changê” (era o momento de os pares serem trocados). “Cumprimentos vis-à-vis” e os casais, frente a frente, se cumprimentavam. “Otrefoá” (autre fois”). A professora traduzia: “Outra vez”, e nós repetíamos o passo.

No dia da festa, não haveria traduções – deixavam as professoras isto definido – elas fariam as marcações em francês, apenas, porque era muito mais chique e impressionava mais.

A festa junina do ano em que eu cursava a Admissão foi o mais marcante; ensaiamos bastante no pátio, enquanto víamos e ouvíamos a barulhada vinda dos trabalhadores que armavam as arquibancadas que receberiam os espectadores: pais, parentes e vizinhos dos componentes da quadrilha, além da direção da escola.

Eu e minha irmã estávamos entre os dançantes e, para o nosso agrado, não formávamos um casal, nem no momento da troca, o nosso contato maior seria no “Olha o túnel”.

A festa duraria horas e o grande momento, a dança, estava marcada  para a tarde, às três ou às quatro horas, não me recordo bem. O que não me saiu da cabeça foi que, por volta das duas horas, escutei um estranho rangido e vi o rosto de pavor de uma professora. Meu Deus! - exclamou. Uma parte da arquibancada caiu. Ambulâncias com médicos, enfermeiros e macas não ocuparam os espaços exteriores da escola, nem corpos de mortos e feridos foram estendidos no lugar da dança da quadrilha, fora apenas um susto. Naquela hora, um número um pouco menor do que o de uma partida entre Canto do Rio x Portuguesa se achava ali, ou seja, seis ou sete pessoas, e elas não se machucaram. Isolada essa parte da arquibancada, a festa seguiu seu rumo.

Entendendo bem o francês arrevesado da nossa professora, a quadrilha fez bonito e mereceu aplausos, muitos aplausos, embora ninguém pedisse bis. Ainda bem.

Recordo-me de outra festa junina, num arraial armado em São Cristóvão, a que compareci por insistência de primos que moravam na Rua General Almério de Moura. Ela aconteceu no dia 14 de junho de 1970. Por que sei da data? Porque nesse dia houve o jogo Inglaterra x Alemanha, e as bandeirinhas, os balões, os quitutes, as barracas com seus desafios e brindes, não arrancavam o meu pensamento sobre o que acontecia no estádio de León no México.

Na Rua Chaves Pinheiro, diferentemente das duas onde morei; a tradição das festas juninas foi mantida pelo Lar de Júlia e pela casa da Dona Zita, uma vizinha. Eu comparecia às duas esporadicamente. Quanto à festa do Lar de Júlia, parece que acabou, enquanto a da Dona Zita, que faleceu há alguns anos, seus descendentes levam a festa junina adiante, sem ano para acabar.

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