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O BISCOITO MOLHADO
Edição 5077 Data: 02 de
abril de 2015
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MINIDICIONÁRIO AUTOBIOGRÁFICO
PARTE XXVI
DIABO – No verbete JULGAMENTO, eu aludo ao diabo como a
representação do mal, porque esse era o contexto; mas, na verdade, não tremo
nos alicerces e nem faço o sinal da cruz quando há referências a ele.
Quando vi o diabo pela primeira vez, eu
estava na primeira infância, tinha uns 5 anos de idade. Passávamos eu, meus
pais e meus irmãos alguns dias na casa da minha avó, na Rua General Padilha
(não sei por que razão), quando me deparei com a avermelhada figura; e não foi
só eu: minha irmã e meu irmão Claudio estavam comigo. O diabo parou no portão e
nós, três, aos gritos, corremos alucinadamente. Despertado, nosso pai veio ver
do que se tratava; encorajados com a sua presença, paramos de correr e lhe
apontamos o diabo no portão; ao virar o rosto para ver, o nosso susto passou
para ele. O capeta, enfiara através das grades do portão o seu comprido
tridente, que, a um palmo do nariz do meu pai, o fez estremecer. Meu pai não se
persignou, não vociferou “Vade retro, satana”, sorriu e nos
tranquilizou:
-Não é nada, é só o diabo. Continuem
brincando.
Apareceram depois, alguns morcegos, que
se juntaram ao capeta, e nós passamos a brincar de ter medo.
Foi animado o carnaval daquele ano na Rua
General Padilha.
Poucos anos depois, precisamente, em
1959, a Rádio Nacional conseguiu um dos maiores tentos da sua história: a
radiofonização da vida de Cristo. Ela entrava no ar todas as sextas-feiras
santas, em capítulos que iam da manhã à noite. Os primeiros tinham uma duração
de meia-hora ou um pouco mais, e o último capítulo, que se iniciava às 18
horas, ia da traição de Judas à ressurreição e durava de uma a duas horas, não
me recordo exatamente do tempo.
Mesmo não havendo, naquela época,
católicos praticantes de ir à igreja todos os domingos, como os torcedores de
futebol iam ao Maracanã, a nossa família se reunia em volta do rádio mal se
iniciava cada capítulo, e assim foi durante três ou quatro sextas-feiras santas.
Num desses capítulos, transmitidos de
tarde, Jesus Cristo está no deserto de Judeia, jejuando por 40 dias e noites,
quando gargalhadas estridentes quebra bruscamente o momento de recolhimento.
-É ele. - disse o meu pai.
Sim, era ele: o diabo, representado na
voz do radioator Rodolfo Mayer. E ouvíamos os dois, atentamente, as tentações
propostas por ele ao filho do Senhor.
Depois, eu o vi na ópera, em 1964,
quando encenaram “Mefistófeles”, de Boito, no Teatro Municipal do Rio de
Janeiro, em 1964. Na verdade, eu não vi, escutei a transmissão da récita pela
PRD 5, Rádio Roquette Pinto. Assistiria a essa ópera, muito tempo depois, em
VHS, numa representação de 1989, na Ópera de São Francisco, com o baixo Samuel
Ramsey no papel principal. A Noite de Walpurgis - o Sabbat – cena
do 2º ato, comandada pelo demo, é de uma animação que me fez lembrar os bailes
de terça-feira gorda de carnaval no clube Monte Líbano. Reforçou-se, então, a
minha ideia de que não havia nada de dantesco com o inferno e que o escritor americano Mark Twain
teve as suas razões para dizer que preferia o paraíso pelo clima e o inferno
pelas companhias.
Transcorreram muitos anos quando,
dirigindo meu FIAT, pela Avenida Dom Hélder Câmara, num sábado, ouvi
alucinantes gritos de “Sai... Sai... Sai...” que estremeciam o asfalto por onde
eu passava. Soube que eram os fiéis da Igreja Universal Reino de Deus
expulsando para longe o diabo.
A cantora Maria Betânia recusa canções
em que ele é citado, o cantor e compositor Roberto Carlos renegou o seu maior sucesso
dos anos 60, “Que tudo mais vá pro inferno”, e muitas pessoas menos conhecidas
se recusam terminantemente a falar o seu nome.
Para mim, o diabo é uma figura
carnavalesca; ótima para nós brincarmos de ter medo.
RELÓGIO – Tive o meu primeiro relógio com 13 anos de idade;
passei para um colégio do governo e o ganhei de presente do meu pai. Era
colorido, com números com luminosidade que sobressaíam na penumbra e um
tique-taque de despertador, mas para mim, o seu valor estimativo o equiparava a
um Rolex.
Quando caí, ao saltar do bonde andando,
a caminho do colégio, o moço que me socorreu disse: “Não foi nada... o seu
relógio não se quebrou...” Sim, ele chamava a atenção. Chamou ainda mais a
atenção quando, numa aula do Visconde de Cairu, naqueles raros momentos em que
toda a turma ficava em silêncio, o tique-taque do meu relógio soou
ensurdecedoradamente. Logo, a garotada localizou o barulho vindo do meu pulso
esquerdo e a gozação caiu sobre mim durante algum tempo. Mas não reneguei o
presente do meu pai, nem mesmo quando o vidro côncavo rachou, provavelmente
porque eu esbarrara inadvertidamente em alguma coisa e o mostrador ficou um
pouco exposto. Ele funcionava e era isso que valia para mim. Quando a fissura
se acentuou a ponto de os ponteiros ficarem sem proteção e um deles ter se
entortado, vi-me obrigado a aposentá-lo.
Passei para outros relógios, todos eles
baratos, até que, ao receber o meu primeiro salário de funcionário efetivado no
Serviço Público, fui incitado por uma amiga a comprar um relógio de verdade.
Para mim, relógio de verdade eram todos os que marcavam minutos e horas como
aqueles que eu já tivera, principalmente o primeiro. Ela disse que eu estava
enganado, que me levaria à Mary Joias para eu ver um. Tratava-se de uma loja
que se localizava na Rua do Rosário, quase na esquina com a Rio Branco. Lá, ela
me mostrou um Seiko Quartz, um relógio que, pela discrição, era a
antítese do meu primeiro. Com três parcelas mensais – o seu preço era um pouco
alto – passou a ser meu.
E ele me acompanhou durante anos e
anos. Eu dizia, orgulhosamente, que confiava mais nele do que nas horas
informadas pela Rádio Relógio.
Quando fui atropelado em 5 de março de
1986 por um Passat, saí com arranhões e ferimentos, enquanto o meu relógio
sobreviveu com uma leve arranhadura e uma sequela – o ponteiro dos segundos
passou a se locomover de dois em dois segundos. Ainda assim, o meu Seiko
não perdeu a sua precisão suíça, embora fosse japonês.
Perdi-o em 2003, a sua correia metálica
andava frouxa no meu pulso, e, num momento atribulado, sem que eu sentisse, ele
escorregou pela minha mão, caiu na rua e nunca mais o vi. Fiquei pesaroso;
havíamos passado por tantas experiências juntas, principalmente aquele
atropelamento.
Depois daquele relógio de verdade,
decepcionado, deixei a fidelidade de lado; compro, agora, relógios baratos,
descartáveis, de 15 reais; acabou a bateria, passo para outro.
Há pessoas que não conseguem sair de
casa sem celular, não é o meu caso. Desde os 13 anos de idade, eu não vou da
minha casa à primeira esquina sem um relógio no pulso. Fico sem falar no
telefone, mas não fico, desde os 13 anos de idade, sem ver as horas.
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