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terça-feira, 7 de abril de 2015

2827 - Endiabrado Dicionário Ortográfico


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O BISCOITO MOLHADO

Edição 5077                                      Data:  02 de abril de 2015

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MINIDICIONÁRIO AUTOBIOGRÁFICO

PARTE XXVI

 

DIABO – No verbete JULGAMENTO, eu aludo ao diabo como a representação do mal, porque esse era o contexto; mas, na verdade, não tremo nos alicerces e nem faço o sinal da cruz quando há referências a ele.

Quando vi o diabo pela primeira vez, eu estava na primeira infância, tinha uns 5 anos de idade. Passávamos eu, meus pais e meus irmãos alguns dias na casa da minha avó, na Rua General Padilha (não sei por que razão), quando me deparei com a avermelhada figura; e não foi só eu: minha irmã e meu irmão Claudio estavam comigo. O diabo parou no portão e nós, três, aos gritos, corremos alucinadamente. Despertado, nosso pai veio ver do que se tratava; encorajados com a sua presença, paramos de correr e lhe apontamos o diabo no portão; ao virar o rosto para ver, o nosso susto passou para ele. O capeta, enfiara através das grades do portão o seu comprido tridente, que, a um palmo do nariz do meu pai, o fez estremecer. Meu pai não se persignou, não vociferou “Vade retro, satana”, sorriu e nos tranquilizou:

-Não é nada, é só o diabo. Continuem brincando.

Apareceram depois, alguns morcegos, que se juntaram ao capeta, e nós passamos a brincar de ter medo.

Foi animado o carnaval daquele ano na Rua General Padilha.

Poucos anos depois, precisamente, em 1959, a Rádio Nacional conseguiu um dos maiores tentos da sua história: a radiofonização da vida de Cristo. Ela entrava no ar todas as sextas-feiras santas, em capítulos que iam da manhã à noite. Os primeiros tinham uma duração de meia-hora ou um pouco mais, e o último capítulo, que se iniciava às 18 horas, ia da traição de Judas à ressurreição e durava de uma a duas horas, não me recordo exatamente do tempo.

Mesmo não havendo, naquela época, católicos praticantes de ir à igreja todos os domingos, como os torcedores de futebol iam ao Maracanã, a nossa família se reunia em volta do rádio mal se iniciava cada capítulo, e assim foi durante três ou quatro sextas-feiras santas.

Num desses capítulos, transmitidos de tarde, Jesus Cristo está no deserto de Judeia, jejuando por 40 dias e noites, quando gargalhadas estridentes quebra bruscamente o momento de recolhimento.

-É ele. - disse o meu pai.

Sim, era ele: o diabo, representado na voz do radioator Rodolfo Mayer. E ouvíamos os dois, atentamente, as tentações propostas por ele ao filho do Senhor.

Depois, eu o vi na ópera, em 1964, quando encenaram “Mefistófeles”, de Boito, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, em 1964. Na verdade, eu não vi, escutei a transmissão da récita pela PRD 5, Rádio Roquette Pinto. Assistiria a essa ópera, muito tempo depois, em VHS, numa representação de 1989, na Ópera de São Francisco, com o baixo Samuel Ramsey no papel principal. A Noite de Walpurgis - o Sabbat – cena do 2º ato, comandada pelo demo, é de uma animação que me fez lembrar os bailes de terça-feira gorda de carnaval no clube Monte Líbano. Reforçou-se, então, a minha ideia de que não havia nada de dantesco com o  inferno e que o escritor americano Mark Twain teve as suas razões para dizer que preferia o paraíso pelo clima e o inferno pelas companhias.

Transcorreram muitos anos quando, dirigindo meu FIAT, pela Avenida Dom Hélder Câmara, num sábado, ouvi alucinantes gritos de “Sai... Sai... Sai...” que estremeciam o asfalto por onde eu passava. Soube que eram os fiéis da Igreja Universal Reino de Deus expulsando para longe o diabo.

A cantora Maria Betânia recusa canções em que ele é citado, o cantor e compositor Roberto Carlos renegou o seu maior sucesso dos anos 60, “Que tudo mais vá pro inferno”, e muitas pessoas menos conhecidas se recusam terminantemente a falar o seu nome.

Para mim, o diabo é uma figura carnavalesca; ótima para nós brincarmos de ter medo.

 

RELÓGIO – Tive o meu primeiro relógio com 13 anos de idade; passei para um colégio do governo e o ganhei de presente do meu pai. Era colorido, com números com luminosidade que sobressaíam na penumbra e um tique-taque de despertador, mas para mim, o seu valor estimativo o equiparava a um Rolex.

Quando caí, ao saltar do bonde andando, a caminho do colégio, o moço que me socorreu disse: “Não foi nada... o seu relógio não se quebrou...” Sim, ele chamava a atenção. Chamou ainda mais a atenção quando, numa aula do Visconde de Cairu, naqueles raros momentos em que toda a turma ficava em silêncio, o tique-taque do meu relógio soou ensurdecedoradamente. Logo, a garotada localizou o barulho vindo do meu pulso esquerdo e a gozação caiu sobre mim durante algum tempo. Mas não reneguei o presente do meu pai, nem mesmo quando o vidro côncavo rachou, provavelmente porque eu esbarrara inadvertidamente em alguma coisa e o mostrador ficou um pouco exposto. Ele funcionava e era isso que valia para mim. Quando a fissura se acentuou a ponto de os ponteiros ficarem sem proteção e um deles ter se entortado, vi-me obrigado a aposentá-lo.

Passei para outros relógios, todos eles baratos, até que, ao receber o meu primeiro salário de funcionário efetivado no Serviço Público, fui incitado por uma amiga a comprar um relógio de verdade. Para mim, relógio de verdade eram todos os que marcavam minutos e horas como aqueles que eu já tivera, principalmente o primeiro. Ela disse que eu estava enganado, que me levaria à Mary Joias para eu ver um. Tratava-se de uma loja que se localizava na Rua do Rosário, quase na esquina com a Rio Branco. Lá, ela me mostrou um Seiko Quartz, um relógio que, pela discrição, era a antítese do meu primeiro. Com três parcelas mensais – o seu preço era um pouco alto – passou a ser meu.

E ele me acompanhou durante anos e anos. Eu dizia, orgulhosamente, que confiava mais nele do que nas horas informadas pela Rádio Relógio.

Quando fui atropelado em 5 de março de 1986 por um Passat, saí com arranhões e ferimentos, enquanto o meu relógio sobreviveu com uma leve arranhadura e uma sequela – o ponteiro dos segundos passou a se locomover de dois em dois segundos. Ainda assim, o meu Seiko não perdeu a sua precisão suíça, embora fosse japonês.

Perdi-o em 2003, a sua correia metálica andava frouxa no meu pulso, e, num momento atribulado, sem que eu sentisse, ele escorregou pela minha mão, caiu na rua e nunca mais o vi. Fiquei pesaroso; havíamos passado por tantas experiências juntas, principalmente aquele atropelamento.

Depois daquele relógio de verdade, decepcionado, deixei a fidelidade de lado; compro, agora, relógios baratos, descartáveis, de 15 reais; acabou a bateria, passo para outro. 

Há pessoas que não conseguem sair de casa sem celular, não é o meu caso. Desde os 13 anos de idade, eu não vou da minha casa à primeira esquina sem um relógio no pulso. Fico sem falar no telefone, mas não fico, desde os 13 anos de idade, sem ver as horas.

 

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