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sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

2782 - Grande Dicionário Biográfico


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O BISCOITO MOLHADO
Edição 5032                               Data: 24 de  janeiro de 2014
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MINIDICIONÁRIO AUTOBIOGRÁFICO
PARTE III

    BICICLETA – a tragédia de um primo nosso ter morrido por causa de uma queda da bicicleta – bateu com o crânio no chão – exacerbou ainda mais a inclinação alarmista dos meus pais; esse brinquedo foi colocado no índex expurgatório deles.  Ficou determinado que eu e meus irmãos, que começamos com patinete, chegamos ao velocípede – há uma fotografia minha de camisa e bunda de fora, na casa da minha avó, quando eu estava com dois ou três anos de idade – não chegaríamos à bicicleta.
    Meus dois irmãos conseguiram burlar a vigilância mórbida dos nossos pais e aprenderam a andar. Aquilo que talvez seja o único brinquedo que, na nossa vida adulta, não perde a utilidade, pelo contrário, ganha em importância nos dias poluídos de hoje, já era dominado pelo Claudio e pelo Lopo. Eu, com quinze anos de idade, permanecia parado no tempo em que me transportava de camisa e bunda de fora num velocípede.
    Seu Jorge, um motorista de ônibus brutamonte, vizinho que morava na Casa 5 da vila, se a memória não me trai, sabedor da minha frustração, garantiu que ela se acabaria. Apareceu uma bicicleta não sei de onde e ele ordenou que eu subisse nela. Para que eu não caísse, a sua mão vigorosa como uma tenaz era a terceira no guidom.  Gritava que eu não inclinasse o corpo para a esquerda, eu o obedecia, e nada de a bicicleta rodar com os meus dois pés no pedal.  Em seguida, sua reclamação era porque o meu corpo caía para a direita, eu me posicionava como ele queria, e nada. Foram muitas as tentativas, muitos os gritos do meu professor que tinha boas intenções e bons pulmões, até nós desistirmos.
    Anos depois, pensando nessa aula, cheguei à causa do fracasso: sem saber, eu apertava os freios durante todo o tempo.
    Quando eu li uma entrevista do presidente da Constituinte de 1988, o deputado Ulysses Guimarães, em que ele cita como um dos maiores desapontamentos da sua vida não ter aprendido a andar de bicicleta, eu me identifiquei inteiramente como ele. Eu não era o único.

    COLA – Para mim, cola era goma arábica.
    Depois de eu me mostrar um desastre na escola e cair da Turma 3 para a Turma 1 (dos retardadinhos, creio). Nunca saiu da minha mente o sofrimento que passei quando a professora exigiu que nós formássemos uma frase sem o “é” - para mim, tudo, gente ou não, só podiam ser alguma coisa. Comecei a me reabilitar quando fui rebaixado. 
    Dona Tereza, a nossa professora pediu aos alunos que estudassem para o dia seguinte, pois daria uma prova de ditado. Minha mãe me preparou com o maior interesse e eu correspondi ao seu esforço. Depois de um tempo, ela me considerou tão afiado que me disse que eu não deixasse ninguém olhar a minha prova, fato que eu não suspeitava que acontecesse. Mas aconteceu: mal a Dona Tereza ditou mais uma palavra, um colega me tocou no ombro e me pediu que lhe mostrasse o que eu escrevera. Fui obediente à minha mãe e soube, pela primeira vez, que cola não era só a goma arábica.

    NOVELA – Era de manhã e de tarde, minha mãe ligava o rádio, sintonizava na Nacional e exigia silêncio, pois a novela ia começar. Com a minha irmã não ralhava, pois logo se juntou a ela como ouvinte assídua de todos os capítulos. Os mais próximos a que nós, homens da casa chegávamos era acompanhar “O Cavaleiro da Noite”, “O Anjo” e “Jerônymo, o Herói do Sertão”, que durava das 18 às 19, horas, até entrar “A Voz do Brasil” e acabar com a festa. Havia também o “Teatro de Mistério”, na mesma emissora, que não era xaroposo, lá pelas 21 horas, que também prendia a nossa atenção. 
    Com 16 para 17 anos de idade, passei um bom tempo na casa da minha avó materna. Foi em 1964, assim que espocou a Revolução. Não se apagou da minha memória a estranheza da minha mãe e da minha irmã com as muitas alterações nos elencos da Rádio Nacional; excelentes teleatrizes e teleatores eram substituídos por outros, muitos desconhecidos, que ficavam muito aquém do talento dos afastados.
    Como eu dizia em textos pretéritos, passei alguns meses na casa da minha avó e o cenário não mudou muito; ela também ficava grudada no rádio para ouvir novelas.
    Enquanto isso, eu escarafunchava a sua estante e lá encontrei “O Direito de Nascer” que, durante muitos anos, foi o paradigma do drama radiofônico. A história saiu em fascículos, semanalmente, nas bancas de jornal, minha avó comprou todos, sem exceção, e providenciou a encadernação dos mesmos em capa dura. Assim, “O Direito de Nascer” se transformou em quatro alentados volumes que perfaziam umas mil páginas. 
    Já confessei isto em algum texto perdido: li os quatro volumes; as letras grandes também me ajudaram.
    Depois, as novelas e os novelistas se transferiram do rádio para a televisão, e os aficionados os seguiram fielmente.
    Outro dia, advertido pela minha irmã, porque falava, enquanto ela, a filha e a neta assistiam a um capítulo de uma novela, na televisão, emudeci. São cinco gerações, não se afronta uma dinastia de noveleiras.

    MEDALHA – No colégio 9-10 Manoel Bomfim, onde cursei o primário, chamava-me a atenção o número de medalhas da Neide. Ficou mais marcado o nome dela na minha memória do que as das próprias professoras por causa das medalhas que eram tantas quantas as que ostentavam os ditadores latino-americanos ou de outros países economicamente atrasados. Não fossem esses troféus pendurados na camisa dela, ocultando o E.P. , eu nunca saberia o seu nome, pois, da primeira séria à admissão, eu nunca fui colocado na turma mais adiantada,
    Eis que eu ganho uma medalha; eu era da Turma 1, a mais atrasada da Manoel Bomfim, em que só três alunos passaram para a segunda série. Fiz uma boa prova e fui laureado. Não era uma medalha dourada, como as muitas que a Neide carregava, mas sim prateada; mas, para a minha mãe, aquilo era ouro puro.
    Naquele tempo, nós, da Escola Pública, tínhamos dois dias sem aulas na semana: quinta-feira e domingo. Tomada pelo orgulho, minha mãe me vestiu com o uniforme escolar, numa quinta-feira, com a medalha pendurada na frente da minha camisa e me levou do Cachambi a São Cristóvão, na rua General Padilha, onde morava a minha avó e madrinha.  Ela tinha de ver a façanha do seu neto e afilhado.
    Que vergonha! Senti-me nu, pelas ruas, vestido apenas com uma medalha.

Um comentário:

  1. Onde se lê:: " para mim, tudo, gente ou não, só podiam ser alguma coisa. " Leia-se: "para mim, tudo, gente ou não, só podia ser alguma coisa."

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