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segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

2774 - na porta do xadrez 1


 

 

 

           

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O BISCOITO MOLHADO

Edição 5024                                   Data: 15 de  janeiro de 2014

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“TEJE PRESO”

PARTE I

(Nota: alguns nomes receberam asteriscos, porque o caso é verídico)

 

Cheguei do trabalho, na semana passada e meu irmão rumou em minha direção, com um papel dobrado, pisando em ovos. Eu, evidentemente, estranhei.

-Carlinhos, chegou um negócio agora... A mamãe não pode saber. É da polícia, uma intimação; um agente veio, me entregou e eu tive de assinar o recebimento.

Reagi indignado:

-Espera lá; o meu maior envolvimento com a Petrobras são umas poucas ações que comprei há 12 anos e hoje estão na bacia das almas.

-Não tem nada a ver com a Petrobras. - disse ele sem altear a voz para que a nossa mãe não nos ouvisse.

-Se não é a Operação Lava-Jato, não é também a Operação Porto Seguro, que envolve a Marinha Mercante. Também fui vítima; pois me designaram, em 2013, para ir a um simpósio sobre terminais marítimos na Barra da Tijuca e, chegando lá, passei pelo constrangimento de ter de voltar porque a ANTAQ não liberara a verba; enquanto isso, o diretor, com a desculpa de que faria uma palestra sobre poluição,  passeava em Copenhague.

-É melhor você ler logo este papel.

E me passou a intimação.

-Se o intimado não comparecer na delegacia na terça-feira, às 10h, para prestar declarações incorrerei no crime de Desobediência, previsto no artigo 330 do Código Penal. - li em voz baixa, pois a nossa mãe já estranhava a duração da conversa entre nós dois.

-O agente da polícia, que me entregou esta intimação, pensou que eu fosse você, até me tratou com muita cortesia.

-Espera lá, Lopo: o processo é de 2004.

-Você se lembra de alguma coisa?... indagou-me com a voz quase inaudível.

Se eu fosse como aquele chefe de família, personagem de “A Vida Como Ela É”, do Nélson Rodrigues, perguntaria: “Será que descobriram alguma safadeza minha?”, mas não era o caso.

-O que houve? - perguntou-nos a nossa mãe já picada pela pulga atrás da orelha.

-Eu estou falando com o Carlinhos do ar condicionado que você vai comprar.

Ele se juntou a ela e os dois se afastaram. Sozinho, pensei no que faria. Meu irmão Claudio foi logo descartado, não era caso para advogado. Luca – veio-me à mente como o Eureka de Arquimedes. Ele trabalhou no sistema de segurança do Unibanco e conhece todas as delegacias espalhadas pelo Rio de Janeiro.

-Então, foi isso. - resenhei-lhe o caso pelo telefone.

-Carlinhos, deveria ser um convite, não uma intimação.

Depois dessa ressalva, prontificou-se a me acompanhar até a delegacia no dia designado.

O que houve para que me intimassem? - era a pergunta recorrente, pois do processo só vinha, na intimação, o número que, aliás, eu passei para o Luca e ele, na pior das hipóteses, teria um bom palpite para o jogo do bicho.

O que está narrado acima se deu numa quinta-feira. No dia seguinte, recebi, de manhã, três ligações do Luca; na primeira, quase não o deixei falar.

-Eu tive um Gol 1983, e, com ele, capotei na Serra Mato Grosso, Maricá, em 1994. Vendi os destroços para um mecânico da Rua Bamboré por 500 reais. Ele recuperou o carro e o vendeu. Passaram dois meses, vieram duas multas para mim por infração de trânsito. O cara não tinha passado o carro para o nome dele. Depois, não veio mais multa, eu fiquei descansado e não dei baixa no DETRAN.

-Carlinhos, eu acredito que é alguma coisa relacionada com carro. Vamos ver.

Na segunda ligação, Luca me disse que acionara um colega seu que trabalhava na segurança do Itaú-Unibanco, que se achava de férias em Cabo Frio.

-Ainda assim, ele mexeu no computador com o número do processo e descobriu que se trata de uma ação perpetrada pelo Unibanco.

-Que coincidência!

-Com isso, Carlinhos, ele começou a me sacanear... perguntou se não era alguma falcatrua que eu tinha cometido.

Em seguida, a sua voz se tornou séria:

-Carlinhos, você conhece algum José Mauro Dantas*?

-Nunca ouvi falar.

-Esse cara abriu uma conta fria no Unibanco. Mas meu colega não pôde ir além disso; dei-lhe seu nome e ele não conseguiu ver mais nada.

Assim, fiquei tranquilo quanto aquele fantasmagórico Gol.

-Eu ainda vou ver mais. - prometeu antes de desligar.

No terceiro telefonema, informou-me que foi até a 23ª Delegacia, próxima à sua casa e tudo o que fora dito anteriormente estava confirmado; e que, por problemas de “alçadas”, o delegado não conseguiu abrir mais telas e chegar ao porquê dessa intimação e nem a razão de o meu nome constar nela.

-Carlinhos, o jeito é ir lá, na terça-feira, às 10 horas como está determinado, para saber.  Fique tranquilo.

No sábado, fiquei ainda mais tranquilo quando o meu irmão Claudio, ao saber do ocorrido, garantiu que levaria livros e revistas para mim na cadeia.

Na segunda-feira, para ser mais contundente na minha falta ao serviço, no dia seguinte, mostrei ao meu chefe imediato o papel.

Ele leu e sorriu, enquanto eu lhe dizia que os termos eram muito duros.

-É assim mesmo que nós intimamos às empresas de navegação. - manifestou-se.

Sim, mas há diferenças superlativas: intimar pessoa jurídica é mais brando do que pessoa física, além de uma coisa é estar submetido ao Direito Administrativo, outra, ao Direito Penal.

-”Amigo é pra essas coisas”. - diria o Luca quando se prontificou a me levar, no seu carro, à delegacia designada na intimação.

-Está marcado para as 10h. Eu não sei mais se a Rua Uruguai dá mão... Passarei pela sua casa às 8h 40min.

Pontualidade britânica e precisão suíça. Entrei no seu carro, com um envelope na mão, que logo passei para ele.

-São alguns exemplares do Biscoito Molhado para a Rosa Grieco.

-Trouxe a intimação? - preocupou-se.

Tateei o bolso da camisa.

-Está aqui,

Aliviado, pediu-me para lembrá-lo das cartas delas e dos recortes de jornais que estavam endereçados a mim.

-No xadrez, eu terei tempo de ler isso tudo.

As cartas da Rosa sempre são interessantes, mesmo quando ela as faz longas por não ter tempo para fazê-las curtas, como escreveu, certa vez, reportando-se a Pascal. Quanto aos recortes de jornal, nada que não acrescente alguma coisa ao nosso saber. Nada de Luís Fernando Veríssimo, quando fere o provérbio latino, “Ne sutor ultra crepidam” - Não vá o sapateiro além das sandálias”-, escrevendo sobre economia, ciência que ele desconhece. Nada de artigos do filho do compositor e violonista João Bosco em que ideias mambembes são revestidas com um estilo pretensioso. A música do pai é muito melhor.

Mas fiz uma crítica à Rosa:

-Ela escreveu que morre de rir quando se depara, no Biscoito Molhado, com a palavra petiz.

-Por quê?

-Porque alega que a palavra é obsoleta, bolorenta. Logo ela que usa verbetes pouco rotineiros, ela que tem um vocabulário rico.

Luca sorriu, e eu prossegui.

-Pensei em remeter à Rosa várias citações em que a palavra petiz substitui criança, como uma do Chico Buarque na música que ele endereçou ao Ciro Monteiro.

Chicólogo, o Luca prontamente cantou o trecho a que me referi,

-”Minha petiz/ agradece a camisa/ que lhe deste à guisa/de gentil presente...”

Depois, tratamos do atentado terrorista ao tabloide “Charlie Hebdo”, em Paris, assunto de nove entre dez diálogos pelo mundo atualmente.

-Luca, fiquei indignado com a matança, mas aquelas charges... Não vou nem me ater às piadas religiosas; há um desenho em que é mostrada uma ministra francesa negra, originária da Guiana, e, do lado, uma macaca com a cara dela.

-É, Carlinhos, mas é a liberdade de expressão que vem desde a Revolução Francesa.

-Li essa crônica do Luís Fernando Veríssimo. Ele não se lembrou que Marx foi expulso da Alemanha e, depois, da França, que só pôde escrever sossegadamente na Inglaterra. Esqueceu-se do Caso Dreyfus, o capitão do exército francês que foi enviado para a prisão na Ilha do Diabo, onde ficou anos, por ser judeu.

A procura de um lugar para estacionar o carro interrompeu o meu discurso.

-Aqui, nesta praça, há uma vaga.

-Que beleza! Bem arborizada. - assinalei.

-Como é o nome dessa praça?...

Era escusado me perguntar, pois eu só conhecia a Tijuca das grandes salas de cinema. Luca não se fez de rogado, abordou uma senhora e lhe dirigiu essa pergunta.

-Praça Xavier de Brito.

-Como eu me esqueci! Eu trazia a minha filha Carolina aqui para andar de charrete. - disse-me.

Voltou-se para a senhora tijucana que permanecia para ouvir elogios ao seu bairro.

-Ainda há esses passeios de charrete?

-Só aos domingos.

Bem, a justiça chamava; não podíamos reviver mais os bons tempos. A senhora reiniciou o seu passeio e nós rumamos para a delegacia.

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