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sexta-feira, 24 de maio de 2013

2382 - trinchas, brochas e pincéis 2




O BISCOITO MOLHADO
Edição 4182                                   Data:  06 de  Maio de 2013


88ª VISITA À MINHA CASA
2ª PARTE

-E aconteceu o que sua mãe tanto temia, quando você partiu para Paris: o seu apetite voraz pelas mulheres e o seu fraco pela bebida alcoólica.
-Meu pai muitas vezes chegou bêbado aos seus domínios e foi ordenhar as vacas.  Ele era também atraído pelas mulheres, mas ficou bem mais contido porque não estava em Paris.
-Você também herdou dele o amor pelas artes.
-Havia semelhanças entre nós, mas, como já disse, nós não nos harmonizávamos. Eu gostava mesmo era da minha mãe.
-Vivendo com os boêmios de Paris, você inventou o “terremoto”.
Com um sorriso, ele disse em sua língua o nome do coquetel que concebera:
-”Tremblement de Terre”.
-Em que consistia o ”Tremblement de Terre”?
-Uma mistura de metade de absinto e metade de conhaque, servido em copo de vinho batido com gelo em coqueteleira.
-Com o absinto tendo 70% de teor alcoólico, imagino o estrago que isso fazia.
-Depois de um trago, você se sentia em Lisboa em 1º de novembro de 1755, ou em Pompeia em 24 de agosto de 79.
Depois de rir, como se fosse uma peraltice de criança, foi adiante:
-Falaram que a minha bengala era oca para eu inserir bebida nela, mas muitas coisas foram faladas sobre mim.
-No Jardim de Père Foret, um oásis no meio da agitação de Montmartre, você pintou uma série de óleos ao ar livre de Carmen Gaudin.
-A minha musa ruiva.
-Ela era prostituta e modelo, e você a retratou como lavadeira.
-”A Lavadeira” de 1888 é um dos meus orgulhos de pintor.
-Nessa época, você estava muito ligado a Degas.
-Éramos vizinhos; pintei a sua amante e modelo Suzanne Valadon.
-Ela se tornaria sua amante também.
Não se importando com a minha indiscrição, seguiu adiante.
-Retratei-a à mesa, frente a uma garrafa e a um copo em “Gueule Bois” ( “Ressaca”).
-A expressão dela está perfeita.
-Eu conhecia os efeitos da ressaca como poucos.
-Você desenhava como ninguém, produzia cartazes litográficos, revolucionou o desenho gráfico e definiu o estilo que seria chamado de Art Nouveau.
-Eu pretendia que a arte alcançasse um público bem maior do que o que frequentava galerias e museus.
-E conseguiu sem que seu valor se perdesse. - frisei.
-Então, em 1889, foi inaugurado o Moulin Rouge e a sua atenção se desviou do Moulin da la Galette para lá. - prossegui.
-O dono do Moulin Rouge me pediu um poster para difundir a nova casa de entretenimento.
-E você criou o que poderia ser chamado de o primeiro poster moderno.
-Bem, foram afixados vários posters do Moulin Rouge em paredes, árvores, vidraças, mas as pessoas os arrancavam para levar para casa como se fosse uma obra artística.
-E eram; você tirou a arte do seu pedestal e a levou às pessoas comuns. As prensas, as reproduções mecânicas, frutos da revolução industrial, se encarregavam de multiplicar o seu trabalho.
-Vejam a ironia da sorte: eu, um nobre apequenado pelas exigências da aristocracia, popularizando o que estava restrito aos mais ricos.
-O seu dom era reconhecido tanto pelos connoisseurs como pela... digamos, escumalha.
-Pelos conhecedores e pelas classes mais baixas, você quer dizer?
-Isso.
-Bem, a crítica não me atacava como fazia com alguns colegas meus. Orgulho-me de ter participado do Salão dos Independentes, em Paris, da exposição dos Vinte e das galerias de Boussod e Valadin.
-O surgimento do Moulin Rouge sacudiu Paris e, de certo modo, a sua vida.
-Lá, mais do que em qualquer lugar, víamos os mais diversos tipos de pessoa; até o futuro rei da Inglaterra, Eduardo VII, lá esteve.
-Mas o nobre que sentiu o cabaré Moulin Rouge como o seu habitat natural foi você, Toulouse-Lautrec.
-Era a minha casa e eu considerava todos ali meus parentes. As prostitutas eram minhas irmãs. É verdade que cometi muitos incestos... - sorriu maliciosamente ao encerrar sua intervenção.
-Lá, você teve assento cativo e retratou como ninguém a vida noturna parisiense.
-Pintei principalmente as cantoras e dançarinas, que eram em maior número.
-Mostrou para a posteridade a comedida e discreta dançarina Jane Avril, bem como Louise Weber. Esta, efusiva, sem freios, porém cativante, que era conhecida como La Goulue (A Gulosa).
-Eu me dava muito bem com Louise Weber.
-Foi ela que criou o movimento mais ousado do Cancan. - observei.
Fez-se uma pausa, e fui adiante:
-Muitos pintores, Degas, entre eles, pintaram muitas prostitutas, mas ninguém chegou à sua excelência em captar o verdadeiro espírito dessas moças.
-Eu as pintei com a naturalidade em que elas viviam, não melancólicas, como muitos pintores a viram. Eu, afinal, mergulhei na vida dos bordéis. Via no dia a dia, prostitutas, cafetinas, fregueses.
-Um dos seus quadros mais conhecidos retrata essas mulheres sentadas num largo divã onde há um lugar vazio.
-O lugar ficou vazio porque me levantei para pintá-las. - disse com uma gargalhada.
-É isso que o observador logo pensa: esse lugar no divã é do Toulouse-Lautrec, que se ausentou por alguns minutos.
-Contam que o marchand Maurice Julien, sempre que o procurava em casa, era informado que você estava no bordel.
-Não entendo porque ele não se dirigia direto para o bordel, quando queria me ver.
-Bem, Toulouse-Lautrec, a exaustão, a sífilis e o alcoolismo desses dias loucos, folles journées, apresentaram-lhe a conta.
-E eu tinha tanto o que fazer ainda...
Após esse lamento, prosseguiu:
-Eu delirava, sentia-me paralisado. Internaram-me, então, numa clínica psiquiátrica para desintoxicação.
-Você já era popular; atingido como foi pela doença, as suas obras foram mais requisitadas ainda.
-Escrevi para o meu pai lembrando-lhe o que me dissera na minha juventude, que o confinamento mata.
-Ele também lhe disse que a vida saudável era ao ar livre sob o sol.
Parecendo não se importar com minhas palavras, Toulouse-Lautrec disse que, logo quando pôde saiu daquele lugar.
-Meu marchand Maurice Julien me propôs uma ampla exposição da minha obra. Como aquilo me animou! Fiquei praticamente cem dias no ateliê pintando febrilmente e colocando tudo em ordem; cataloguei todas as minhas obras.
Como se sentisse que o fim estava próximo. - pensei, mas nada disse.
-Sem bebidas e mulheres, minha atenção se voltou exclusivamente para as telas de pintura.
-O seu último grande quadro, para muitos, tem como tema um exame de medicina de Paris. Esse exame não é amistoso, não é acadêmico, é, na verdade, um interrogatório.
-Passei por vários exames médicos, não como estudante, mas como paciente; então, esses momentos sempre foram tensos para mim, e os levei para essa pintura.
-Logo depois, o mal voltou e o atingiu com toda força.
-Tive um derrame cerebral e morri nos braços da minha mãe com trinta e seis anos.
-Foram poucos anos de vida, mas a sua obra, para a nossa felicidade, foi profícua: mais de 1000 quadros, 5000 desenhos com 363 gravuras e cartazes.
-Se eu não vivesse parte da minha vida nos bastidores do submundo, criaria tanto? - indagou com inflexão afirmativa.
-Toulouse-Lautrec, a sua cidade natal, Albi, montou, no Palácio do Bispo, em 1922, um museu com as suas obras. A partir de então, é um local de peregrinação de turistas e estudiosos.
-Não sei se ouviu as minhas palavras sobre o reconhecimento que as gerações futuras também lhe dedicaram, pois partiu enquanto eu falava.


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