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segunda-feira, 13 de maio de 2013

2375 - O primeiro pintor

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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4175                                      Data:  21 de  Abril de 2013
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87ª VISITA À MINHA CASA

-Eu já não dormia direito... Morador de uma localidade que homenageia tantos pintores e não ter recebido, até hoje, a visita de nenhum deles.
-Modigliani não pôde vir, eu o substituí.
-Modigliani, como disseram Verdi e Boito sobre Desdêmona, “nasceu sob uma maligna estrela”.
-Vim eu e, pelo que vi, sou nome de uma rua espaçosa e asfaltada. - brincou Renoir.
-Você merecia bem mais.
-Eu até penso em sair daqui e conversar com os moradores.
-Não faça isso, Renoir, porque eles nunca pronunciam direito o seu nome.
-Então, em vez de mim, deveria vir Gaugin.
-Pior ainda. - assustei-me com o “gôgim” que soava ainda nos meus ouvidos.
-O sol daqui inspira um bom quadro. - disse, olhando pela janela.
-Jean-Pierre Renoir, você foi o mais sensual e descontraído de todos os pintores impressionistas. Sua obra é uma celebração da vida.
-Gosto de pinturas em que eu gostaria de caminhar, se forem paisagens, e de acariciar, se forem mulheres.
-De todos os impressionistas, você foi o mais preso à tradição.
-Pintei em porcelanas, quando era garoto, caprichando na precisão dos traços.
-Como foi isso? Mas conte desde o início.
-Meu pai era alfaiate e minha mãe, costureira. Fui o sexto de sete filhos. Éramos de Limoges, mas nos mudamos, quando eu tinha 3 anos de idade, para uma casa perto do Louvre, em Paris.
-A proximidade do Louvre despertou, certamente, sua inclinação pelas artes plásticas. - antecipei-me.
-Estudei até os 13 anos de idade e saí da escola, pois queria pintar de verdade. Meus pais não se opuseram. Trabalhei, então, na fábrica de porcelana dos Irmãos Lévy, onde pintava flores e buquês em artigos de porcelana. Com 17 anos, passei para outro trabalho e os meus traços passaram a reproduzir temas religiosos. Também pintei em leques e tecidos o que me trouxe um dinheirinho.
-Você era de uma família pobre, sabia o valor do dinheiro.
-Não era apenas o interesse argentário, se eu não me divertisse pintando, procuraria outra coisa para  fazer.
-Com 21 anos de idade, você alcançou a sua meta: entrar para a “Escola de Belas Artes”.
-Foi em 1862, ano em que tive aulas no ateliê de Charles Gleyre e conheci Sisley, Monet e Bazille.
-Nomes que, com o seu, revolucionariam a arte.
-Nós colocávamos em prática as ideias que nos ocorriam nas nossas longas conversas. Saíamos dos ateliês e pintávamos muito ao ar livre, em Argenteuil.
-Em 1863, você abandonou a “Escola de Belas Artes” e foi pintar sob o sol e as folhagens da floresta de Fontainebleau?
-Sim. No ano seguinte, apresentei “A Esmeralda, no Salão de 1864. A obra recebeu alguns elogios, mas eu a repudiei.
-Os seus primeiros grandes quadros foram 15 óleos em que a modelo foi Lise Trèhot.
-Também minha musa, pois eu estava apaixonado por ela. Tinha ela 19 anos de idade.
-Dos 15 óleos, destacou-se “Mulher com sombrinha”, pintada na floresta de Fontainebleau. - frisei.
-Tenho orgulho dessa minha primeira grande pintura.
-O branco nunca esteve tão maravilhoso num quadro, nele se aprecia o modo como você lidou com a sombra e a luz.
-Você elogia a cor branca do vestido da “Mulher com sombrinha”, mas houve críticos engraçadinhos que escreveram que parecia “um queijo meio mole indo passear...”
-Zola enalteceu a “Mulher com sombrinha”, disse que ela era a representação das nossas esposas, das nossas amantes. - lembrei.
-Fico mais preocupado com esse elogio do Zola do que com os críticos do “queijo mole”. - disse com um olhar que expressava precaução.
-O seu décimo quinto óleo com Lise Trèhot foi “Mulher com periquito”, pintado em 1871.
-A tragédia baixou sobre a França com a guerra contra a Prússia de Bismarck. Eu me alistei na cavalaria, mas fui afastado com uma doença intestinal. O talentoso Bazille morreu em combate.
-Vocês nasceram para pegar em pincéis, não em armas.
E mudei de assunto:
-Em 1870, você já se enquadrava na escola impressionista.
-Na 1ª Exposição Impressionista. Apresentei quatro pinturas. Gostaram mais de “La Loge” (o camarote) em que retratei meu irmão de binóculos e a minha amante, na época.
-Em “La Loge”, você usou admiravelmente o negro.
-A cor negra é a rainha de todas as cores. - afirmou.
-Você vendeu esse quadro por 425 francos.
-Deu para alugar um apartamento em Montmartre,
-Depois, você pinta mais uma das suas obras-primas, “Moulin de la Galette”.
-Lá, em Montmartre, havia um doce, “galette” e um moinho de vento, então, o nome “Moulin de la Galette”, onde havia uma salão de dança.
-Nunca uma cena da vida cotidiana foi retratada numa tela de tal dimensão.
-Eu tinha tudo na cabeça e pintei aquela cena ao ar livre no meu ateliê.
-A luz filtrada através das árvores une todas aquelas figuras.
-Reproduzir a luz matizada com o sol se infiltrando entre as folhagens, formando sombras dançarinas, era uma das minhas obsessões.
-Você não desdenhou os burgueses como alguns colegas seus, pois não era tão extremado.
-Pintei “Madame Georges Charpentier e suas filhas”. Um delas era, na verdade, filho, pois se vestiam as crianças como meninas, na época.
-Madame Charpentier era rica e recebia os artistas, como o compositor Massenet. - acrescentou depois de uma pausa.
-Esse quadro levou Proust a compará-lo a Ticiano, pela exuberância.
-Exagero do grande escritor. - sorriu.
-Bem, você já conseguia um bom rendimento com o seu trabalho.
-Deixe-me falar de Aline Henriot. Ela era lavadeira e ganhava como modelo também; pintei-a com um amigo. Depois, ela se tornou minha amante, até que nós nos casamos.
-Eu sei; tiveram três filhos: Pierre, Jean e Claude. Jean Renoir viria a ser um grande cineasta, dirigiu “A Regra do Jogo” e “A Grande Ilusão” que muitos críticos colocam entre os dez maiores filmes de todos os tempos.
-Quando Claude nasceu, em 1901, eu estava com 60 anos. Pintei-o, em 1904, vestido de menina. Todos três filhos foram retratados por mim.
-Em meados dos anos 80, do século XIX, você entrou em crise com o impressionismo.
-Viajei a Itália e fiquei fascinado com os renascentistas, principalmente Rafael. Meus traçados ficaram mais marcantes, como se eu voltasse às porcelanas.
-E pintou muitos nus.
-As mulheres nuas nunca saíam da minha mente de artista. Tentei tornar-me um pintor em estilo renascentista.
-Nem os achaques da idade interromperam o seu ímpeto criativo.
-Pintei na cadeira de roda, pintei quando sofri de artrite. E quando piorava a crise, eu amarrava o pincel às mãos.
-Mesmo em idade avançada, a sua palheta irizada se fez presente quando você pintou “Banhista enxugando a perna direita”.
-Aline morreu em 1915 e eu sobrevivi por cinco anos. - interrompeu-me.
-Morreu dormindo, aos 78 anos de idade.
-Eu constatava, nessa época, que a arte, em volta, decaía por falta de ideal. - disse, enquanto desaparecia.

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