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quinta-feira, 23 de maio de 2013

2381 - trinchas, brochas e pincéis

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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4181                                    Data:  05 de  Maio de 2013
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88ª VISITA À MINHA CASA

-Toulouse-Lautrec, o primeiro artista que desviou o patrocínio da pintura da igreja e da nobreza para atender o comércio crescente advindo da Revolução Industrial sem deixar de fazer uma grande arte. - vibrei com a visita.
-Veja a ironia; eu era de família nobre.
-Sei que seus ascendentes remontam aos condes de Toulouse que se casaram com os aristocratas Lautrec.
-Nasci numa noite tempestuosa.
-Houve de geração a geração muitos casamentos consanguíneos na sua família.
-Meu pai, Conde Alphonse de Toulose-Lautrec-Monta era primo de minha mãe, Adèle Tapié de Celéyran. Não sei por que cito os nomes deles completos, pois a pompa da aristocracia nunca me atraiu.
-Enfim, esses casamentos entre parentes no correr dos anos, segundo a ciência, explica a debilidade óssea que deixou comprometido seu crescimento.
-Ah, essa distrofia!... - exclamou com um sorriso triste na comissura dos lábios.
E continuou:
-Com doze anos de idade, caí e quebrei o fêmur esquerdo; com quatorze, era o direito que se partia. Com meus ossos mal soldados, parei de crescer.
-E a sua altura não passou de 1,52 m.
-Tive corpo de homem adulto sustentado por curtas pernas de meninos.
-Você passou os longos períodos acamado desenhando e pintando aquarelas, enquanto o seu talento desabrochava com todo o vigor.
-Se não fosse a arte...
-Um escritor da França, um pouco mais jovem do que você, Marcel Proust, disse que só a arte consola.
-Com dezesseis anos, estudei pintura com León Bonnat, mas ele me desagradava pela sua rigidez e visão antiquada.
-No seu primeiro quadro, podemos dizer assim, você desenhou o seu pai, com vestes caucasianas, montado num cavalo, com um falcão. Um homem, enfim, poderoso.
-O meu pai era tudo o que eu não poderia ser com o meu corpo frágil. - lamentou.
-Ele gostava das artes.
-Apesar disso, não havia empatia entre nós. Ele, porém, disse-me uma coisa de que jamais esqueci na minha curta vida.
-O que foi? - não contive a curiosidade.
E Toulouse-Lautrec procurou reproduzir palavra por palavra o que ouvira:
-Lembre-se: a única maneira boa de se viver é ao ar livre e sob o sol.
E acrescentou:
-E eu logo deduzi: nada havia de pior do que o confinamento e a falta de liberdade.
 -Seu pai era uma pessoa solar.
-Se assim fosse, não traria sofrimentos à minha mãe.
-Você pintou mais de uma vez à sua mãe, a Condessa de Toulouse-Lautrec.
-Mas em nenhum desses quadros ela aparece com o porte magnânimo dos nobres, pelo contrário; pintei como a via.
-Numa das mais representativas pinturas suas desse tempo, sua mãe mostra candura e tristeza. Está triste porque seu casamento estava desfeito, embora mantivesse a aliança.
-A sua melancolia era também proveniente da perda do seu segundo filho, o que me fez sentir mais pesada a carga sobre os meus ombros.
-Isso não o impediu de sair da sua pequena cidade natal, Albi, e viajar para Paris?
-Claro que não. Fui a Paris e fiquei arrebatado com as obras de Manet, Cézanne e Monet. Eles muito me influenciaram e me ajudaram na procura do meu próprio caminho.
-Nesses quadros da sua mãe, de que falei, já havia forte influência impressionista.
-Eu já estudava com Fernand Cormon, cujo estúdio ficava nas ladeiras de Montmartre.
-E quando você saiu de Albi e se mudou definitivamente para Paris?
-Em 1884, quando eu estava com 20 anos de idade.
-Não pôde ficar mais longe de Montmartre.
-O bairro era o reduto de artistas e filósofos. Montmartre era um caldeirão onde fervilhavam todos os tipos humanos e eu era mais um.
-Não, Toulouse-Lautrec, você não era mais um; você foi o maior cronista a usar o pincel para retratar aquele mundo e submundo de prostitutas, bêbados e rufiões.
-Que usei o pincel até não mais poder é verdade. - disse com um riso malicioso.
-Tanto a sua virilidade artística como sexual se tornaram legendárias.
-Para satisfazer toda a minha energia, não bastavam apenas as telas.
-Diziam que, da cintura para baixo, apenas as suas pernas eram curtas.
Toulouse-Lautrec gargalhou. - mais uma demonstração de que, apesar da sua criação aristocrática, se sentia à vontade com as piadas pouco refinadas, mesmo grosseiras.
-Bem, você captou a Paris alegre dos cafés, dos bares, dos cafés concertos e a Paris das lavadeiras, das libertinas...
Quando percebi que o entusiasmo me tornava verborrágico, cortei no meio a minha frase.
-Eu admirava a arte japonesa e as boas fotografias, considerei que elas podiam ser aproveitadas na pintura, mas não fui o primeiro a ver isso.
-Em Montmartre, você frequentou muito o Moulin de La Galette?
-Lá estava um tesouro para um artista explorar. - afirmou.
-Que o diga Renoir com um dos seus mais famosos quadros. - intervim.
-Ele retratou muitas pessoas de uma só vez, mas cada uma dizia muito de si.
-Creio que você, mais do que qualquer outro pintor, usou a sua palheta para mostrar Montmartre.
-Tudo estava ali, bastava você pintar.
-Não era assim tão simples, fazia-se necessário muito talento, e poucos o tiveram como Toulouse-Lautrec. - enalteci-o sem que ele reagisse com falsa modesta.
-Eu já me sentia, desde Albi, atraído pelas mulheres. Em Paris, encontrei nas prostitutas toda a generosidade de que eu tanto carecia.
-Você, provavelmente, ganhava uma boa mesada dos seus pais.
-Elas não se ligaram a mim apenas pelo interesse pecuniário.
-Claro que não, muitos eram os seus talentos que traziam as mulheres para perto de você.
-É verdade que eu recebia mais dinheiro do que Cézanne, que também tinha o pai distante. 
-Que era banqueiro. - acrescentei.
-Cézanne se viu tolhido pelo moralismo paterno; casou com uma mulher pobre, nasceu-lhe um filho e o pai só soube oito anos depois, pois ele temia perder a sua fonte de renda.
Após uma pausa, perguntou:
-Nem sei se ainda estava vivo quando esse problema familiar aconteceu com ele.
-Deixemos Cézanne de lado e falemos de você.
-Nunca é demais falar dele, que foi reconhecido pelos seus pares, mas foi o último impressionista cujo brilho o mercado das artes viu.
-Em Paris, Toulouse-Lautrec, a sua queda pela bebida se tornou irreversível. 




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