----------------------------------------------------------------------------------------
O BISCOITO MOLHADO
Edição 3967 Data: 09 de
junho de 2012
----------------------------------------------------------------------------------
83ª VISITA À MINHA CASA
PARTE II
-Joaquim Antônio Callado era um negro
bonito?
-Sim, mas casado e não cuidava da saúde,
trabalhando incansavelmente. Ele, na verdade, antes de “Flor Amorosa”,
dedicou-me uma polca, em 1869, “Querida por Todos.”
-Com vinte e dois anos, a sua beleza
deslumbrava a todos os músicos...
-E engenheiros – interrompeu-me -
Deixei-me seduzir por João Batista de Carvalho Jr., formado em engenharia, que
frequentava a casa do meu ex-marido.
-Vocês, então, já se conheciam?
-Sim, o que levou os maledicentes a
insinuarem que a nossa relação era antiga.
-Nem imagino como ficou sua situação.
-Os olhares preconceituosos dirigidos a
mim, porque eu era separada, tornaram-se hostis com essa suspeita de uma
relação extra-conjugal com o engenheiro João Batista. Para mim, caiu do céu a
proposta que ele recebeu de trabalhar na Serra da Mantiqueira, era a
oportunidade de eu encontrar a paz. Arrumei a minha mala e a do João Gualberto,
e o acompanhamos. Foram dois anos longe do Rio de Janeiro, quando retornamos,
em 1875, o clima de rejeição persistia.
-Nasce, então, a sua filha com ele?
-No ano seguinte, 1876, nasceu Alice
Maria. Afastamo-nos de novo do Rio de Janeiro, mas o que parecia impossível
para mim aconteceu: as coisas pioraram. João Batista, galanteador incorrigível,
não me deixava dúvidas, no espírito, de que me traía. Peguei Gualberto pela mão
e o abandonei com nossa filha, voltando para o Rio de Janeiro.
-Onde foi morar, Chiquinha Gonzaga?
-Num casebre em São Cristóvão.
-Num casebre?...
-Eu estava, porém, próxima do Centro da
cidade e, assim, participei de vez do ambiente musical do Rio de Janeiro.
-Voltou a dar aulas de piano?
-Sim, e entrei para o conjunto criado
por Joaquim Antônio Callado, Choro Carioca, composto de flauta,
cavaquinho e dois violões, que tocava em festas.
-Com você, o conjunto de Callado ficou
com uma pianista.
-Pianista era quem executava Chopin,
Mozart, Beethoven, Brahms, eu era chamada de pianeira. Na minha época, quem
tocava música popular era pianeiro, um modo de depreciar os instrumentistas que
não participavam de concertos.
-No nome desse conjunto, aparece pela
primeira vez a palavra “Choro”.
-É verdade; nós interpretávamos
chorosamente tangos, polcas, valsas, assim, as formas musicais europeias
recebiam um molho carioca. Depois, a abordagem de Callado evoluirá para um novo
gênero musical.
-O choro é um gênero musical de quase
150 anos que, ainda hoje, se renova. Está mais vivo do que nunca.
-Eu tenho orgulho de me encontrar entre
os pioneiros.
-Joaquim Antônio Callado nos deixou
prematuramente, devido a tuberculose, mas a sua importância é realçada por
todos os que conhecem a nossa música.
-Devo-lhe muito.
-Eu ouvia a marcha fúnebre que você
compôs para a morte dele na Rádio MEC, infelizmente, nos últimos anos, nem mais
nessa estação de rádio tem tocado mais a sua homenagem. - lamentei.
Notando que os olhos de Chiquinha
Gonzaga se tornaram melancólicos, mudei para o tom maior:
-Vamos falar de coisas alegres. E o
grande sucesso que foi a polca “Atraente”?
- Eu tinha 29 anos de idade. Em
fevereiro de 1877, foi publicada a primeira edição da partitura e, em novembro
desse mesmo ano, a décima quinta edição.
-Esse sucesso estrondoso chegou,
evidentemente, até a casa dos seus pais. - mostrei curiosidade.
-Sim, as partituras da minha polca eram
anunciadas pelos pregoeiros, nas ruas e o meu pai se irritava, pelo que eu
soube, porque o meu nome estava ligado à música “indecente” e “chula”. As
partituras que ele podia rasgar, rasgava.
-Com todo o sucesso, as barreiras à sua
frente ainda subiam?
-Sim, era inconcebível para a sociedade
brasileira que eu, sendo mulher, trabalhasse para sobreviver. E piorava ainda o
fato de a minha atividade não ser reconhecida como profissão e sim, condizer
com boêmios e vagabundos.
-Esse período que juntou você, Joaquim Antônio
Callado, Henrique Alves de Mesquita e outros músicos, é considerado um grande
momento de efervescência cultural. Buscava-se uma música identificada com o
Brasil e, assim, tocava-se o maxixe, o tango brasileiro... o choro, que
ganhava mais adeptos, os chorões...
-Porém, recrudesce o preconceito da
elite, que venera as coisas da Europa, contra nós. Acusam-nos de atrasar
culturalmente o Brasil. - manifestou-se a Chiquinha Gonzaga.
-O sucesso deu-lhe mais força para
lutar, com certeza, contra esses retrógrados enfatuados?
-Tornei-me uma das personalidades mais
conhecidas do Rio de Janeiro, odiada por muitos, admirada por alguns.
-Odiada por muitos?... Não seria
exagero?
-Eu me encontrava quase todas as noites
em cafés, confeitarias, lugares inacessíveis às mulheres de família. Não me
perdoavam, mas eu tinha de ganhar a vida com a música.
-Você passou a compor prolificamente?
-Dedicava-me também a musicar peças para
o teatro de revista.
-Teatro de revista ainda tem hoje,
Chiquinha, um ranço pejorativo. Sua música para o teatro iria para a Broadway, se
fosse nos Estados Unidos.- interferi.
-Minha primeira experiência ocorreu em
1883, quando musiquei “Viagem ao Parnaso” de Arthur Azevedo. Porque eu era
mulher, o empresário não montou o espetáculo musicado. Fui em frente e iniciei
a minha carreira de maestrina, em 1885, com “Corte na Roça”.
-Li que era uma opereta de um ato que,
pela crítica, só se salvou pela sua música. “Verdadeiro primor de graça,
elegância e frescura.” - escreveu um dos críticos.
-Eu consegui uma razoável fonte de renda
com essas composições para o teatro.
-Você foi chamada de “Offenbach de
saias”. “Forrobodó” foi um sucesso absoluto, mais de 1500 apresentações.
-Isso foi bem depois. - disse com um
sorriso.
-Você frequentou as reuniões com os
intelectuais abolicionistas e republicanos, como José do Patrocínio, Lopes
Trovão, Paula Nei, Olavo Bilac. Houve problemas seu com o governo Floriano
Peixoto...
-Eu compus a cançoneta “Aperte o botão”,
uma sátira, recolheram a partitura, deram-me voz de prisão, mas me deixaram
solta.
-Em 1899, você criou a primeira
marcha-rancho...
Interrompeu-me cantando “Ó Abre Alas”.
E
prosseguiu:
Nesse ano, em 1899, eu tinha 52 anos, já
era avó desde os 42, pois João Gualberto se tornou pai. Eu vivia sozinha,
quando conheci João Batista Fernandes Lage, um português de 16 anos de idade.
Nós nos gostamos, mas seria outro escândalo na minha vida unir-me a um jovem.
Lopes Trovão me aconselhou a usar um estratagema: perfilhá-lo. Segui o seu conselho;
-Você e o jovem João Batista viveram
juntos por 36 anos, até a sua morte.
-Com a idade, eu já estava mais serena
para viver uma vida amorosa.
-E o chamado “Escândalo do Palácio do
Catete” em 1914?
-Houve uma recepção no palácio, no final
do governo Hermes da Fonseca. Ouviu-se Franz Liszt, Gottschalk, Arthur
Napoleão...
-Tudo bem convencional e elegante.
-Veio, então, a surpresa: a jovem esposa
do presidente da República, Nair de Tefé, pegou um violão e tocou o
“Corta-Jaca” da minha autoria. No dia seguinte, Ruy Barbosa, no Senado,
furibundo, discursou.
-Eu tenho o discurso do Ruy Barbosa. -
disse, enquanto abria um livro.
E li:
-”Uma das folhas de ontem estampou em fac-símile
o programa da recepção presidencial em que, diante do corpo diplomático, da mais
fina sociedade do Rio de Janeiro, aqueles que deviam dar ao país o exemplo das
boas maneiras mais distintas e dos costumes mais reservados elevaram o corta-jaca
à altura de uma instituição social. Mas o corta-jaca de que eu ouvira
falar há muito tempo, que vem a ser ele, Sr. Presidente? A mais baixa, a mais
chula, a mais grosseira de todas as danças selvagens, a irmã gêmea do batuque,
do cateretê, do samba. Mas nas recepções presidenciais o corta-jaca é
executado com todas as honras de Wagner e não se quer que a consciência desse
país se revolte, que as nossas faces se enrubesçam e que a mocidade se ria!”
-Ruy Barbosa também não queria jogadores
de futebol da seleção brasileira viajando no navio em que ele estava. - lembrou
Chiquinha.
-E a sua luta pelos direitos autorais?
-Em 1913, quando viajava por Berlim, com
João Batista, descobri partituras de obras minhas em lojas musicais, editadas
sem minha permissão. Parti para a luta pelos direitos autorais dos artistas
brasileiros.
-Depois de mais de 2 mil composições,
você se recolheu em um apartamento na Praça Tiradentes para viver até os 87 anos de idade.
-Mas não deixava de ir ao SBAT brigar
pelos nossos direitos.
-Um colega da SBAT escreveu sobre você.
E li:
-Conheci Chiquinha Gonzaga nos últimos
anos de sua vida, sempre vestida de preto, com uma saia que lhe chegava aos
pés, gola alta, pele encarquilhada, com quase noventa anos. Mas aqui, na SBAT,
estava todos os dias, com esquisitices e rabugices respeitadas e toleradas por
todos nós. Sentava-se numa cadeira e ficava a fiscalizar o trabalho dos nossos
funcionários, como se administrasse sua própria casa. E, porventura, não era a
sua casa?”
-Grande Chiquinha. - exclamei, enquanto ela
partia.
Nenhum comentário:
Postar um comentário