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terça-feira, 19 de junho de 2012

2167 - um piano para dois

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O BISCOITO MOLHADO
Edição 3967                                  Data: 09 de junho de 2012
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83ª VISITA À MINHA CASA
PARTE II

-Joaquim Antônio Callado era um negro bonito?
-Sim, mas casado e não cuidava da saúde, trabalhando incansavelmente. Ele, na verdade, antes de “Flor Amorosa”, dedicou-me uma polca, em 1869, “Querida por Todos.”
-Com vinte e dois anos, a sua beleza deslumbrava a todos os músicos...
-E engenheiros – interrompeu-me - Deixei-me seduzir por João Batista de Carvalho Jr., formado em engenharia, que frequentava a casa do meu ex-marido.
-Vocês, então, já se conheciam?
-Sim, o que levou os maledicentes a insinuarem que a nossa relação era antiga.
-Nem imagino como ficou sua situação.
-Os olhares preconceituosos dirigidos a mim, porque eu era separada, tornaram-se hostis com essa suspeita de uma relação extra-conjugal com o engenheiro João Batista. Para mim, caiu do céu a proposta que ele recebeu de trabalhar na Serra da Mantiqueira, era a oportunidade de eu encontrar a paz. Arrumei a minha mala e a do João Gualberto, e o acompanhamos. Foram dois anos longe do Rio de Janeiro, quando retornamos, em 1875, o clima de rejeição persistia.
-Nasce, então, a sua filha com ele?
-No ano seguinte, 1876, nasceu Alice Maria. Afastamo-nos de novo do Rio de Janeiro, mas o que parecia impossível para mim aconteceu: as coisas pioraram. João Batista, galanteador incorrigível, não me deixava dúvidas, no espírito, de que me traía. Peguei Gualberto pela mão e o abandonei com nossa filha, voltando para o Rio de Janeiro.
-Onde foi morar, Chiquinha Gonzaga?
-Num casebre em São Cristóvão.
-Num casebre?...
-Eu estava, porém, próxima do Centro da cidade e, assim, participei de vez do ambiente musical do Rio de Janeiro.
-Voltou a dar aulas de piano?
-Sim, e entrei para o conjunto criado por Joaquim Antônio Callado, Choro Carioca, composto de flauta, cavaquinho e dois violões, que tocava em festas.
-Com você, o conjunto de Callado ficou com uma pianista.
-Pianista era quem executava Chopin, Mozart, Beethoven, Brahms, eu era chamada de pianeira. Na minha época, quem tocava música popular era pianeiro, um modo de depreciar os instrumentistas que não participavam de concertos.
-No nome desse conjunto, aparece pela primeira vez a palavra “Choro”.
-É verdade; nós interpretávamos chorosamente tangos, polcas, valsas, assim, as formas musicais europeias recebiam um molho carioca. Depois, a abordagem de Callado evoluirá para um novo gênero musical.
-O choro é um gênero musical de quase 150 anos que, ainda hoje, se renova. Está mais vivo do que nunca.
-Eu tenho orgulho de me encontrar entre os pioneiros.
-Joaquim Antônio Callado nos deixou prematuramente, devido a tuberculose, mas a sua importância é realçada por todos os que conhecem a nossa música.
-Devo-lhe muito.
-Eu ouvia a marcha fúnebre que você compôs para a morte dele na Rádio MEC, infelizmente, nos últimos anos, nem mais nessa estação de rádio tem tocado mais a sua homenagem. - lamentei.
Notando que os olhos de Chiquinha Gonzaga se tornaram melancólicos, mudei para o tom maior:
-Vamos falar de coisas alegres. E o grande sucesso que foi a polca “Atraente”?
- Eu tinha 29 anos de idade. Em fevereiro de 1877, foi publicada a primeira edição da partitura e, em novembro desse mesmo ano, a décima quinta edição.
-Esse sucesso estrondoso chegou, evidentemente, até a casa dos seus pais. - mostrei curiosidade.
-Sim, as partituras da minha polca eram anunciadas pelos pregoeiros, nas ruas e o meu pai se irritava, pelo que eu soube, porque o meu nome estava ligado à música “indecente” e “chula”. As partituras que ele podia rasgar, rasgava.
-Com todo o sucesso, as barreiras à sua frente ainda subiam?
-Sim, era inconcebível para a sociedade brasileira que eu, sendo mulher, trabalhasse para sobreviver. E piorava ainda o fato de a minha atividade não ser reconhecida como profissão e sim, condizer com boêmios e vagabundos.
 -Esse período que juntou você, Joaquim Antônio Callado, Henrique Alves de Mesquita e outros músicos, é considerado um grande momento de efervescência cultural. Buscava-se uma música identificada com o Brasil e, assim, tocava-se o maxixe, o tango brasileiro... o choro, que ganhava  mais adeptos, os chorões...
-Porém, recrudesce o preconceito da elite, que venera as coisas da Europa, contra nós. Acusam-nos de atrasar culturalmente o Brasil. - manifestou-se a Chiquinha Gonzaga.
-O sucesso deu-lhe mais força para lutar, com certeza, contra esses retrógrados enfatuados?
-Tornei-me uma das personalidades mais conhecidas do Rio de Janeiro, odiada por muitos, admirada por alguns.
-Odiada por muitos?... Não seria exagero?
-Eu me encontrava quase todas as noites em cafés, confeitarias, lugares inacessíveis às mulheres de família. Não me perdoavam, mas eu tinha de ganhar a vida com a música.
-Você passou a compor prolificamente?
-Dedicava-me também a musicar peças para o teatro de revista.
-Teatro de revista ainda tem hoje, Chiquinha, um ranço pejorativo. Sua música para o teatro iria para a Broadway, se fosse nos Estados Unidos.- interferi.
-Minha primeira experiência ocorreu em 1883, quando musiquei “Viagem ao Parnaso” de Arthur Azevedo. Porque eu era mulher, o empresário não montou o espetáculo musicado. Fui em frente e iniciei a minha carreira de maestrina, em 1885, com “Corte na Roça”.
-Li que era uma opereta de um ato que, pela crítica, só se salvou pela sua música. “Verdadeiro primor de graça, elegância e frescura.” - escreveu um dos críticos.
-Eu consegui uma razoável fonte de renda com essas composições para o teatro.
-Você foi chamada de “Offenbach de saias”. “Forrobodó” foi um sucesso absoluto, mais de 1500 apresentações.
-Isso foi bem depois. - disse com um sorriso.
-Você frequentou as reuniões com os intelectuais abolicionistas e republicanos, como José do Patrocínio, Lopes Trovão, Paula Nei, Olavo Bilac. Houve problemas seu com o governo Floriano Peixoto...
-Eu compus a cançoneta “Aperte o botão”, uma sátira, recolheram a partitura, deram-me voz de prisão, mas me deixaram solta.
-Em 1899, você criou a primeira marcha-rancho...
Interrompeu-me cantando “Ó Abre Alas”.
 E prosseguiu:
Nesse ano, em 1899, eu tinha 52 anos, já era avó desde os 42, pois João Gualberto se tornou pai. Eu vivia sozinha, quando conheci João Batista Fernandes Lage, um português de 16 anos de idade. Nós nos gostamos, mas seria outro escândalo na minha vida unir-me a um jovem. Lopes Trovão me aconselhou a usar um estratagema: perfilhá-lo. Segui o seu conselho;
-Você e o jovem João Batista viveram juntos por 36 anos, até a sua morte.
-Com a idade, eu já estava mais serena para viver uma vida amorosa.
-E o chamado “Escândalo do Palácio do Catete” em 1914?
-Houve uma recepção no palácio, no final do governo Hermes da Fonseca. Ouviu-se Franz Liszt, Gottschalk, Arthur Napoleão...
-Tudo bem convencional e elegante.
-Veio, então, a surpresa: a jovem esposa do presidente da República, Nair de Tefé, pegou um violão e tocou o “Corta-Jaca” da minha autoria. No dia seguinte, Ruy Barbosa, no Senado, furibundo, discursou.
-Eu tenho o discurso do Ruy Barbosa. - disse, enquanto abria um livro.
E li:
-”Uma das folhas de ontem estampou em fac-símile o programa da recepção presidencial em que, diante do corpo diplomático, da mais fina sociedade do Rio de Janeiro, aqueles que deviam dar ao país o exemplo das boas maneiras mais distintas e dos costumes mais reservados elevaram o corta-jaca à altura de uma instituição social. Mas o corta-jaca de que eu ouvira falar há muito tempo, que vem a ser ele, Sr. Presidente? A mais baixa, a mais chula, a mais grosseira de todas as danças selvagens, a irmã gêmea do batuque, do cateretê, do samba. Mas nas recepções presidenciais o corta-jaca é executado com todas as honras de Wagner e não se quer que a consciência desse país se revolte, que as nossas faces se enrubesçam e que a mocidade se ria!”
-Ruy Barbosa também não queria jogadores de futebol da seleção brasileira viajando no navio em que ele estava. - lembrou Chiquinha.
-E a sua luta pelos direitos autorais?
-Em 1913, quando viajava por Berlim, com João Batista, descobri partituras de obras minhas em lojas musicais, editadas sem minha permissão. Parti para a luta pelos direitos autorais dos artistas brasileiros.
-Depois de mais de 2 mil composições, você se recolheu em um apartamento na Praça Tiradentes para viver até os  87 anos de idade.
-Mas não deixava de ir ao SBAT brigar pelos nossos direitos.
-Um colega da SBAT escreveu sobre você.
E li:
-Conheci Chiquinha Gonzaga nos últimos anos de sua vida, sempre vestida de preto, com uma saia que lhe chegava aos pés, gola alta, pele encarquilhada, com quase noventa anos. Mas aqui, na SBAT, estava todos os dias, com esquisitices e rabugices respeitadas e toleradas por todos nós. Sentava-se numa cadeira e ficava a fiscalizar o trabalho dos nossos funcionários, como se administrasse sua própria casa. E, porventura, não era a sua casa?”
 -Grande Chiquinha. - exclamei, enquanto ela partia.

 

 

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