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segunda-feira, 18 de junho de 2012

2166 - piano para um

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O BISCOITO MOLHADO
Edição 3966                                       Data: 08 de junho de 2012
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83ª VISITA À MINHA CASA

-Francisca Edwiges Neves Gonzaga!- expressei o meu encantamento com a visita.
-Eu fui uma compositora ligada ao gosto popular, não me trate, por isso, tão formalmente.
-Se eu não citar o seu nome todo, não poderei dizer que a minha mãe também se chamava Edwiges, porém, com “h”.
-Com o meu nome, minha mãe homenageou dois santos: São Francisco e Santa Edwiges.
-Os animais e os endividados?
-Os animais endividados. - brincou Chiquinha Gonzaga.
-Você nasceu, em 1847, de uma mestiça pobre e solteira. Sua mãe temeu que o seu pai, com o posto de primeiro-tenente do Exército, parente do Duque de Caxias, não a reconhecesse como filha. Você correu o risco de ser entregue à Roda dos Expostos.
Cabe aqui um parêntese no nosso diálogo:
-A Roda dos Expostos foi introduzida no período colonial brasileiro e extinta no século XIX. A Roda dos Expostos preservava o anonimato daqueles que depositavam os bebês enjeitados. Houve crescentes tensões entre o poder local sobre a obrigação pública de contribuir financeiramente para a Santa Casa, e chegou ao fim.
-Mas como os bebês eram tratados, Chiquinha Gonzaga?
-Quase fui para a Roda, como se dizia popularmente, mas escapei. - reagiu com uma risada.
-Você sabia como era a Roda dos Expostos?
-Uma criança era criada por uma ama de leite até os três anos de idade. Essas amas recebiam um pagamento pelo serviço prestado. Havia casos de fraude, mães que colocavam o filho na Roda para, em seguida, se empregar como ama de leite e recolher um dinheirinho.
-E essas crianças?
-A instituição tentava empregar os meninos como aprendizes, e as meninas como domésticas. - explicou.
-Quase um dos maiores talentos musicais deste país se perdeu em serviços de criada. Ainda bem que o tenente-coronel José Basileu Neves Gonzaga a reconheceu como filha e tomou a sua mãe como esposa.
-Meu pai tinha princípios morais rígidos, assumia os seus compromissos.
-Como parente do Duque de Caxias, seu pai vivia financeiramente bem?
-Nada; o dinheiro não sobrava na nossa família, o que não impediu que eu fosse criada como uma menina da burguesia e educada nos padrões sociais da segunda metade do século XIX. Tive professores particulares que me ensinaram a ler, a escrever, aprendi com eles cálculos, catecismos, idiomas...
-E a música, Chiquinha Gonzaga?
-Um piano em casa era símbolo de alto padrão social. Assim, houve uma grande importação de pianos da Europa pelo Brasil, acompanhados de numerosas partituras.
-Principalmente partituras de polca.
-Eu ainda não nascera, quando a febre a polca tomou o Brasil, e assim foi durante décadas. Foi uma das danças mais populares do Rio e, em seguida, até os salões de elite a receberam.
-Tomando o jeito brasileiro, ela se transformaria no choro; mas isso fica para depois. Com um piano em casa, Chiquinha Gonzaga, seu talento musical deslanchou.
-Ainda não, pois ninguém é uma ilha. Eu precisava conhecer ainda muitos músicos talentosos. Meu tio e padrinho, Antônio Eliseu, era flautista amador e me ajudou muito nesse início.
-Voluntariosa como você era, como se ajustou ao ambiente militar imposto pelo seu pai?
 -As arestas foram muitas, minha mãe interveio incontáveis vezes, muitos foram os castigos. Quando eu estava com dezesseis anos de idade, meu pai me casou com Jacinto Ribeiro do Amaral, um jovem rico de vinte e quatro anos de idade.
-Seu pai já implicava com a sua dedicação à música.
-Ainda não, tanto que me deu, como dote de casamento, um piano.
-E o seu marido implicou logo?
-A implicância não aflorou logo porque nasceu João Gualberto, no ano seguinte às nossas núpcias e, logo depois, tive Maria do Patrocínio. Apesar das crianças, minha fixação na música e meu caráter insubmisso passaram a desagradar o meu marido.
-Havia brigas entre os dois?
-Muitas. Estourou a Guerra do Paraguai e o meu consorte era co-proprietário de um navio, o São Paulo.
-Eu sei; o governo de Dom Pedro II contratou essa embarcação para transportar tropas para o teatro da guerra (escravos alforriados) e material bélico.  Jacinto Ribeiro do Amaral foi à guerra como comandante da Marinha Mercante.
-Levando-me como ele, pretendia me afastar da música e me vigiar. Tive de levar João Gualberto, mas a Maria do Patrocínio, recém-nascida, ficou com minha mãe.
-Um absurdo, pois o bebê precisava de você.
-No navio, era impossível eu controlar os nervos com o tratamento revoltante que davam aos negros que lutariam, “os voluntários da pátria”...
-E a abstinência da música. - interferi.
-Consegui um violão a bordo. O violão não tem os recursos do piano, mas me consolou.
-Mas era tido como o instrumento dos vagabundos. - frisei.
-Furioso, Jacinto me colocou a opção: ou ele ou a música.
-Reza a lenda, Chiquinha Gonzaga, que você respondeu: “Pois, senhor meu marido, eu não entendo a vida sem harmonia”.
-Decidida a abandonar meu marido, peguei João Gualberto e retornei ao Rio de Janeiro. Na casa dos meus pais, não recebi o apoio que eu esperava. A minha resistência se quebrou porque descobri que estava grávida pela terceira vez.
-Houve, então, uma chance de reatamento.
-Esperei que nascesse Hilário, mas a crise conjugal não teve tréguas e resolvi, de vez, lagar o Jacinto. Maria do Patrocínio ficou com a avó e o bebê com uma tia paterna.
-A posição do seu pai continuou inabalável?
-Ele passou a ignorar a minha existência.
-Depois do grito de independência, vem a guerra. Nem imagino o que significava uma mulher separada na sociedade burguesa do Brasil no século XIX. - falei.
-Eu me encontrava no momento crucial da minha vida; ou seguia em frente com as minhas próprias pernas ou caía pelo caminho.
-E com a responsabilidade de carregar consigo o filho mais velho.
-Sempre carreguei João Gualberto comigo.
-O que fez para se sustentar?
-Dei aulas particulares de piano.
-Enquanto ensinava, travou conhecimento com o flautista Joaquim Antônio Callado.
-Uma pessoa fundamental para a música popular brasileira e para mim.
-Há quem diga que ele criou o choro como gênero musical, conciliando a polca europeia com os ritmos africanos mais o molejo brasileiro. Uma coisa é certa: ele criou o primeiro conjunto de choro.
-Callado me introduziu no ambiente musical do Rio de Janeiro. Ouviu as minhas primeiras composições e apresentou críticas que só me fizeram melhorar. Ele era um respeitado professor do Imperial Conservatório de Música.
-Ele compôs, para você, “Flor Amorosa” e você retribuiu com “Atraente”. - disse sem malícia.








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