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quarta-feira, 24 de maio de 2017

3038 - SX O homem elétrico



O  BISCOITO  MOLHADO
Edição 5288 SX                           Data: 24 de maio de 2017

FUNDADOR: CARLOS EDUARDO NASCIMENTO - ANO: XXXIV


DE VOLTA À PAULA FREITAS

Meus pais se separaram em 1958. Enfrentei muitos problemas em função desse infausto acontecimento. Mudei-me do Leblon para Copacabana. Fiquei longe dos meus amigos e da minha avó paterna, que eu adorava. Para um menino com nove anos de idade, a distância que separava os dois bairros equivalia a uma viagem interestadual.

Os prejuízos também foram sérios no quesito futebol de praia. No Leblon, eu era um torcedor fanático do Grêmio, um time quase imbatível. Em Copacabana, passei a torcer pelo Dumans. O técnico era o famoso Neném Prancha. Mas o time era horroroso. Para se ter uma ideia de seus problemas, basta dizer que seu goleiro era o “Ceguinho”, que trabalhava na loja das Persianas Colúmbia. Durou pouco na função. Virou árbitro no futebol de praia. Outra tragédia, por motivos óbvios.

Na praia, meu parceiro de pelada era o “Seu” Fred. Devia ter quase oitenta anos e era meu vizinho de porta no apartamento que alugamos na Paula Freitas. Ele também me ajudava a destrinchar os enigmas propostos pelos professores de matemática do Santo Inácio. Lembro que em certa ocasião comentei com meu pai o quanto “Seu” Fred era ruim de bola. Sem levar em conta, é claro, a idade avançada do meu parceiro futebolístico. “Seu” Fred pedia sempre para “ser lançado”. Gritava sem parar: “Passa! Passa! Já fui bom nisso! Já fui bom nisso!...Meu irmão foi melhor! Muito melhor!...”

Papai morria de rir, até o dia em que acrescentei uma informação aos meus comentários: “A filha do “Seu” Fred também é artista. Uma tal de Rosamaria Murtinho...”. Fui então bombardeado com um monte de informações futebolísticas: “Fique sabendo, rapazinho, que o seu amigo Fred jogava realmente muita bola. Não teve uma carreira fulgurante porque fez opção pela engenharia e muito cedo foi trabalhar no Pará. Já o irmão...Ele tem toda a razão! O irmão, Nilo Murtinho Braga, foi um cracaço! Um dos maiores artilheiros da história do Botafogo! Autor do primeiro gol de uma seleção brasileira em Copas do Mundo!

Diante desses ensinamentos, passei a ver com outros olhos o desempenho de “Seu” Fred no futebol de praia. Claro que ele ainda tropeçava na bola com frequência assustadora. Mas sempre demonstrando grande categoria. Quando algumas quedas terríveis se consumavam, passei a perceber as manhas de um grande atleta. Concluí que permanecer em pé, no futebol, é algo reservado aos medíocres.

Na Paula Freitas, eu morava no 44. Minha mãe comentava que o apartamento pertencia a um oficial da aeronáutica, piloto do então Vice-Presidente João Goulart. No 26 da mesma rua moravam meus avós maternos.

Aos poucos fui me adaptando à vida copacabanense. Sábado era dia da Cruzada Eucarística, no Santo Inácio. Tinha a carona do meu avô, em seu Chevrolet Bel-Air de quatro portas, conduzido pelo Batista, elegantíssimo motorista que durante muitos anos prestou-lhe bons serviços. Paula Freitas, Tonelero, Siqueira Campos, Túnel Velho...Trânsito? Nenhum. Apenas o prazer do passeio, embalado pelo noticiário da Rádio Jornal do Brasil, anunciando as providências voltadas para a construção de Brasília, futura capital do país.
A programação do Santo Inácio era inesquecível. Os mais jovens, como eu, pertenciam à Cruzada Eucarística. Os mais velhos integravam a Congregação Mariana. No momento, influenciado pelos acontecimentos da Lava-Jato, estou inclinado a aceitar um discreto suborno. Mediante uma módica quantia em dinheiro vivo, admito mostrar minhas fotografias participando dessas reuniões, com fita amarela ao peito e tudo mais, disputando espaço para adentrar o reino dos céus.

A agenda da Cruzada começava com uma reunião de meia hora com o Padre Gil, envolvendo muitos conselhos e alguma cantoria. Desse “hit-parade” eu cantava empolgadíssimo, a plenos pulmões:

“Ó São Luiz Patrono,
Da nossa juventude...
Modelo de virtude...
Flor do Jardim Celeste...”

Encerrada a parada de sucessos, a escala seguinte era o campo de futebol, onde eram disputados frenéticos torneios que se estendiam até a hora do almoço. Da pregação do Padre Gil às botinadas do velho e violento esporte bretão. Do céu ao inferno, sem baldeações.

Cheguei ao ginásio e, por algum motivo que jamais consegui entender, o movimento de translação da Terra começou a se processar de forma mais rápida. Ainda me lembro dos comícios do Jânio Quadros nas praças Saens Pena e Serzedelo Correa, da Gina MacPherson ganhando o concurso de Miss Brasil, do América campeão carioca e do Escorial ganhando o Grande Premio Brasil, montado por Francisco Irigoyen.

Nessa época lamentei a venda do Chevrolet 56 do meu avô Rafael. A exemplo do que muita gente fez, ele resolveu prestigiar a indústria automobilística nacional, que ainda engatinhava. De início comprou um DKW Vemag, cadeira elétrica a que não resistiu por muito tempo. Em seguida veio uma Rural Willys. Nela fiz a pior viagem de minha vida, à Nova Friburgo, onde sempre passava um mês das minhas férias de verão.

Meu avô tentou se redimir comprando um JK. Se bem me lembro, não merecia a alcunha de “carro nacional”. Seu estofamento tinha sido projetado para o frio dos Alpes Suíços. O painel estava todo escrito em italiano, assim como o Manual do Proprietário. No JK do Dr. Rafael, apenas o ar que enchia os pneus era “Made in Brazil”.

Mas eu não estava mais preocupado com os carros do meu avô. Na volta do Santo Inácio para casa, minha opção passara a ser um ônibus elétrico, o Largo do Machado - Ipanema. Dava uma volta imensa pela Lagoa, até chegar em Copacabana. Mas estava sempre repleto de meninas do Jacobina.

Afinal, eu era um homem. Prestes a completar treze anos de idade.

4 comentários:

  1. Coisa boa ler algo novo à noite. Também tinha 13 anos em 1958. Também fui da Cruzada Eucarística e depois passei para os Santos Anjos. Mudei do Centro, Praça XV, para um bairro de subúrbio e até hoje não acostumei. rs

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  2. As moradias da Praça XV já foram objeto de discussão nos blogs do Rio Antigo. Qual era o seu endereço?

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    1. Morava ao lado do edifício da Bolsa de Valores na Rua do Mercado. A Bolsa antiga foi derrubada junto com o meu prédio e foi construído aquele monstruoso que está lá hoje.

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    2. Quase vizinha da Carmen Miranda. Frequentei muito o Rio Minho, do lado de fora.

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