O BISCOITO MOLHADO
Edição 5280 SX
Data: 06 de maio de 2017
FUNDADOR: CARLOS EDUARDO
NASCIMENTO - ANO: XXXIV
AS
AGRURAS DE ANACLETO
Na mitologia grega, Caronte, o barqueiro, carrega as almas
dos mortos recentes sobre as águas do Estige e do Aqueronte, rios que dividem o
mundo dos vivos do mundo dos mortos.
Anacleto, alvo de nossa reportagem, passava boa parte do
tempo na ante-sala próxima ao quarto de sua mulher, Dorotea. Na expectativa da
chegada de Caronte.
Dizendo-se apaixonado, com ela se casou já na idade madura.
Achou que isso poderia ser a solução de seus problemas. Dorotea era rica. Feia
de doer. Isso não lhe causava problemas. Até porque não olhava para ela.
Incômodo? Só um. Os amigos que lhe deram o apelido de São Jorge. Aquele que
sabe lidar com o dragão.
A doença grave de Dorotea deixara Anacleto animado. Ela não
saía mais da cama, perdia peso a olhos vistos e a cor de sua pele assumia
tonalidades dignas de um pintor renascentista deprimido.
Mas se recusava a morrer. O marido mantinha as aparências.
Especial-mente diante do cunhado, que ele odiava. Este administrava com mãos de
ferro a fortuna da família. Anacleto tinha certeza de que o sogro, já falecido,
fazia dele péssimo juízo. Certamente teria instruído o filho a vigiá-lo de
perto.
Diante dessas evidências, nosso herói ficava na torcida para
que Dorotea partisse dessa para a melhor antes que Ribamar, o cunhado, armasse
algum estratagema para afastá-lo da dinheirama da família.
Representava bem seu papel. No que contava com a
cumplicidade do porteiro do prédio. Este sempre o alertava sobre a chegada do
cunhado. A tempo de Anacleto se colocar na cabeceira da mulher, solidário e
carinhoso. A cena era sempre a mesma. Segurava com carinho a mão de Dorotea.
Sem que se percebesse que aquele era o momento em que a doente encontrava
forças para tentar quebrar os ossos da mão do marido que, ela sabia, tantas
vezes a enganara.
Os dias assim se passavam. Na ante-sala, à espera de
Caronte, Anacleto pensava nas peripécias que haviam marcado sua trajetória no
Rio de Janeiro, desde que chegara da Paraíba, em 1952. Fora importado por seu
tio, o Deputado Federal Renan Nonato. Sua mãe, viúva, passava por dificuldades.
O irmão lhe acenara com a possibilidade de empregar Anacleto na Câmara dos
Deputados. O que foi feito. Emprego mixuruca, já que os melhores cargos do
gabinete estavam ocupados por mulheres que não iriam certamente alcançar o
reino dos céus. Na avaliação do Deputado, um emprego na dimensão certa para
formar o caráter e reforçar a têmpera do sobrinho.
Foi curta a trajetória de Anacleto sob o amparo do tio Renan.
A tragédia aconteceu no momento em que as coisas começavam a melhorar.
Acreditava o sobrinho que muito cedo viria até mesmo a participar das estripulias
patrocinadas pelo tio deputado.
O ano de 1958 chegava à metade quando Renan Nonato resolveu
visitar suas bases eleitorais na Paraíba. Queria participar das eleições
municipais que lá iriam transcorrer. Incorrigível, envolveu-se com a filha de
um inimigo político, que jurou-o de morte. Dito e feito, em meio ao café da
manhã servido num hotel do interior, foi surpreendido pelos capangas de seu
desafeto. Prevalecem, até hoje, duas versões para sua morte. Segundo alguns,
teria sido decorrência de violentos golpes de melancia que levou na cabeça.
Outros afiançam que teria sobrevivido a essa agressão, com o que seus algozes
decidiram asfixiá-lo enfiando-lhe uma jaca pela cabeça, até a altura do
colarinho. Por uma questão de compostura, parentes e aliados políticos
providenciaram um atestado de óbito que atribuiu o desenlace a um ataque
cardíaco sofrido no exato momento em que o rádio bradou o solitário gol de Pelé
contra o País de Gales, na Copa de 1958.
Desde então a vida de Anacleto desandou. Lembrava-se de
vários episódios perturbadores, alguns dos quais noticiados com destaque nos
jornais. Entre esses a ocasião em que perdeu os freios de seu velho Chevrolet,
herança do deputado, no cruzamento da Avenida Copacabana com Figueiredo
Magalhães. Foi obrigado a avançar o sinal e, para não atropelar uma velhinha
que brandia um guarda chuva em sua direção, invadiu a Casa Gaio Marti, sendo
soterrado por toneladas de latas de goiabada e extrato de tomate. Trabalhou
três anos para pagar o prejuízo.
Outros episódios trágicos acorriam à sua mente. Entre eles o
incêndio que consumiu seu automóvel no estacionamento da boite Fred´s... A
batida na Cadillac de Tenório Cavalcanti, que rendeu-lhe oito meses de
hospital... O dia em que quase foi linchado quando, bêbado, atravessou a
Galeria Menescal a sessenta quilômetros por hora, certo de que trafegava na Rua
Santa Clara.
Tudo ia de mal a pior, até acontecer o casamento com
Dorotea. Ela ficou doente, e ele muito animado. Bastava-lhe aguardar a chegada
do tal Caronte. Que não aparecia nunca. Possivelmente engarrafado na Linha
Vermelha. Ou, quem sabe, retido em alguma blitz da Lei Seca.
Sua paciência foi se esgotando. Resolveu dar uma ajudinha
para acelerar o processo. Instalou um sistema de som no quarto de Dorotea.
Escolheu uma programação musical que privilegiava a música sertaneja. Programas
de televisão também foram escolhidos a dedo. Ivete Sangalo, Claudia Leite, Daniela
Mercury...Insuportáveis programas humorísticos do Multi Show também ganharam
espaço especial na TV de Dorotea. Filmes iranianos...Séries
culinárias...Carnaval baiano...a tudo ela resistia.
Anacleto resolveu radicalizar. Providenciou vídeos com as
novelas bíblicas da TV Record. Concursos de canto envolvendo crianças e o
programa da Bela Gil também não foram esquecidos. Nada dava certo. Dorotea até
mudava de cor. Mas resistia bravamente.
Numa atitude extremada, providenciou uma fita com várias
horas de pronunciamentos da “Presidenta” Dilma Rousseff . Inadvertidamente,
assistiu parte deles. Quando o cunhado Ribamar chegou para a visita de praxe,
encontrou Anacleto e Dorotea em paz. Calmos e, como sempre, de mãos dadas.
Estavam mortos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário