O BISCOITO MOLHADO
Edição 5283 SX
Data: 16 de maio de 2017
FUNDADOR: CARLOS EDUARDO
NASCIMENTO - ANO XXXIV
HISTÓRIAS DO ROGÉRIO
Recebo com tristeza a notícia do falecimento de Rogério da
Rocha Carvalho.
Foi mecânico dos meus carros antigos, no tempo em que eu
acreditava que minha missão na Terra era restaurar montes de ferrugem que o bom
senso recomendava encaminhar ao ferro velho mais próximo.
Mais do que um profissional competente e dedicado, Rogério
era uma fonte inesgotável de bom humor, gentilezas e, sobretudo, de boa
conversa. Sessões de bate papo aconteciam nas manhãs de sábado, quando
colecionadores em bando acorriam à casa do nosso personagem. Havia o pretexto
de conferir o andamento dos serviços realizados em nossos automóveis. Mas o que
importava, mesmo, era a conversa que sempre acontecia em seguida no pub do
Levi, estabelecimento agraciado com três estrelas no Guia Michelin de São João
de Meriti.
Durante muitos anos colhi os efeitos benéficos dessa
terapia. Além disso, Rogério era meu companheiro inseparável nas viagens que
fazíamos aos eventos de automóveis antigos promovidos fora do Rio de Janeiro.
Foram muitas horas de boas conversas, prolongadas por contingências técnicas
sempre presentes: em primeiro lugar, a certeza de nos perdermos sempre. Só nos
dávamos conta de nossas mancadas depois de alertados, pelos frentistas dos
postos de gasolina, das imensas distâncias que nos separavam de nosso objetivo
final. A essa falta de discernimento acrescentávamos a necessidade imperiosa de
encontrar, em biroscas de beira de estrada, cachaças maravilhosas recomendadas
por grandes amigos do Rogério. Estes, infelizmente, nunca sabiam precisar o
local onde elas poderiam ser encontradas.
Nossas conversas versavam, especialmente, sobre a vinda de
Rogério para o Brasil, em 1949. Rogério e Américo, seu irmão, um exímio
lanterneiro, nasceram em Portugal, na cidade de Espinho. Não tinham qualquer
sotaque, o que também ocorria com seu pai, o português “Seu” Celestino. Já sua
mãe, Dona Angélica, que era brasileira, não disfarçava um forte sotaque
lusitano. Jamais consegui entender.
Inicialmente vieram para o Brasil Rogério e seu pai. Pouco
tempo depois aqui chegaram sua mãe e o Américo. Pai e filho embarcaram num
pequeno navio, na cidade do Porto. Seu primeiro destino foi Gênova, na Itália,
onde chegaram depois de uma viagem horrorosa, em meio a terríveis tempestades.
Lá chegando, rumaram imediatamente para a cidade de Pistóia, para visitar o
cemitério do mesmo nome, onde estavam enterrados os soldados brasileiros mortos
na Segunda Guerra Mundial.
Durante três dias pai e filho compareceram
religiosamente ao cemitério, lá permanecendo o dia inteiro. Ouvindo esse
relato, não resisti e perguntei o por que da longa visita ao cemitério. Não
haveria algo mais interessante a fazer? Disse-me ele, então, que tais visitas
eram premeditadas. Faziam parte, segundo “Seu” Celestino, de um processo de
adaptação ao país em que passariam a viver. Afinal, não havia na Itália nenhum
outro local onde pudessem encontrar tamanho contingente de brasileiros e com
eles estabelecer, o mais cedo possível, uma convivência fraterna.
Para se deslocar da pensão onde estavam alojados até o campo
santo, nossos amigos alugavam duas bicicletas, que não podiam entrar no
cemitério por conta do regulamento vigente. Pareceu-lhes muita sorte, assim, o
oferecimento de um bem falante italiano, que se propôs a tomar conta dos
veículos enquanto nossos amigos estreitavam relações com a colônia brasileira. Retornando
de uma visita, Rogério e “Seu” Celestino não encontraram o simpático italiano.
Muito menos as bicicletas. Mais um dia de permanência na Itália e nem sinal do
prestimoso precursor dos nossos flanelinhas. A indenização dos veículos
tornou-se, assim, inevitável.
Encerrando o relato do episódio, Rogério comentou que seu
pai, quarenta anos mais tarde, ainda reclamava: “Ô Rogério! E aquelas
bicicletas de Pistóia, hein? Estou seriamente desconfiado de que nunca mais
vamos vê-las!...”
Também tomei conhecimento de detalhes que envolveram o
percurso Gênova – Rio de Janeiro. Rogério mencionou, para minha estranheza, uma
nova escala na cidade do Porto. Não pude conter o espanto: “Se esse diabo de
navio foi do Porto para Gênova para depois retornar ao Porto, e se o propósito
de vocês era viajar para o Brasil, por que não embarcar quando o navio
retornava de Gênova, ou seja, na segunda escala, quando ele viria diretamente
para o Rio de Janeiro? Com sua fleuma habitual, Rogério respondeu-me,
pensativo: “Não sei não, Sergio, sinceramente, não sei.
Até hoje, tantos anos decorridos dessa viagem, essa é uma questão que me
intriga muito, principalmente à noite, antes de dormir. Por que será que
fizemos isso, meu Deus?”
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