O BISCOITO MOLHADO
Edição 5279 SX
Data: 02 de maio de 2017
FUNDADOR: CARLOS EDUARDO
NASCIMENTO - ANO: XXXIV
CELSO LARA BARBERIS
Comparecer nos sábados à feira de antiguidades
da Praça XV qualifica o visitante a disputar o troféu "Cocar de
Ouro". Programa de índio da mais alta categoria. A feira perdeu qualidade,
tornou-se gigantesca no tamanho e proibitiva nos preços. Foi-se o tempo em
que os membros da ACCCDPBS(Associação dos Compradores Compulsivos de Coisas
Desprezadas pelas Pessoas de Bom Senso) para lá acorriam na expectativa de
encontrar raridades irresistíveis, a preços convidativos. Ninguém mais faz
referência à lenda urbana, propagada em tempos remotos, de que ali alguém teria
comprado um belíssimo quadro de Di Cavalcanti pelo preço de um Eski-Bon.
Durante muito tempo integrei a associação dos
compradores compulsivos, mesmo ciente de que estava perdendo tempo e
contrariando a lógica. Achava que iria encontrar mais uma Parker 51, estalando
de nova. Possivelmente na cor verde musgo, difícil de encontrar. Ou um
punhado de Dinky Toys novos em folha, acondicionados em caixas originais. Uma
coleção completa e encadernada da "Revista de Automóveis"...Tudo
barato. Muito barato.
Pessoas com juízo sabem que nada mais disso acontece.
Nos bons tempos, em que um número menor de barracas sofisticadas ficavam
dispostas em volta do restaurante Albamar, fui agraciado com algumas compras
realmente interessantes. A começar por um programa oficial do Circuito da Gávea
de 1954, último realizado, vencido pelo Barão de Graffenried. Novinho. Um
achado.
Destaque, também, para um Rolex Submariner.
Alguém imagina encontrar hoje uma preciosidade dessas na Praça XV ? Pois eu
encontrei. Na barraca de um senhor muito simpático e a um preço convidativo.
Tomei coragem e perguntei se poderia pagar em três parcelas. O vendedor disse
que sim. Me dei conta, no entanto, que só um maluco entregaria um Rolex em
troca de três cheques assinados por um sujeito desconhecido.
Me antecipei às preocupações do vendedor e
sugeri que levasse o relógio na segunda-feira seguinte ao meu trabalho, na Rua
do Ouvidor. Isso foi feito. No dia aprazado, um terno
azul marinho e uma porção de Gumex conferiram-me a devida credibilidade para
concretizar o negócio.
Bem depois, descobri que a compra do relógio
havia sido um negócio ainda mais proveitoso do que eu havia suposto. Meu Rolex
era um "Red Submariner". Alguns dizeres que constam do seu mostrador
estão gravados em letras vermelhas, ao invés das brancas usuais. Trata-se de uma
raríssima variação, que mexe com a libido dos apreciadores da marca.
O ponto alto de minhas incursões à Praça XV
ainda estava por acontecer. Anos mais tarde, num sábado nublado, estávamos eu e
minha mulher empenhados em nossa pesquisa quando ela se aproximou de uma
barraca a ser, a meu juízo, solenemente ignorada. Dezenas de xicrinhas,
perinhas de prata, tacinhas de cristal, e por aí vai. "Coisa de
viado...", diriam certamente meus amigos. Indócil para afastar a Beth
daquele valhacouto de inutilidades, deparei-me com um prato bonitão, de prata,
com algo incrustado no meio da peça.
O "algo dourado" era uma baratinha dos
anos 50, semelhante a uma Maserati 250 F. Uma beleza.
Nervoso, peguei o prato e li o que estava nele
gravado: "III 500 Quilômetros de Interlagos. Patrocínio da Metal Leve e
Folha de São Paulo. 7 de setembro de 1960. Campeão".
Definitivamente tenso, dei-me conta de que havia
encontrado, em plena Praça XV, o troféu ganho pelo vencedor da mais importante
prova automobilística disputada no Brasil no ano de 1960. Quem seria ele?
Camilo Christófaro? Chico Landi? Roberto Galucci? Celso Lara Barberis? Ciro
Cayres? Caí na real e concluí que aquela era uma dúvida a ser esclarecida em
casa. Importante, naquele momento, era comprar o troféu. O que faria se o dono
da barraca me pedisse um preço absurdo, sabedor da preciosidade que tinha em
mãos? "Quanto? 250 reais? Tô achando o preço um pouco pesado. Não dá para
fazer por 150? 200? O.K., eu fico com ele". Negócio fechado, prato
embrulhado, só aí me dei conta do olhar de impaciência da Beth, ávida por
encontrar mais xicrinhas.
Cheguei em casa exultante. Procura daqui,
pesquisa dali, mato a charada no excelente livro "Chico Landi de ponta a
ponta", do meu amigo Paulo Scali. No capítulo que trata das proezas do
grande Chico Landi no ano de 1960 consta: "Vice-campeão dos 500 Km de
Interlagos"
O vencedor? Celso Lara Barberis.
Dúvida esclarecida, dediquei-me a pesquisar a
carreira de Barberis. Recorri à "Revista Brasileira de Automóveis" e
à Internet, especialmente o site do Jan Balder.
Celso nasceu em São Manuel, nas proximidades de
Botucatu, em 28 de fevereiro de 1916. Filho do médico e fazendeiro de café
Joaquim Orestes Barberis, italiano que chegou ao Brasil em 1914, e de Dona
Maria Augusta Lara. Grande desportista, nadou e remou no Clube de Regatas Tietê
e no Floresta. Campeão brasileiro no single skiff, foi convocado para
representar o país nos jogos olímpicos de 1936. Uma intoxicação levou-o ao
hospital e ele não pôde viajar.
Foi, também, um destemido lutador de boxe. Em
1949, julgando-se "velho" para remar, iniciou suas atividades automobilísticas.
Primeiro, com um Alfa Romeo Sport. Depois, com um Cisitalia 1300, que comprou
para disputar o campeonato paulista de 1952. Com esse carro venceu o Circuito da
Quinta da Boa Vista na categoria "Sport-Adaptados até 1500 cc".
Destacou-se numa série de provas em Interlagos,
guiando inicialmente uma Ferrari de 2 litros e, posteriormente, uma de 3000 cc.
Venceu as "Duas Horas de Velocidade de São Paulo", chegando em
segundo lugar na prova que comemorou o IV Centenário da cidade. Em 1957,
disputou o "Triângulo Sul Americano", enfrentando de igual para igual
adversários do porte de José Froilan Gonzalez. Participou em três ocasiões dos
"1000 Kilômetros de Buenos Aires". Seu melhor resultado aconteceu em
1960. Um quarto lugar, conduzindo uma Maserati 300 S em dupla com Christian
Heins. Vale registrar a concorrência: a prova foi vencida por Phil Hill e Cliff
Allison. Em segundo lugar, chegaram Richie Ginther e Wolfgang von Trips. Em
terceiro, Jo Bonnier e Graham Hill. Nada mal, não é mesmo?
Em 1957 o Automóvel Club de São Paulo resolveu
comemorar os primeiros passos da indústria automobilística nacional e ao mesmo
tempo saudar o 7 de setembro. Para isso promoveu os "500 Kilômetros de
Interlagos", disputados nos 3.460 metros do anel externo do antigo e
saudoso autódromo. Celso Lara Barberis venceu esta primeira edição, com
Maserati - Corvette, depois da quebra de Ciro Cayres. Voltou a vencer os
"500 Kilômetros" em 1960 e 1961, com Maserati 300 S e Maserati -
Corvette, respectivamente.
Em 1963, seu projeto era correr essa prova em
dupla com Chico Landi. O carro era um monoposto construído por Toni Bianco e
Landi, equipado com motor JK 2000. A confiança na vitória era grande. Tanto
assim que chegaram a combinar que Barberis daria a largada e Landi,
possivelmente como vencedor, receberia a bandeira quadriculada.
Mas ainda na primeira volta, Barberis foi
abalroado pela Maserati- Corvette de Amaral Junior, na curva que antecede o retão
de Interlagos. Seu carro foi de encontro a um barranco, capotando várias vezes.
O piloto foi projetado à distância, teve fratura de crânio e esmagamento
de tórax. Ninguém teve dúvidas sobre a culpa de Amaral Junior no episódio. Ele
nunca mais foi visto sequer nas proximidades de uma pista de corridas.
Estou sempre limpando e dando polimento no
troféu do grande campeão. Faço mil conjecturas, mas não consigo imaginar
de que maneira ele veio parar no Rio de Janeiro, na feira de antiguidades da
Praça XV. Mariozinho de Oliveira, grande amigo de Barberis, vibrou com a
minha aquisição. mas não teve como colaborar para a elucidação desse mistério.
Que maravilha!
ResponderExcluirLer crônicas antigas aqui é semelhante aos passeios na Praça XV antigamente