O BISCOITO MOLHADO
Edição 5287 SX
Data: 22 de maio de 2017
FUNDADOR: CARLOS EDUARDO
NASCIMENTO - ANO: XXXIV
BIZET ESTAVA ERRADO
Dia 3 de junho de 1875. Um público reduzido assiste à
encenação da ópera “Carmen”, de Georges Bizet. A estreia acontecera três meses
antes, no dia 3 de março. No decorrer de trinta récitas, a reação da plateia
evoluiu do escândalo da primeira apresentação à absoluta frieza.
Terceiro ato da ópera. A cena das cartas. As ciganas Carmen,
Frasquita e Mercedes dispõem um baralho sobre a mesa, buscando conhecer o que
lhes reserva o futuro. Frasquita e Mercedes tomam conhecimento de conquistas
amorosas. Um jovem belo e sedutor...Um homem maduro, muito rico...Para Carmen,
as cartas acenam com a morte. Ela repete o ritual e as cartas confirmam: para
ela, está reservada a morte.
Galli-Marié, a intempestiva mezzo-soprano que primeiro
protagonizou a “Carmen”, disse ter sentido um forte calafrio quando
interpretou, naquela noite, a cena das cartas. Conferidos os horários,
constatou-se que, no momento em que ela cantava, Georges Bizet falecia em casa,
vítima de angina e de um ataque cardíaco.
Bizet morreu absolutamente convencido de que havia produzido
um irremediável fracasso. Seria mais uma derrota a acrescentar à atribulada
trajetória do compositor.
Menino prodígio, filho de um professor de canto e de uma
excelente pianista, ele ingressou no Conservatório de Paris com inacreditáveis
nove anos de idade. Ganhou muito cedo o importantíssimo Prix de Rome, que lhe
assegurou o direito de estudar três anos na Itália. Quando retornou a Paris,
depois de acumular muitos prêmios e um curriculum invejável, poderia fazer
praticamente o que quisesse. Era certo obter um posto de mestre no
Conservatório, o que ele recusou. Poderia ter seguido uma consistente carreira
de concertista ao piano, instrumento em que era um expoente reconhecido até
mesmo por Franz Liszt, o maior pianista de todos os tempos. Essa alternativa
também foi rejeitada.
Dizia que sua arte estava ligada ao teatro. Com dezessete
anos escreveu sua primeira obra lírica, a opereta “La Maison du Docteur”. Com
vinte e cinco compôs “Os Pescadores de Pérolas”, ópera de maior fôlego. O
público e a crítica não reconheciam seu talento. Sua produção não tinha acesso
ao Opéra e ao Opéra Comique, os dois mais importantes teatros da capital
francesa. Durante muitos anos sobreviveu como professor, ou fazendo
transcrições de óperas famosas para o piano. Numa carta, ele se queixou
amargamente: “Para ter sucesso, é necessário estar morto ou ser alemão”.
Inseguro, muito exigente consigo mesmo, deixou dezenas de
obras inacabadas. Cerca de quarenta óperas que cogitou produzir não passaram de
um simples esboço.
Diante desses fatos, é certo que a encomenda de uma ópera
para ser apresentada no Opéra Comique causou surpresa a Bizet. Esse convite
aconteceu em 1872. O compositor escolheu como tema de sua nova produção uma
novela de Prosper Merimée, escritor francês que sentia uma atração especial
pela Espanha.
Começaram então os problemas. O Opéra Comique preservava a
fama de apresentar uma programação sempre lúdica e agradável, o paradigma do
recato e do decoro da sociedade francesa. Adolphe Leuven, um de seus diretores,
costumava dizer que o Opéra Comique “era o teatro das famílias, o teatro onde
são ajustados os casamentos”.
“Carmen” não era nada disso. Era a história de uma cigana
sensual, destituída de qualidades morais. Sua filosofia de vida era a liberdade
ilimitada. Nada a ver com a praxe daquele teatro, onde as encenações tinham um
final exemplar, moralista, em que a virtude e o bem venciam sempre o mal e o
vício.
Quando o diretor Leuven tomou conhecimento da ação que se
desenrolaria na ópera encaminhada a Bizet ele, apavorado, optou por se demitir,
antes que a obra fosse encenada.
O libreto da “Carmen” foi encomendado a uma dupla de
escritores parisienses, Ludovic Halévy e Henri Meilhac. Meilhac era o mais
experiente, tendo colaborado com Jacques Offenbach na elaboração do libreto da
ópera “Orfeu no Inferno”, em 1858.
Problemas aconteceram na escolha da protagonista da ópera. A
favorita dos libretistas era Zulma Bouffar, que já havia atuado em várias
operetas de Jacques Offenbach. Bizet não concordou. A segunda opção foi Marie
Roze. Que recusou o papel quando soube que a heroína, ao final da ópera,
morreria em pleno palco. Quem aceitou foi a temperamental
e agitadíssima Celestine Galli-Marié que, dizem as más línguas, e as boas
também, mantinha um tórrido romance com o compositor.
Bizet completou a partitura em 1874, tendo preparado a
orquestração da ópera nos dois meses que antecederam sua estreia. Os ensaios
começaram no mês de outubro. Inúmeros problemas aconteceram. Músicos e cantores
protestaram asperamente diante da modernidade da obra. Wagneriana, segundo
alguns. Impossível de tocar ou cantar, segundo outros. A reclamação das
coristas era ainda mais complicada: seriam obrigadas a fumar no palco! Isso,
evidentemente, lhes traria prejuízos sérios à saúde...
Como já foi dito, a trajetória da “Carmen” na sua première parisiense
oscilou do escândalo à indiferença. Mas a morte prematura de Georges Bizet
trouxe algumas sinalizações importantes. O enterro do compositor foi um
acontecimento, envolvendo muita pompa e mais de quatro mil pessoas.
Além disso, em contraposição aos críticos que, de um modo
geral, revelaram incompreensão em relação à obra, o fato é que muitas figuras
exponenciais conseguiram antever o lugar de absoluto destaque que estava
reservado para a ópera de Bizet na cena lírica mundial. Brahms assistiu vinte encenações
seguidas da “Carmen”. Wagner, depois de ouvi-la pela primeira vez,
exclamou:”Grato, Senhor Deus! Eis enfim alguém que tem ideias na cabeça!”.
Tchaikovsky, Nietzche e o Chanceler alemão Otto von Bismark também se renderam
à evidência de que estavam diante de uma obra prima.
Três meses depois da morte de Georges Bizet “Carmen”
alcançaria extraordinário sucesso na Ópera da Corte de Viena. Em seguida teria
igual consagração em Bruxelas, Antuérpia, Budapeste, São Petersburgo e
Estocolmo. A primeira encenação no Metropolitan de Nova Iorque aconteceu em
janeiro de 1884. Enrico Caruso encarnou pela primeira vez o “Don José”,
principal papel masculino da ópera, em fevereiro de 1906. Cantou a parte até
1919. No ano de 2011 “Carmen” foi encenada no grande palco nova-iorquino pela
milésima vez.
A genial criação de Georges Bizet chegou ao Rio de Janeiro
em 1881, sendo apresentada no Teatro D. Pedro II pela Companhia Francesa de
Maurice Grau. A estrela do espetáculo foi Paola Marié, irmã de Galli-Marié. No
Teatro Municipal do Rio de Janeiro a obra foi encenada cem vezes, desde 6 de
setembro de 1913.
No Opéra Comique, onde “Carmen” foi tão maltratada quando de
sua estreia, ela já foi encenada 2.500 vezes. Chegou ao cinema e à Broadway.
Consagrou dezenas de cantores, maestros e encenadores.
Quem diria, não é mesmo, Bizet?
Por menor que seja, o sucesso sempre incomoda e por vezes o palco e platéia errados levam ao fracasso.
ResponderExcluirÉ, quem diria?
Você é a campeã dos comentários! O editor do seu O BISCOITO MOLHADO e o redator SX agradecem o carinho.
ResponderExcluirFoi muito bom encontrar o BISCOITO. Um cantinho a mais de boa literatura. Eu é que agradeço o estar aqui.
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