O BISCOITO MOLHADO
Edição 5281 SX
Data: 9 de maio de 2017
FUNDADOR: CARLOS EDUARDO
NASCIMENTO - ANO: XXXIV
DESAFOROS
Tem horas em que o sujeito perde a compostura e diz
barbaridades. Impropérios de corar um frade podem ser lançados por personagens
diversos, sejam eles lordes do almirantado britânico ou traficantes da zona
portuária.
Arrependimentos acontecem. Há quem admita que exagerou na
dose. “Meu Deus, onde estava eu com a cabeça quando disse aquelas barbaridades
ao Alfredinho?” Mas alguns ratificam o destempero: “Cacilda, esqueci de xingar
aquele vagabundo disso, disso e mais aquilo!...Fica para a próxima vez...”
Gosto dessas narrativas sobre gente que chutou o pau da
barraca. Vou relatar algumas. Para não escandalizar por demais os leitores,
recorro à figura musical do “crescendo”. Começo com um episódio “light”, para
chegar, na última história, a um final “majestoso”.
Episódio 1 – O IRREDUTÍVEL TOMÁS
Roberto Ruiz de Gamboa foi um brilhante economista, com quem
trabalhei na década de setenta. Morreu cedo, para imensa tristeza de uma legião
de amigos e admiradores. Gamboa era o que se convencionou chamar um
“intelectual de esquerda”. Combatia os governos militares e não perdia uma
chance de participar de discussões acaloradas sobre distribuição de renda,
reforma agrária, democratização do ensino e por aí ia. No auge de sua
militância política, passou um tempo no Chile, trabalhando na CEPAL.
Essa disposição de combate pelas causas sociais já existia
quando ele cursou a Faculdade Nacional de Economia, na Praia Vermelha. Participava
ativamente do Diretório Acadêmico, empenhado em lutar por suas convicções.
Nem todos concordavam com suas ideias. Os embates eram
diários. Um opositor contumaz era Tomás Villaret. Gordinho, rosado, rico,
sotaque lusitano a denunciar que a família chegara há pouco de Portugal,
Tomasinho era um oponente a ser batido. Essa incompatibilidade já se estendia
por alguns semestres acadêmicos e, pelo visto, iria persistir até a cerimonia
de formatura dos dois litigantes.
Gamboa era teimoso. Um belo dia se aproximou de Tomasinho
com o discurso ensaiado: “Tomás, sei que nós já tivemos muitas contendas, e
jamais concordamos. Mas hoje, depois de tantas desavenças, venho te propor um
tema que, não tenho a menor dúvida, vai contar com o seu apoio”.
“Diga lá, Roberto”.
“Trata-se do seguinte. Trago aqui, para colher tua
assinatura, um manifesto contra a bomba atômica”.
“Não assino!”
“Peraí Tomás. Acho que você não entendeu bem. Estou falando
da bomba atômica. Uma calamidade! Uma loucura que pode acabar com a vida sobre
a terra!”
“Não assino!”
“Tomás! Tenho certeza de que você não está entendendo. O que
está em pauta é algo capaz de exterminar todos nós! Nossas famílias, nossos
filhos...Acaba o mundo! Basta um maluco apertar um botão e tudo vai pelos
ares!”
“Não assino!”
Gamboa perde a paciência. Percebe que não vai alcançar seu
intento e não resiste a uma provocação final: “Tomás, sabe por que você não
assina o manifesto? Pois eu sei! Você não assina porque é um covarde!”
“Covarde eu, Roberto? Covarde és tu que tens medo de bomba
atômica!...”
Episódio 2 – PAPAI NOEL
Véspera do Natal de 1958. Paulo Fortes dirigia, escrevia o
roteiro e cantava, enfim, fazia tudo no programa “Carrossel Tonelux”, uma das
atrações da TV-Rio.
Ele idealizou um programa dedicado ao Natal. Não havia
vídeo-tape. Tudo era apresentado ao vivo. O problema é que o “Carrossel”
terminava tarde da noite. Todos os envolvidos, artistas, equipe técnica,
estavam loucos para dar o trabalho por encerrado e correr às suas casas para
comemorar a data com os familiares.
Programa de Natal tem que ter Papai Noel. Marino Terranova,
cantor de ópera paulista que vinha tentando a sorte no Rio de Janeiro, foi
convencido pelo chefe a aceitar o papel. O traje do bom velhinho lhe caía bem.
Marino era gordinho e simpático. Muito querido por seus colegas do Teatro
Municipal, até porque era festeiro e cozinhava divinamente.
Pois muito bem. O “Carrossel” chega ao seu final e o que se
vê é uma desabalada corrida de toda a equipe em direção ao vestiário da TV-Rio.
Vestem-se freneticamente e saem a jato da emissora do Posto Seis. Todos, menos
um: Marino Terranova. Sabe-se lá porquê, Papai Noel se atrasou. E encontrou o vestiário
hermeticamente fechado. Gritou, deu socos na porta...e nada. Entrou em pânico
quando se deu conta de que não tinha um tostão no bolso. Na verdade, nem bolso
havia na sua roupa de Papai Noel.
Nada a fazer. Começou sua caminhada da estação de TV até a
Rua Constante Ramos, onde alugava um pequeno apartamento. Espumava de raiva,
antevendo o problemão que tinha pela frente. Não deu dez passos e ouviu o grito
de um mendigo: “Papai Noel, me dá um presente?” A resposta foi carinhosa: “Vá
prá puta que o pariu!” Dois quarteirões mais adiante o português do bar
debochou do andar apressado do nosso personagem, incompatível com a idade do
bom velhinho. Foi saudado com um rotundo “Vai à merda!”
Crianças também não foram poupadas nesse trajeto. Um guri
acompanhado de pais e irmãos teve a má ideia de cobrar: “Papai Noel! Cadê o
saco?” A resposta quase resultou em porradaria: “Pergunta prá mamãe, viadinho!
Pergunta prá mamãe onde está o saco!”
Constante Ramos, finalmente. Papai Noel, ou melhor, Marino
Terranova, respira aliviado. Até fica contente ao encontrar o porteiro
antipático do prédio. Este o saúda com um “Corre, Papai Noel, porque está
atrasado!”
Marino cogitou acrescentar um soco ao seu estoque quase
esgotado de “Vá à merda!” Pensou bem, respirou fundo e foi dormir.
Episódio 3 – O JUMBO
Roberto Dieckmann levou a notícia aos seus colegas de
Engenharia, no Fundão: “Pessoal, o Jumbo vai pousar hoje no Galeão!”
Início dos anos setenta, era a primeira vez em que um Boeing
747, da Pan American, chegava ao Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro.
Dieckmann botou uma pilha na turma: “Precisamos ir lá! Esse é um acontecimento
histórico! Não é longe daqui!”
Sugestão aprovada, comitiva formada, partem em direção ao
aeroporto. Lá chegando, percebem que não vai ser fácil ver o tal do Jumbo.
Esbarram na proverbial burocracia que massacra os brasileiros. Um sujeito diz
que não vai ser possível pelo motivo”A”. Outro diz que não pode autorizar a
turma a subir ao terraço, de onde o avião poderia ser avistado, pelo motivo
“B”. Um terceiro declara que “visitas de grupos” devem ser previamente
agendadas. Outro idiota de plantão, daqueles que adoram mostrar a autoridade de
que estão investidos, chega a sacar o “Regulamento Geral dos Aeroportos”, para
que a turma se dê conta da gravidade da transgressão que cogitam perpetrar.
Mas o fato é que os jumbófilos foram se virando, abrindo
portas e chegando cada vez mais perto do tal pátio, objetivo de sua excursão.
Uma última porta os colocou de frente para o crime. Ela foi
aberta e a turma se deparou com o gigantesco e assustador leme do Jumbo, que
sobressaía, majestoso, muitos metros acima de um último muro. Um segurança, um
soldado da Aeronáutica, quase do tamanho do muro se aproximou: “Vocês não podem
ficar aqui!”
A turma repetiu seus argumentos, explicando tratar-se de uma
visita rápida, que não duraria mais do que alguns poucos minutos...” “Vocês não
podem ficar aqui!” repetiu o clarividente segurança. A garotada decidiu
recorrer a argumentos técnicos. Eram alunos da Faculdade de Engenharia, ali
perto e a visita àquela maravilha tecnológica era para eles irresistível. Sai o
veredito final do segurança: “Vocês não podem ficar aqui!”
Mottinha, o baixinho, o tímido, o mais calado do grupo,
resolve dar o assunto por encerrado: “Enfia o Jumbo no cu!”
Passei aqui e gostei. Li até tarde, ontem. Creio que vc poderia gostar do Clube de Leitura de Icaraí. O CLIC. Um ótimo projeto.
ResponderExcluirElvira, este editor do seu O BISCOITO MOLHADO e o redator desta edição, o destemido SX, ficamos devidamente glamurizados com o seu comentário-convite. Gostaríamos de saber se há material na internet, ou se o Clube é presencial. Esta hipótese reveste-se de alguma impossibilidade de nossa parte, haja visto a idade de de ambos, que, se somadas. Não, é melhor não somar.
ResponderExcluirBiscoito,
ExcluirDesculpe não ter visto a sua pergunta. Hoje vim refugiar-me aqui e como tenho um hábito, gosto muito de reler os mesmos contos, li o de hoje e voltei até aqui. Vamos a resposta:
O CLIC é um clube de leitura completamente gratuito que já funciona há bastante tempo, nove ou dez anos e é presencial apenas uma vez por mês se o leitor desejar ir até Icaraí - UFF, para a reunião onde se debate, melhor, onde cada presente fala sobre o livro escolhido para aquele mês. O site você coloca no Google Clube de Leitura de Icaraí e a data e o acesso é imediato.
Minha neta frequenta e ontem na reunião falou sobre Clarice Lispector no Varandas da Literatura.
Eles, sem dúvidas, irão adorar o seu site. De tudo que percorri sobre Literatura na NET foi o mais interesse pela força que dão àqueles que escrevem. Acesse, vc vai gostar.