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terça-feira, 9 de maio de 2017

3032 - SX O valor de cada palavrão



O  BISCOITO  MOLHADO
Edição 5281 SX                           Data: 9 de maio de 2017

FUNDADOR: CARLOS EDUARDO NASCIMENTO - ANO: XXXIV

DESAFOROS

Tem horas em que o sujeito perde a compostura e diz barbaridades. Impropérios de corar um frade podem ser lançados por personagens diversos, sejam eles lordes do almirantado britânico ou traficantes da zona portuária.
Arrependimentos acontecem. Há quem admita que exagerou na dose. “Meu Deus, onde estava eu com a cabeça quando disse aquelas barbaridades ao Alfredinho?” Mas alguns ratificam o destempero: “Cacilda, esqueci de xingar aquele vagabundo disso, disso e mais aquilo!...Fica para a próxima vez...”
Gosto dessas narrativas sobre gente que chutou o pau da barraca. Vou relatar algumas. Para não escandalizar por demais os leitores, recorro à figura musical do “crescendo”. Começo com um episódio “light”, para chegar, na última história, a um final “majestoso”.

                                  Episódio 1 – O IRREDUTÍVEL TOMÁS

Roberto Ruiz de Gamboa foi um brilhante economista, com quem trabalhei na década de setenta. Morreu cedo, para imensa tristeza de uma legião de amigos e admiradores. Gamboa era o que se convencionou chamar um “intelectual de esquerda”. Combatia os governos militares e não perdia uma chance de participar de discussões acaloradas sobre distribuição de renda, reforma agrária, democratização do ensino e por aí ia. No auge de sua militância política, passou um tempo no Chile, trabalhando na CEPAL.
Essa disposição de combate pelas causas sociais já existia quando ele cursou a Faculdade Nacional de Economia, na Praia Vermelha. Participava ativamente do Diretório Acadêmico, empenhado em lutar por suas convicções.
Nem todos concordavam com suas ideias. Os embates eram diários. Um opositor contumaz era Tomás Villaret. Gordinho, rosado, rico, sotaque lusitano a denunciar que a família chegara há pouco de Portugal, Tomasinho era um oponente a ser batido. Essa incompatibilidade já se estendia por alguns semestres acadêmicos e, pelo visto, iria persistir até a cerimonia de formatura dos dois litigantes.
Gamboa era teimoso. Um belo dia se aproximou de Tomasinho com o discurso ensaiado: “Tomás, sei que nós já tivemos muitas contendas, e jamais concordamos. Mas hoje, depois de tantas desavenças, venho te propor um tema que, não tenho a menor dúvida, vai contar com o seu apoio”.
“Diga lá, Roberto”.
“Trata-se do seguinte. Trago aqui, para colher tua assinatura, um manifesto contra a bomba atômica”.
“Não assino!”
“Peraí Tomás. Acho que você não entendeu bem. Estou falando da bomba atômica. Uma calamidade! Uma loucura que pode acabar com a vida sobre a terra!”
“Não assino!”
“Tomás! Tenho certeza de que você não está entendendo. O que está em pauta é algo capaz de exterminar todos nós! Nossas famílias, nossos filhos...Acaba o mundo! Basta um maluco apertar um botão e tudo vai pelos ares!”
“Não assino!”
Gamboa perde a paciência. Percebe que não vai alcançar seu intento e não resiste a uma provocação final: “Tomás, sabe por que você não assina o manifesto? Pois eu sei! Você não assina porque é um covarde!”
“Covarde eu, Roberto? Covarde és tu que tens medo de bomba atômica!...”
  
                                          Episódio 2 – PAPAI NOEL

Véspera do Natal de 1958. Paulo Fortes dirigia, escrevia o roteiro e cantava, enfim, fazia tudo no programa “Carrossel Tonelux”, uma das atrações da TV-Rio.
Ele idealizou um programa dedicado ao Natal. Não havia vídeo-tape. Tudo era apresentado ao vivo. O problema é que o “Carrossel” terminava tarde da noite. Todos os envolvidos, artistas, equipe técnica, estavam loucos para dar o trabalho por encerrado e correr às suas casas para comemorar a data com os familiares.
Programa de Natal tem que ter Papai Noel. Marino Terranova, cantor de ópera paulista que vinha tentando a sorte no Rio de Janeiro, foi convencido pelo chefe a aceitar o papel. O traje do bom velhinho lhe caía bem. Marino era gordinho e simpático. Muito querido por seus colegas do Teatro Municipal, até porque era festeiro e cozinhava divinamente.
Pois muito bem. O “Carrossel” chega ao seu final e o que se vê é uma desabalada corrida de toda a equipe em direção ao vestiário da TV-Rio. Vestem-se freneticamente e saem a jato da emissora do Posto Seis. Todos, menos um: Marino Terranova. Sabe-se lá porquê, Papai Noel se atrasou. E encontrou o vestiário hermeticamente fechado. Gritou, deu socos na porta...e nada. Entrou em pânico quando se deu conta de que não tinha um tostão no bolso. Na verdade, nem bolso havia na sua roupa de Papai Noel.
Nada a fazer. Começou sua caminhada da estação de TV até a Rua Constante Ramos, onde alugava um pequeno apartamento. Espumava de raiva, antevendo o problemão que tinha pela frente. Não deu dez passos e ouviu o grito de um mendigo: “Papai Noel, me dá um presente?” A resposta foi carinhosa: “Vá prá puta que o pariu!” Dois quarteirões mais adiante o português do bar debochou do andar apressado do nosso personagem, incompatível com a idade do bom velhinho. Foi saudado com um rotundo “Vai à merda!”
Crianças também não foram poupadas nesse trajeto. Um guri acompanhado de pais e irmãos teve a má ideia de cobrar: “Papai Noel! Cadê o saco?” A resposta quase resultou em porradaria: “Pergunta prá mamãe, viadinho! Pergunta prá mamãe onde está o saco!”
Constante Ramos, finalmente. Papai Noel, ou melhor, Marino Terranova, respira aliviado. Até fica contente ao encontrar o porteiro antipático do prédio. Este o saúda com um “Corre, Papai Noel, porque está atrasado!”
Marino cogitou acrescentar um soco ao seu estoque quase esgotado de “Vá à merda!” Pensou bem, respirou fundo e foi dormir.

                                          Episódio 3 – O JUMBO

Roberto Dieckmann levou a notícia aos seus colegas de Engenharia, no Fundão: “Pessoal, o Jumbo vai pousar hoje no Galeão!”
Início dos anos setenta, era a primeira vez em que um Boeing 747, da Pan American, chegava ao Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro. Dieckmann botou uma pilha na turma: “Precisamos ir lá! Esse é um acontecimento histórico! Não é longe daqui!”
Sugestão aprovada, comitiva formada, partem em direção ao aeroporto. Lá chegando, percebem que não vai ser fácil ver o tal do Jumbo. Esbarram na proverbial burocracia que massacra os brasileiros. Um sujeito diz que não vai ser possível pelo motivo”A”. Outro diz que não pode autorizar a turma a subir ao terraço, de onde o avião poderia ser avistado, pelo motivo “B”. Um terceiro declara que “visitas de grupos” devem ser previamente agendadas. Outro idiota de plantão, daqueles que adoram mostrar a autoridade de que estão investidos, chega a sacar o “Regulamento Geral dos Aeroportos”, para que a turma se dê conta da gravidade da transgressão que cogitam perpetrar.
Mas o fato é que os jumbófilos foram se virando, abrindo portas e chegando cada vez mais perto do tal pátio, objetivo de sua excursão.
Uma última porta os colocou de frente para o crime. Ela foi aberta e a turma se deparou com o gigantesco e assustador leme do Jumbo, que sobressaía, majestoso, muitos metros acima de um último muro. Um segurança, um soldado da Aeronáutica, quase do tamanho do muro se aproximou: “Vocês não podem ficar aqui!”
A turma repetiu seus argumentos, explicando tratar-se de uma visita rápida, que não duraria mais do que alguns poucos minutos...” “Vocês não podem ficar aqui!” repetiu o clarividente segurança. A garotada decidiu recorrer a argumentos técnicos. Eram alunos da Faculdade de Engenharia, ali perto e a visita àquela maravilha tecnológica era para eles irresistível. Sai o veredito final do segurança: “Vocês não podem ficar aqui!”

Mottinha, o baixinho, o tímido, o mais calado do grupo, resolve dar o assunto por encerrado: “Enfia o Jumbo no cu!”

3 comentários:

  1. Passei aqui e gostei. Li até tarde, ontem. Creio que vc poderia gostar do Clube de Leitura de Icaraí. O CLIC. Um ótimo projeto.

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  2. Elvira, este editor do seu O BISCOITO MOLHADO e o redator desta edição, o destemido SX, ficamos devidamente glamurizados com o seu comentário-convite. Gostaríamos de saber se há material na internet, ou se o Clube é presencial. Esta hipótese reveste-se de alguma impossibilidade de nossa parte, haja visto a idade de de ambos, que, se somadas. Não, é melhor não somar.

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    1. Biscoito,
      Desculpe não ter visto a sua pergunta. Hoje vim refugiar-me aqui e como tenho um hábito, gosto muito de reler os mesmos contos, li o de hoje e voltei até aqui. Vamos a resposta:
      O CLIC é um clube de leitura completamente gratuito que já funciona há bastante tempo, nove ou dez anos e é presencial apenas uma vez por mês se o leitor desejar ir até Icaraí - UFF, para a reunião onde se debate, melhor, onde cada presente fala sobre o livro escolhido para aquele mês. O site você coloca no Google Clube de Leitura de Icaraí e a data e o acesso é imediato.
      Minha neta frequenta e ontem na reunião falou sobre Clarice Lispector no Varandas da Literatura.
      Eles, sem dúvidas, irão adorar o seu site. De tudo que percorri sobre Literatura na NET foi o mais interesse pela força que dão àqueles que escrevem. Acesse, vc vai gostar.

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