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sexta-feira, 30 de novembro de 2012

2268 - a marca da maldade


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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4068                             Data: 20  de novembro de 2012
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73ª VISITA À MINHA CASA
                                                3ª PARTE    

-Houve o divórcio da Rita Hayworth e você, Orson Welles, continuou mal visto pela indústria de Hollywood, como diretor.
-Aceitavam-me ainda como ator. Em 1948, eu atuei no filme O Terceiro Homem dirigido por Oliver Reed, com direito a acrescentar alguma coisa na criação. Atuei no papel do cínico Harry Lime.
-O filme é para se rever e a sua frase se destacou: “A Itália viveu 30 anos sob os Bórgias e tiveram guerras, terror, assassinatos e derramamento de sangue, mas nos deram Michelangelo, Da Vinci, a Renascença. Na Suíça, eles têm amor fraterno e 500 anos de democracia e paz, e o que mais produziram: o relógio cuco.”
-Rodei, como diretor, Othelo, porém, tive de contar com a compreensão de todos os participantes, pois o dinheiro era escasso e, por isso, a filmagem durou anos, de 1949 a 1952.
-Mas com o seu filme, exibido na Festival de Cannes, você obteve a Palma de Ouro.
-Os europeus, quando vão ao cinema, não visam apenas o entretenimento, como os americanos, eles são mais receptivos à arte. - comparou.
-Você atuou em alguns filmes medíocres, depois, até que dirigiu Monsieur Arkadin.
-O produtor francês Louis Doliver me admirava e quando o roteiro lhe chegou às mãos, conseguiu convencer o estúdio Filmrosa a financiar o meu projeto.
-Assisti a essa criação, no cinema, em 1985, na homenagem pela sua morte, como já me referi. O título era Monsieur Arkadin, depois, mudaram aqui, no Brasil, para Grilhões do Passado.
-Fiz seis programas para a BBC TV em que havia ilustrações com desenhos meus. Para a televisão, atuei em Moby Dick, mas não no papel da baleia.  Dei início a filmagem de Don Quixote, que foi mais um dos meus filmes inacabados.
-Reza a lenda que o ator Charlton Heston, sucesso assegurado de bilheteria, sonhava em atuar sob a sua direção. Assim, abordou o chefão da Universal, em 1957, para que financiasse um filme.
-E eu filmei Touch of Evil,
-Aqui, no Brasil, chamou-se A Marca da Maldade.
-Quem pensou que eu me enquadraria aos padrões de Hollywood, enganou-se rotundamente.
-As tomadas de câmera no início de Touch of Evil, deixaram os estudiosos de cinema babando de admiração. - assinalei.
-Charlton Heston atuou no papel do policial Vargas.
Tirei um livro da estante e disse:
-Eis o que um cinéfilo escreveu sobre A Marca da Maldade.
E li:
-”Neste filme, as imagens desse mago da luz e da sombra, chamado Russel Mety, mergulham a objetiva na fronteira maniqueísta que Welles borrou mais do que ninguém, e esculpe imagens inesquecíveis e metafóricas da corrupção institucionalizada que macula o painel da querida América. O filme, terminado, leva os produtores àquela exasperação, desprezo e baixa autoestima que sentem os autores de crimes passionais. E como estrangular Welles é inútil, passam horas à frente da moviola tentando salvar o filme, isto é, a imagem da América. Tarefa impossível: como o material não o permite, só resta lançar o filme. A maioria silenciosa exige que, no mínimo, Welles sirva de alimento aos tubarões; e assim foi feito: ele jamais voltaria a dirigir em Hollywood.”
A sua expressão era enigmática, enquanto eu lia, quando terminei fiz-lhe a pergunta:
-E o que fez em seguida.
-Além de papéis em filmes, um deles do meu grande amigo John Houston, rodado na África, trabalhei na televisão. Na Itália, eu até aceitei realizar um filme sobre a Gina Lolobrigida para a televisão, com entrevistas, fotos e desenhos de Steinberg. Eu precisava de dinheiro para retomar as filmagens do meu Dom Quixote.
-Em 1962, você mergulhou no absurdo kafkiano.
-Surgiu, então, a oportunidade de eu dirigir O Processo.
-E o produtor?
-O mesmo de Touch of Evil, Albert Zugsmith, por isso, penso que o rapaz do texto que você leu exagerou um pouco.
E prosseguiu:
-Kafka é um dos meus autores preferidos. Trabalhei dia e noite no roteiro e guardei para mim o papel de advogado.
-Onde ocorreu a filmagem, Welles?
-Em Paris e Zagreb, de março a junho de 1962.
-O romance de Franz Kafka era uma mina de ouro para você explorar.
-Foi uma espécie de palco onde pude expressar a repulsa que me causava um mundo em que se é executado sem se saber de que culpa o Estado o acusa.
-Um mundo que não terá culpados suficientes para justificar os tentáculos da justiça e toda a engrenagem burocrática que os mantém em movimento. Resumindo: Kafka denunciou a desumanização do homem pela burocracia.
-A crítica gostou da fita. - resumiu.
-O público não poderia entender como alguém, no caso Joseph K., foi condenado por um crime que não sabe qual é. A crítica, no entanto, gostou dos recursos expressionistas e, em quase sua totalidade, aplaudiu. Era impossível, até então, para todos, que alguém transpusesse para o cinema o universo de Franz Kafka.
-Devemos tudo a Max Brod, amigo do escritor, que não lançou ao fogo os seus papéis, conforme pedido dele no leito de morte.
-Lembra-se dos participantes do filme?
-O cenário e os diálogos eram da minha lavra. A fotografia coube a Edmond Richard. Anthony Perkins viveu o papel de Joseph K. e eu, como já foi dito, de advogado. Atuaram Jeanne Moreau, Madeleine Robinson, Elza Martinelli, Romy Schneider, Suzane Flon, Akim Tamiroff, Arnold Foa, Fernand Ledoux, Katina Paxinou.
-Os anos se seguiram e você continuou a trabalhar como ator, como em Gente Muito Importante, As Aventuras de Marco Polo...
-Em 1966, dirigi e fiz o roteiro do Falstaff, baseado na peça de Shakespeare. A filmagem ocorreu na Espanha.
-Infelizmente, não colocaram na mostra dos seus filmes a que me referi, em 1985.
-E continuei com o cinema na mente; realizei filmes curtos, inacabados, para a televisão. Levava a minha equipe por toda Europa Yugoslávia, Dalmácia...
-Em 1976, em cerimônia que contou com Joseph Cotten, Charlton Heston, Ingrid Bergman, Janet Leigh, Frank Sinatra e mais de 1000 pessoas, você recebeu o Grande Prêmio do “American Film Institute”, distinção só outorgada ao diretor John Ford e ao ator James Cagney.
-Recordo-me bem.
-Em 1983, você recebeu o prêmio “Luchino Visconti” pela sua contribuição à evolução da linguagem do cinema.
-Dois anos antes da minha morte.
-Você se sentiu recompensado?
-Prefiro estar filmando a fazer qualquer outra coisa. Fico estonteado com meu amor ao cinema. Não em relação aos filmes, que nem gosto de ver. Eu adoro mesmo é fazer filmes.
E com essas palavras, volatizou-se à minha frente.

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