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quarta-feira, 28 de novembro de 2012

2266 - Wells & Welles


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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4066                             Data: 18  de novembro de 2012
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73ª VISITA À MINHA CASA

-Com os meus 130 quilos, custei a me materializar. Se eu mantivesse o meu corpo de galã...
Voltei-me para onde vinha essa voz e me  assombrei.
-Kane... Cidadão Kane.
-Fui vários personagens, não um só. - ralhou comigo o Orson Welles.
-Sei disso, por ocasião da sua morte, em 1985, muitos dos seus filmes entraram em cartaz nos cinemas e eu vi praticamente todos.
-É o mercantilismo das distribuidoras cinematográficas; filmes antigos ficam restritos às televisões e cinematecas, como os carros clássicos do passado ficam restritos exclusivamente aos colecionadores.
-Então, Orson Welles, depois de assistir ao Cidadão Kane umas cinco ou seis vezes na televisão e em fita VHS, tive a oportunidade de apreciar a sua obra-prima no cinema, em 1985.  Isso aconteceu no Estúdio-Catete; depois do filme, fui ao banheiro e me surpreendi com a presença do líder estudantil, que lutou contra a ditadura militar brasileira, Vladimir Palmeira, urinando no mictório do lado do meu. - tagarelei.
-Não posso dizer que sou marxista, pois coexistem em mim todas as contradições do mundo.
-Vladimir Palmeira não era também marxista; eu o vi, recentemente, numa entrevista na TV Câmara afirmando que o enviaram para Cuba, mas ele queria ir mesmo era para Paris.
-Quando eu e Hollywood nos separamos por incompatibilidade de gênio, fiz as malas rumo a Paris, embora eu tenha passado um bom tempo em grande parte deste mundo.
-Welles, você foi um menino-prodígio, com dois anos de idade ganhou um teatro de marionetes que estimulou a sua imaginação, e ainda de calças curtas, já simulava encenações de peças shakespearianas.
-Aprendi a ler com Shakespeare; as suas peças foram o meu abecedário. Shakespeare é sempre mal ensinado, no meu caso, foi cedo demais.  Comecei a aprender Shakespeare, de fato. Quando tive de desempenhar um papel, aos dezesseis anos, como ator principal na Irlanda.
-Assisti também no cinema, nessa mostra de 1985, o seu Macbeth e o seu Othelo.
-Quando filmei Shakespeare para as telas dos cinemas, mudei o texto, modifiquei alguns versos aqui e acolá. É uma antiga tradição teatral, embora não seja tão audacioso como mudar Racine ou Corneille na “Comédie Française”. Com Shakespeare isso é mais fácil e as suas peças são uma verdadeira mina, pois de cada uma podem ser feitos cinco ou seis filmes diferentes.
-No seu Macbeth, filmado num galpão abandonado dos estúdios da Republic, você mostrou deliberadamente cenários artificiais, o que Fellini copiaria 39 anos depois. Muitos críticos consideraram a melhor transposição de Shakespeare para as telas.
-Isso foi em 1947; escolhi o elenco em uma semana e filmei tudo em menos de 30 dias.
-Voltando à sua infância, Welles, você, com 4 anos de idade, reuniu os adultos ao ser redor, e realizou um espetáculo de mágica, provocando gritos de assombro, depois, ria com a reação das pessoas.
-O ilusionismo me arrebatava desde menino.
-E a habilidade de prestidigitador sempre o acompanhou.
-Até o dia em que morri.
-Welles, a sua grande paixão foi o teatro?
-Sim; deixei pasmos meus colegas e professores do “Tood School de Woodstock”, com 10 anos de idade, quando montei Andrócles e o Leão, de Bernard Shaw. Já era ator do Teatri Madison de Chicago com 11 anos de idade, Nesse tempo, eu me dava muito bem com uma cantora de ópera de voz sofrível, que não me via como um pirralho.
-E a ópera?
-Adoro a ópera; nunca me canso de assistir a ela. Quando bem encenada, é a mais elevada de todas as artes de espetáculo. Considero a ópera a experiência do absoluto teatral. A voz é um elemento comovente. Encenei algumas óperas em Nova York, mas nenhum dos velhos cavalos de batalha.
-Quais os seus compositores de óperas prediletos?
-Mozart,  Bellini, Donizetti, Verdi – tudo de Verdi. Não sou wagneriano, detesto Berlioz.
-O teatro de marionetes de que falamos foi um presente do dr. Bernstein; ele o estimulou também a pintar. O dr. Bernstein exerceu uma atividade misteriosa e marcante na sua infância.
-Talvez, ele tenha sido amante da minha mãe.
-E você se mostrou um bom pintor.
-Comecei a estudar desenho e pintura com o russo Boris Anisfield e, depois, no Instituto de Arte de Chicago. Essa atividade me ajudou nas montagens de peças teatrais em que tive de pintar os cenários e figurinos.
-O Dr. Bernstein vislumbrava nas suas aquarelas a beleza trágica de Van Gogh.
-Como você depreende, ele queria me estimular além da conta.  Larguei os pincéis e parti para Dublin. Com 16 anos de idade, apresentei-me no “Gate Theatre” como astro de primeira grandeza dos teatros de Nova York.
-E qual foi a reação dos irlandeses?
-Deram-me o papel do octogenário judeu Süss, da peça de Lion Feuchtwanger, e o papel do espectro de Hamlet. Atuei ainda, de Shakespere,  em Thimon de Atenas, Ricardo III, de Ibsen, em Peer Gynt, de Carlo Goldoni, em La Locandiera, de Ben Johnson, em Volpone, de Bernard Shaw, em Homem e Super-Homem. Desenhei os cenários e figurinos de As Três Irmãs, de Tchekov, e A Dama do Mar de Ibsen.
-Você partiu de Dublin para Londres?
-Sim, eu me sentia limitado na capital da Irlanda, precisava de uma metrópole.
-Bem, Orson Welles, você seguia com o teatro quando, em 1936, a CBS o empregou como locutor de um programa semanal.
-Foi em 1936?... Ano em que casei com a atriz Virginia Nicholson, com quem tive a primeira das minhas três filhas.
-E o trabalho no rádio? - precipitei-me.
-Espera, antes eu escrevi um roteiro de O Coração das Trevas de Joseph Conrad, que nunca foi filmado.  No Mercury Theatre, encenei Júlio Cesar, de Shakespeare, adaptando a peça para a atualidade, o fascismo que se estendia da Itália para a Alemanha.
-Um triunfo! Vi um filme realizado a alguns anos, Orson Welles e eu, que retrata os bastidores dessa encenação e o sucesso obtido.- manifestei-me.
-Mas, por falta de público e de dinheiro, era o rescaldo da crise econômica, as portas do “Mercury Theatre” iam ser fechadas, quando eu com o meu elenco fomos contratados pela CBS para representar, diante dos microfones, a dramatização de romances clássicos.
-Era a febre do rádio que se difundia por todo os Estados Unidos.
-Dramatizamos romances de Stendhal, Tolstoi, Dumas, Flaubert, H.G Wells...
-Você adaptou “A Guerra dos Mundos” de H.G. Wells em um noticiário sobre a invasão da terra pelos marcianos, entremeado com músicas corriqueiras. As notícias chegam num crescendo de emoções até que o repórter solta um grito de vítima dos alienígenas. O pânico tomou conta dos Estados Unidos, muitos viram marcianos por toda a parte; houve suicídios, partos prematuros, fugas para a montanha...
-A polícia invadiu o estúdio da rádio e me levou preso. Diante de toda a imprensa, eu expressei o meu espanto de as pessoas não saberem que se tratava de um clássico da literatura.
-Você representou esse espanto, Welles, eu vi num documentário.  Mas assim, alcançou a celebridade em todo o país.
-E o melhor: assinei um contrato com Hollywood que ia além dos meus sonhos.
-Era o caminho para a filmagem do Cidadão Kane.

 


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