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segunda-feira, 16 de julho de 2012

2183 - o implante da mudez

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O BISCOITO MOLHADO
Edição 3983                                     Data: 09 de julho de 2012
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ALMOÇO  À  TROIS

Luca me cobrava um almoço com o “amigo Elio”, pois o último ocorreu no Alentejano no dia 20 de janeiro, data em que não se trabalhava no Rio de Janeiro, em homenagem ao santo padroeiro da cidade. Cinco meses depois, exatamente no dia 20 de junho, abriu-se uma brecha na agenda dos comensais porque o prefeito, atendendo a um pedido da Presidente da República, declarou os dias 20, 21 e 22 como ponto facultativo por causa do evento Rio + 20.
 Afirmar que se abriu uma brecha na agenda é um exagero, pois o Elio Fischberg tinha programado de manhã um implante dentário, ainda assim, confirmou as sua presença. No sabadoido que antecedeu àquela quarta-feira, no restaurante Alentejano, Luca expressou a sua preocupação.
-Será que o meu “amigo Elio” estará em condições de cantar comigo ao som da flauta boliviana do Buraco do Lume?
Acalmei-o:
-Luca, fiz um implante de dente dez anos atrás e só fiquei fora de combate enquanto houve a cirurgia; nas outras fases do tratamento, eu praticava os meus exercícios aeróbicos normalmente.
O almoço foi marcado para as 12h 15min. Como o Luca me pegaria de carro, calculei que quarenta minutos seria tempo suficiente para irmos do Cachambi à Rua São José; por isso, às 11h, eu conversava com a minha irmã, que aparecera lá por casa. Nesse instante, o telefone tocou: era o Luca; demonstrava preocupação com o trânsito.
-Que horas você vem, então, me buscar? - perguntei.
-Saio de casa agora.
Cacete, tenho de fazer em dez minutos o que Joséphine Bonaparte fazia em dez horas: vestir-me.
Ajustei-me na camisa, olhando pela janela, quando vi o Luca. Por sorte, meu cunhado, que viera pegar a minha irmã, o retardava com um animado papo. Calculei que conversavam sobre a tradicional festa junina da Dona Zita (sogra do Luca), que aconteceria dentro de pouco tempo, reunindo as gerações dos moradores da Chaves Pinheiro com seus familiares.  Aqui, um parêntese: a festa aconteceu e, segundo o depoimento dos que a frequentam há mais de 20 anos, foi descaracterizada pelo grande número de pessoas que nem sabia direito em que rua estava.
Sempre coloco as mãos no bolso para saber se falta alguma coisa, não faltava; assim sendo, saí de casa acompanhado da minha irmã. Na rua, houve os cumprimentos de praxe, depois, entrei no carro do Luca e ela, no do marido.
-Não sei como será o trânsito que vamos encontrar, por isso, é bom irmos agora. - mostrou-se previdente.
-Ouvi no rádio, que haverá uma concentração na Cinelândia e, depois, uma passeata pela Avenida Rio Branco.
-Agora? - crispou-se o rosto do Luca.
-4h da tarde. - tranquilizei-o.
-Ainda assim, a Rio Branco está interditada.
-Podemos fazer como naquele almoço em que você foi pela Cidade de Deus porque tinha de passar no bicheiro de lá para apanhar o dinheiro que você ganhou no jogo.
Não sei se ele ouviu a minha sugestão, pois se deteve em outro assunto.
-Você viu aqueles índios que apontaram o arco e a flecha para os seguranças do BNDES? Eles trataram de se esconder.
-A cena dos galalaus com medo das flechadas dos índios não deixou de ser engraçada. - observei.
-Está cheio de índios pela cidade.
-Luca, eu ia, na segunda-feira, para o restaurante Jirau, quando vinha, em sentido contrário, a passeata da cúpula das nações, assim, eu assisti a tudo.
-Então, você viu as mulheres batendo tambor de peito de fora?
-As que vi batendo tambor, serei sincero, estavam de bustier. Havia várias alas, naquela passeata, como um bloco carnavalesco: ala dos sem-terra, das lésbicas, das estrangeiras... Da caixa de som vinha um discurso em língua espanhola. Havia trechos da passeata com uma animação contagiante.
Luca evitou as avenidas presidente Vargas e Rio Branco, trafegando pelas imediações da Lapa para chegar ao estacionamento do Unibanco, a uns trezentos metros do restaurante Alentejano sem problemas.
-Estamos chegando, Carlinhos.
-Estacionar ali requer muita perícia, Luca. Eu, quando dirigia, treinava no estacionamento do Norte Shopping, isso na época em que trabalhei meio-expediente. Mesmo com aqueles treinos, tenho as minhas dúvidas de que posicionaria bem um carro onde você vai parar.
-Caramba, é um vigia do Unibanco que não me conhece. - preocupou-se, quando despontou com o seu carro na frente do estacionamento.
Luca se dirigiu a ele falando dos seus velhos conhecidos do banco, enquanto mostrava sutilmente ao vigia a sua condição de calouro.
-Carlinhos, aqui é o lugar dos diretores e eu estou de bermudas. - sussurrou.
-Luca, enquanto você estaciona, vou ao banheiro. Como diz a Rosa, eu transbordo como a “Fonte dos Quatro Rios” em Roma.
Dez minutos depois, sentamos na mesa de costume do Alentejano, e aguardamos o Elio Fischberg. Divisei-o ao longe, com algo brilhante na mão. (*) Enquanto ele apertava a mão do Luca, disse-lhe que me parecia Diógenes, com uma lanterna na mão, à procura e um homem...
-À procura de um homem honesto, bem entendido, Elio. - frisei.
-Venho do dentista.
Elio Fischberg me surpreendeu ao contar que, de fato, passara, horas antes, por uma cirurgia de implante.
-Como evoluiu!... Eu levei três anestesias, o dentista pediu à enfermeira o martelo cirúrgico e o meu dente levou várias marteladas. O sangue se espalhou pela minha cara.
-Eu não posso beber nada alcoólico e a minha comida terá de ser pastosa. - informou o Elio.
Com a chegada do garçom, pediu-se uma sopa para ele. O garçom nos alertou que demoraria, pois não estava na previsão. Mas isso não importava.
-Também não posso falar muito. - acrescentou o Fischberg. (**)
-Deixa isso com o Luca.
Luca entrou, então, num dos assuntos que mais inflamam a sua oratória: Caetano Veloso. Se Cícero lançou as catilinárias, discursos em que desancava Catilina, Luca lançou as “caetantinárias”.  Como se reportava à crônica do compositor em que foram citadas a droga e a presença de um dos filhos do banqueiro Walter Moreira Salles, aparteei:
-Walter Moreira Salles foi ministro da Fazenda do governo João Goulart.
Luca pensou que tal cargo fora ocupado pelo banqueiro no governo JK. Elio também, porém, expressei-me com tamanha convicção, que eles não discutiram comigo.
Causídico Verborrágico concordou com o Luca: Caetano Veloso cometia um grave erro em reviver uma polêmica com Paulo Francis, quando ele não está vivo para se defender. Tratava-se de um assunto inteiramente intempestivo.
-Eu até comentei com a Regina sobre o descalabro que o Caetano Veloso cometeu nesse artigo. - disse o Elio.
-E ele dizer que o Paulo Francis não emplacou uma frase no New York Times, enquanto a Tropicália é uma referência. - indignou-se o Luca.
-Isso é uma idiotice. - resumi.
Findo o almoço, que mesmo não ocorrendo nas melhores condições físicas de um dos comensais, foi ótimo, eu disse, enquanto atravessávamos a porta do Alentejano:
-Vocês dois não vão cantar?... Se vão, nada de canções depressivas, pois, das outras vezes, os leitores reclamaram. Porém, com a falta do boliviano flautista, que talvez se preparasse para alguma passeata da Rio +20, eles não se animaram.

(*) Seria o implante?
(**) E o Distribuidor perdeu essa?



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