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terça-feira, 3 de julho de 2012

2175 - meu padinho Ciço

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O BISCOITO MOLHADO
Edição 3975                                       Data: 23 de junho de 2012
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85ª VISITA À MINHA CASA

Quando ergui os olhos acima do livro que lia, vi uma ilustre personalidade à minha frente.
-Cícero, o grande romano! - exclamei.
Corrigiu-me em voz baixa.
-Infelizmente não sou romano por causa de 100 quilômetros.
-Como assim?
-Nasci em Arpino, cidade localizada numa colina que dista 100 quilômetros do sul de Roma.
-Você se tornou, com os seus multifacetados talentos, um cidadão de todo o mundo: filósofo, orador, tradutor, linguista, escritor, advogado.
-E político, não se esqueça.
A política, porque o levou mais cedo desta existência, eu preferi omitir.
-Sim, Cicero, mas transcorridos 2000 anos, você é lembrado pelo seu humanismo.
-Mais de 2000 anos, pois nasci em 106 a.C, na cidade de Arpino, como falei.
-E você será lembrado, pela sua extraordinária mente até o fim dos tempos.
-Você sabe o que significa Cícero em Latim?
-Eu tenho um amigo, Dieckmann, grande latinista, que me explicou, mas esqueci. Parece que o historiador Plutarco, em cujos livros Shakespeare se baseou para elaborar suas peças sobre a Antiga Roma, esclareceu esse ponto.
-Cícero é grão de bico. Eu tinha uma covinha na ponta do nariz que parecia um grão de bico, então, o nome. Quando entrei para a política, amigos me sugeriram a mudança de nome, mas declarei que faria Cícero mais glorioso do que Catulo, que significa “Cachorrinho”, e Escauro, cujo sentido é “com tornozelos inchados”.
-Sobre a sua formação...
-Minha formação se deve, além do meu esforço para os estudos, a riqueza adquirida pelo meu pai, que pertencia à ordem equestre. Deixe-me explicar: equestre era uma classe privilegiada da Roma antiga formada pelos cavaleiros. Os problemas de saúde impediram que entrasse para a vida pública, mas conheceu muita gente influente, além de ser muito estudioso.
-E a sua mãe?
-Chamava-se Hélvia e soube cuidar da casa.
-Por isso, Cícero, você foi bem encaminhado.
-Fui educado com os ensinamentos dos antigos filósofos, poetas e historiadores gregos. Em Roma, se uma pessoa pretendia ser culta tinha de falar grego e latim. A classe alta romana preferia, nas suas correspondências, o grego, porque as suas expressões eram mais precisas e refinadas, também era um idioma mais apropriado a sutilezas.
-Você apresentou aos romanos as escolas de filosofia grega?
-Utilizei o meu conhecimento do idioma grego para traduzir muitos dos conceitos filosóficos da Antiga Grécia, criando, assim, um dicionário filosófico em latim.
-Plutarco escreveu que, como estudante, o seu destaque era tão acentuado que Roma já o conhecia, então você se instruiu sobre as leis romanas.
-Tive ótimos colegas de aprendizagem: Caio Mário, o Jovem; Sérvio Sulpício Rufo, grande advogado; Tito Pomponio.
-Tito Pomponio recebeu a alcunha de “Ático”, porque era um apaixonado pela cultura helênica – observei.
-Sim; os dois últimos foram meus amigos por toda a vida, mas “Ático” era o meu conselheiro.
-E qual a sua ambição, enquanto se formava?
-Eu pretendia seguir carreira no serviço público civil nos passos do Cursus honorum.
-Servi, de 90 a.C a 88 a.C., a Cneu Pompeu Estrabão e Lúcio Cornélio Sula.
-Mas você não tinha aptidão alguma para a vida militar, era essencialmente um intelectual.
-Sim; passei a advogar por volta de 83 a.C, não me recordo o ano preciso.
-Você defendeu Sexto Róscio, acusado de parricídio, um crime hediondo.
-Para defendê-lo tive de apontar os verdadeiros criminosos entre eles Crisógono, que era favorito do ditador Sula.
-Era um desafio indireto ao ditador, ele poderia matá-lo, Cícero.
-Corri risco de vida, mas salvei Róscio: ele foi absolvido.
Correu muitos riscos durante a sua vida, mas não salvou a República. - pensei sem me manifestar.
-Parti, em seguida, para a Grécia.
-Lá aprendeu os fundamentos que o tornaram o maior orador de Roma. - interferi na sua narrativa.
-Também visitei a Ásia Menor e Rodes, mas, em Atenas, reencontrei-me com o querido Ático, que se tornara cidadão honorário dessa insigne cidade. Ele me apresentou a importantes atenienses. Visitei os lugares sagrados dos filósofos que inflamavam minha imaginação.
-A Grécia era uma imensa escola.
-Consultei diversos retóricos para aprender um estilo de falar que cativasse a atenção dos ouvintes. Apolonio Mólon, de Rodes, me ensinou um estilo de oratória com mais substância e menos ornamentações que influenciaria o meu estilo discursivo nos anos que eu viveria.
-Você era o mais grego dos romanos?
-Apetece-me que me chame de romano. Voltei, depois dessa viagem, para Roma, evidentemente.
-Antes dessa ida a Grécia, você já conhecia helenos de suma importância, em termos intelectuais?
-Com certeza; em 87 a.C, Filão de Larissa veio a Roma e quem era Filão de Larissa? Ele era o chefe da Academia fundada por Platão há 300 anos. Sentei-me a seus pés e absorvi tudo o que pude dos seus ensinamentos. Fiquei encantado com a filosofia platônica. Eu admirava sobremaneira a seriedade política e moral de Platão.
-Platão foi um deus para você?
-Naquele período da minha vida, sim, mas concluí que as ideias dele iam de encontro às minhas.
-A República de Platão não era igual a sua República. - disse.
Como parecia que Cícero não me ouvira, perguntei-lhe com a voz um pouco elevada.
-Quando você se casou?
-Em 79 a.C, com Terência, quando eu contava com 27 anos de idade.
-Você a amava?
-A classe alta da época não podia se dar ao luxo de casar por amor.
-Na sua época e em todas as outras. - aparteei.
Cícero prosseguiu:
-Foi um casamento de conveniência. A família de Terência era rica, tinha origem nobre, apesar de ligações com a plebe, compensava, enfim, as minhas ambições políticas no terreno econômico e social.
-Plutarco escreveu que Terência tinha interesse no progresso da sua carreira política.
-Bem, o nosso casamento durou, harmoniosamente, 30 anos.
-Um dia, as suas cartas para ela se tornaram curtas e distantes...
-Os estudiosos devem estranhar mais as minhas poucas palavras do que a minha frieza.
-Sim, os destinatários das suas cartas sempre liam páginas e mais páginas. Cornelius Nepos, o biógrafo de Ático, escreveu que suas cartas continham tantas riquezas de detalhes sobre a inclinação de homens importantes, erros de generais e revoluções, que os seus leitores já sabiam praticamente tudo sobre a história do período vivido por você.






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