O BISCOITO MOLHADO
Edição 5318 SX
Data: 2 de agosto de 2017
FUNDADOR: CARLOS EDUARDO
NASCIMENTO - ANO: XXXIV
A VIDA É UMA MERCURY
Alfredinho chega na praia no horário habitual. Passa do meio
dia e sua cara amarrotada denuncia uma noite atravessada em endereços pouco
recomendáveis do Rio de Janeiro.
Com esforço, consegue abrir os olhos e enfrentar o sol que
ferve as areias de Ipanema naquele verão de 1954. Localiza sua turma,
estacionada em torno da rede de vôlei da Joana Angélica. André, amigo do peito,
é abordado sem cerimonia: “Precisamos ir a São Paulo no sábado que vem”. Não dá
chance ao amigo para desqualificar o programa. Explica que o problema é a
Dorinha. Que não consegue viver sem ela. Que o xeque-mate que recebera do pai
da moça “ou casa ou ela me acompanha no meu novo posto em Washington!” tivera
sobre ele um efeito devastador. Dá início a um festival de imprecações: “Aquele
coronel de titica! Nanico! Bigode torto! Dois palmos menor que a mulher
dele!...
André faz contas para tentar argumentar que a mulher do
coronel não era assim tão maior do que ele. Mas prefere discutir a essência da
questão. Afinal, o “dá ou desce” do coronel havia ocorrido meses atrás. Por que
aquele desespero, agora?
“É porque tá chegando a hora, André...É porque tá chegando a
hora. Eu tô desesperado...Não há nada que me console...Não há farra que me
acalme...Eu não aguento mais...A Dorinha...Que fleuma, André...Que
distinção!...Ela diz que entende minha situação...Que eu ainda tenho muito a
aproveitar...Uma deusa, uma verdadeira deusa!...”
André não se atreve a discordar. Só não entende o porquê da
viagem a São Paulo. Alfredinho engrena a explicação. “Prá deixar a filha casar,
o coronel exige que a gente compre um apartamento. Pode até ser pequenininho,
mas tem que ter um apartamento. Com que dinheiro? Com aquela mixaria que eu
ganho no banco? Impossível”. Explica, então, o seu plano: “Você se lembra do J.
Benitez? Aquele jóquei chileno safado de doer? Pois bem, eu contei prá ele o
meu drama e ele disse que tem a solução. No domingo que vem um páreo importante
vai ser corrido no Jockey Clube de São Paulo. O volume de apostas vai ser alto.
Nesse tal páreo vai correr um cavalo chamado Turbinado. Pangaré horroroso. Não
ganha nem par ou ímpar disputado na cocheira. Mas um grupo de sujeitos ligados
ao Benitez vai dopar o matungo e, tão certo como dois e dois são quatro, ele
vai ganhar de barbada. Um azarão como esse paga um prêmio altíssimo. Quem
apostar recebe de volta o capital investido multiplicado por mil, dez mil...sei
lá...”
André entende. Mas nem por isso aceita de imediato o
convite. Começa uma negociação: “De trem eu não vou. Acho um saco. De ônibus,
então, nem pensar. Coisa de pobre. Me dá enjôo. Você bota teu carro na estrada?
E paga a gasolina?” Alfredinho topou. Não gostava nada da ideia de submeter seu
precioso automóvel a uma viagem tão longa. Mas não tinha jeito. Topou.
A jóia do Alfredinho era uma Mercury 1950, conversível.
Preta. Preta com estofamento vermelho e preto. Era a sua paixão. Comprara o
carro dois anos antes, ainda zero quilômetro, num leilão da alfândega, juntando
para isso dinheiros provenientes de uma infinidade de origens: pequenas
heranças recebidas do pai e de uma tia solteirona, venda de um sítio em Miguel
Pereira, venda de um piano, empréstimo no Banco Moreira Salles e por aí vai. Em
dois anos o carro não chegara a rodar nem 5 mil quilômetros. O que já estava
gasto era o manual do proprietário, de tanto o Alfredinho mostrar para os
amigos os predicados do automóvel. “Olha aí, dizia ele: tem power top, power windows, power front seats,
leather interior, full instrumentation, whitewall tires...” Todos ficavam
maravilhados.
André partiu, então, para a segunda etapa da negociação. “ O
Rangel pode ir?” “Pode”, concordou o Alfredinho. “ E o Zé Roberto?” “Pôxa,
André, o Zé é muito gordo...Vai
reduzir nossa velocidade...gastar muita gasolina...pode até quebrar as molas do
automóvel...” “ Sem o Zé eu não vou”, impôs o André. Ficou resolvido, assim,
que o Zé iria. “ E o Renatinho?” A sugestão despertou a ira do Alfredinho: “ Não,
não e não! Cinco no carro eu não levo! Além do mais, todo mundo sabe que o
Renatinho dá azar! O bicho tem uma tremenda urucubaca! Lembra a Copa do Mundo,
quando ele começou a gritar “ É campeão! É campeão!” Na mesma hora o Uruguai
foi lá e fez 2 x 1 ! E quando ele foi preso no Baile do Municipal ? Mil e
quinhentas mulheres livres e desimpedidas e ele canta a nora do chefe de
polícia! Não dá mesmo! O Renatinho, não!”
André cedeu. Ficou tudo combinado para a viagem, no sábado
seguinte. Sairiam do Rio bem cedo, ainda de madrugada, para chegar em São Paulo
no comecinho da tarde. No dia seguinte compareceriam ao hipódromo, para
levantar a grana que resolveria o problema do Alfredinho.
A Viagem
Sábado seguinte. São quatro da manhã e todos estão reunidos
na garagem da casa do Alfredinho, na Nascimento Silva quase esquina de Joana
Angélica. A maravilhosa Mercury sai da garagem espremida e todos embarcam com
destino à Rodovia Presidente Dutra. Tudo está às escuras. Na Avenida Rodrigues
Alves, o cais do porto ainda dorme. Só o que se vê são as luzes amareladas dos
navios. Um transeunte, retardatário ou madrugador, caminha encolhido, parecendo
assustado com a cerração que cobre aquela região mal afamada do Rio de Janeiro.
Em 20 minutos a Mercury chega à Via Dutra. Uma hora depois
os faróis do automóvel já podem ser apagados. Horto Florestal de Santa Cruz...Belvedere...Ponte
Coberta...a Mercury segue em direção ao Monumento Rodoviário. Passa o
represamento do Rio Guandu, que fornece a água consumida no Distrito Federal.
Saída para Volta Redonda, à direita. Resende. Estado de São Paulo. Lavrinhas,
Cruzeiro. A partir daí Rangel, que nasceu no interior do estado, não pára mais
de falar: “ Cachoeira Paulista tem 6.800 habitantes. Lorena foi denominada
Porto de Hepacoré, o que significa, em tupi-guarani, lugar das goiabeiras.
Virou Lorena quase no final do século XVIII, em homenagem ao Capitão General
Bernardo José de Lorena. Guaratinguetá tem 21 mil habitantes . Foi fundada em
1651...” Em Aparecida, a Mercury pára e é reabastecida.
Rangel continua o discurso. “ Taubaté tem 35 mil habitantes. Foi aldeia dos
índios Guaianazes, e se chamava Itaboaté...”
Nesse ponto, André interrompe a aula, toma coragem e confessa
que Renatinho, o maior azarado do planeta, não aceitara ficar fora da excursão.
Possivelmente até já estaria em São Paulo, tendo embarcado na “litorina” que
saíra da Central do Brasil na noite anterior. Alfredinho ficou furioso. Berrou
durante meia hora, só se acalmando quando concluiu que Renatinho jamais
chegaria a São Paulo. Certamente o trem iria enguiçar no meio do caminho.
Passava um pouco do meio dia quando a Mercury alcançou as
ruas de São Paulo. Um lanche rápido e os quatro amigos se dirigiram ao
hipódromo de Cidade Jardim. Conforme o combinado, encontraram o chileno Benitez
na cocheira de Turbinado. A aparência do cavalo era a pior possível. Parecia
impossibilitado de caminhar, quanto mais correr...
Ouviram, então, as explicações do Benitez e dos três
sujeitos mal encarados que cuidavam do cavalo. Meia hora antes do páreo o
animal receberia a injeção de um coquetel poderosíssimo de medicamentos, capaz
de transformá-lo num belzebu de patas. Tudo cientificamente planejado: dosagem,
distância do páreo, etc..
Surgiu, então, um probleminha. Os sujeitos mal encarados
exigiram dinheiro do Alfredinho, um “pedágio” pela sua participação naquela
empreitada lucrativa. Não teve jeito, o pedágio foi pago.
Feitas as contas, Alfredinho chegou à conclusão de que o
dinheiro que sobrara para apostar era muito reduzido. Turbinado pagaria um
prêmio altíssimo, mas mesmo assim era imprescindível apostar uma quantia
compatível com o retorno que precisava obter.
Disposição Sanguinária
Alfredinho já havia ido muito longe. Com lágrimas nos olhos,
dirigiu-se à boca de automóveis e vendeu a Mercury por um valor muito abaixo do
preço de mercado.
A raiva que acumulara foi despejada no Renatinho, encontrado
à noite no hotel de categoria duvidosa em que se hospedaram, na Rua Aurora. “Se
você aparecer no hipódromo, eu te mato!”, gritava. “Fervo teu pâncreas!”,
bradava, enfatizando incontida disposição sanguinária.
No dia seguinte, chegaram cedo ao Jockey Clube. Turbinado
correria no quarto páreo. Nervosismo geral. Benitez logo apareceu no setor das
populares para acalmar a turma e afiançar que nada poderia dar errado. “Já
tomou a injeção. Está cuspindo fogo pelas ventas! Dando coices nas paredes da
cocheira!...”
Alfredinho sentiu-se confiante. Fez as contas e logo se
imaginou abraçado com a Dorinha, passeando na praia de Ipanema com a Cadillac
conversível que iria comprar com as sobras do seu investimento.
Chega a hora do quarto páreo. Galope de apresentação.
Turbinado cruza como um foguete a reta do hipódromo paulistano. Seu jóquei faz
um esforço enorme para contê-lo. O bicho parece não se conformar com o
intervalo de tempo que separa canter e corrida propriamente dita. Está disposto
a correr não só o quarto como também todos os demais páreos do programa.
Turbinado em Ebulição
Chega a hora da adrenalina máxima. No alinhamento, os
cavalariços lutam para conter o ímpeto de Turbinado. Quando conseguem que o
animal fique quieto por um segundo, a largada é dada e o bicho parte como um
foguete. Assume a liderança do páreo mas não consegue ainda se destacar dos
demais competidores. O coração de Alfredinho não cabe mais dentro do peito.
André, Rangel e Zé Roberto gritam de pé sobre seus assentos. O locutor do
hipódromo narra a disputa a plenos pulmões: “ Os competidores contornam a
grande curva e entram na reta final!” Nesse momento as “vitaminas” de Turbinado
parecem entrar em ebulição. O bicho livra um, dois, três corpos de luz sobre o
segundo colocado. A distância não pára de aumentar, Turbinado corre um páreo à
parte. Está meia reta à frente do rival mais próximo. Coisa nunca vista no
mundo das corridas de cavalos. O disco de chegada se aproxima.
Nesse momento, Renatinho, que desobedecera a ordem de Alfredinho
e permanecera escondido próximo ao portão de acesso às arquibancadas,
aproxima-se eufórico dos amigos, aos gritos de “ Não perde mais! Não perde
mais!”
Foi o bastante. A dez metros da linha de chegada Turbinado
desabou, projetando longe o seu jóquei. Colapso fulminante, logo diagnosticado
pelos veterinários.
Renatinho preparou-se para morrer. Mas, surpreendentemente,
Alfredinho permaneceu calmo. Olhos fixos no horizonte, sem dizer nada. Sonado,
abobalhado. Saiu do hipódromo apoiado no ombro dos amigos, sem dizer uma palavra.
À noite,
embarcaram na rodoviária. Ônibus do Expresso Brasileiro. Silêncio absoluto.
Fazia, já, sete horas que Alfredinho não proferia uma palavra. Permanecia a
expressão distante, aparvalhada.
O ônibus cruza a Via Dutra, concluindo a dramática aventura.
De repente, ouve-se baixinho a voz do Rangel: “ Jacareí, fundada em 1652. Seu
nome significa, em tupi-guarani, Rio dos Jacarés...”
O ônibus pára mais adiante, em São José dos Campos. Lá, três
imensos patrulheiros rodoviários conseguiram, com o auxílio de uma chave de
roda, abrir a boca do Alfredinho, trincada na carótida do Rangel.
Espero que a deusa turbinada tenha se casado com um tenente, hoje brigadeiro, futura pensionista de duas pensões com taifeiros para regar suas plantinhas. Que o Alfredinho tenha conhecido uma futura jornalista ou uma estudante de Comunicação na PUC e hoje, tendo já aproveitado tudo que a vida tem de bom, seja um circunspecto senhor a filosofar sobre perdas e ganhos sempre pedindo aos netos que tenham muito juízo tal e qual vovô.
ResponderExcluirAfinal, ele teve uma baita sorte!
A bola de cristal de Elvira funciona a todo vapor! Quem sabe Dorinha decidiu enfrentar o coronel, seu pai, fugiu e casou com Alfredinho, sem comprar o tal do apartamento. Foram morar em Porciúncula. Ganharam a vida explorando uma plantação de giló orgãnico. Negócio que não se mostrou muito lucrativo. Alfredinho não conseguiu comprar a tão sonhada Cadillac. Adquiriu uma patinete, que usava para levar sua produção para Natividade, cidade vizinha onde morava boa parte de sua clientela.
ResponderExcluirCaramba, estraguei tudo! Antecipei a segunda parte da crônica...
Por favor, Sérgio, não...
ResponderExcluirDeixa eu sonhar com uma moça simples, sem grandes pretensões que como todas à época liam Sartre e Simone e desejavam apenas trabalhar fora para ajudar o marido, ter um casal de filhos, amar e ser amada. Alfredinho merece ser feliz, poxa, afinal lutou à beça por um amor. Conformou-se.
A sua bola de cristal se mostra imprevisível! Porciúncula, orgânicos? rs
Amei!