O BISCOITO
MOLHADO
Edição 5325 SX Data: 27 de agosto
de 2017
FUNDADOR: CARLOS EDUARDO
NASCIMENTO - ANO XXXIV
SHAKESPEARE NA ÓPERA
O assunto é o final de carreira do extraordinário compositor Giuseppe
Verdi.
Depois do êxito alcançado por "Rigoletto", "Il
Trovatore" e "La Traviata", consideradas as óperas de sua
maturidade, Verdi diminuiu seu ritmo de trabalho. Todos entendiam que ele não
tinha mais nada a provar.
Verdi produziu dezoito títulos nos quatorze anos que separam
"La Traviata" de sua primeira obra, "Oberto". Depois disso,
levou dois anos para terminar "I Vespri Siciliani", mais dois para
apresentar "Simon Boccanegra" e, novamente, mais dois anos para concluir
"Un Ballo in Maschera".
Depois do "Baile de Máscaras", Verdi chegou a anunciar
sua aposentadoria. Não ficara nada satisfeito com alguns dos cantores
contratados pelo empresário Jacovacci para estrear a ópera em Roma, em 1859.
Além disso, estava cada vez mais envolvido com a política, motivado pela causa da
unificação da Itália. Verdi foi eleito para o primeiro Parlamento Italiano,
tendo tomado posse em Turim no dia 18 de fevereiro de 1861.
Para voltar a compor, ficava claro que ele precisava encontrar
motivações especiais. Esse incentivo veio do soprano Giuseppina Streponi, com
quem Verdi se casara secretamente em 1859. Ela fez de tudo para tirar o
compositor de sua aparente aposentadoria musical, convencendo-o a aceitar convite
para produzir uma nova ópera para o Teatro Imperial de São Petersburgo, na
Rússia.
Assim nasceu "A Força do Destino", que estreou em 10 de
novembro de 1862. Seu libreto, produzido Francesco Maria Piave, é quase tão
confuso quanto aquele que Salvatore Camarano preparou nove anos antes para
"Il Trovatore". Verdi não se preocupou com isso. Esse enredo muito
estranho propiciou-lhe várias situações dramáticas apropriadas à expressão
musical, dele resultando uma partitura vigorosa, brilhante e melodiosa.
Sete anos mais tarde um novo convite, também muito especial,
mexeria com os brios do compositor. Ismail Pachá, quediva do Egito,
encomendou-lhe uma ópera para comemorar a abertura do Canal de Suez e inaugurar
o Teatro Italiano do Cairo.
Por motivos vários, o teatro foi inaugurado em novembro de 1869,
mas "Aída" só foi ali encenada em 24 de dezembro de 1871. Na verdade,
a partitura já estava concluída um ano antes da estreia. Os cenários e
figurinos, confeccionados por artistas franceses, ficaram retidos em Paris
quando teve início a guerra franco-prussiana. De qualquer forma, a primeira
apresentação da ópera alcançaria sucesso estrondoso. Sucesso que se repetiria
no Scala de Milão em 8 de fevereiro de 1872, quando Verdi foi chamado à cena 32
vezes por um público em delírio.
Chegamos, então, à penúltima ópera composta por Giuseppe Verdi.
"Otello" é, por muitos, considerada a ópera perfeita. Musicólogos,
críticos e historiadores costumam situar essa obra no mesmo plano de "Don Giovanni"
e "Tristão e Isolda", qualificando-as como as três mais importantes
obras do gênero jamais produzidas.
A consagradora estreia de "Otello" aconteceu no Teatro
Scala de Milão no dia 5 de fevereiro de 1887. Verdi estava próximo de completar
74 anos de idade. Dezesseis anos haviam transcorrido desde a estreia de "Aída",
em 1871. A aparente aposentadoria do compositor perdurava desde 1874, quando o
mestre apresentou na Igreja de San Marco, em Milão, o Requiem em homenagem a
seu amigo Alessandro Manzoni.
Não é fácil enumerar os motivos que conduziram Verdi a produzir
"Otello", depois de um retiro confortavelmente desfrutado na sua
propriedade rural de Sant´Agata. O incentivo e a astúcia do editor Giulio Ricordi
são frequentemente apontados como muito importantes. Acrescente-se a oportunidade
de uma parceria com Arrigo Boito, excepcional libretista, poeta e também
compositor. É certo, também, que Verdi viu-se atraído pela ideia de transpor
para a música um texto de Shakespeare, alvo de sua grande admiração.
Vinte anos antes, em 1847, o compositor apresentara
"Macbeth", com enredo extraído da obra do notável dramaturgo inglês.
Essa ópera foi, sempre, uma das favoritas do compositor. Dedicou muito tempo
nela procedendo a diversas revisões, e seu relativo insucesso causou-lhe
irritação até o final da vida. Após a estreia parisiense de uma versão revisada
do "Macbeth", Verdi foi acusado, entre outras coisas, de não conhecer
Shakespeare. Enfurecido, escreveu: "Posso não ter transmitido muito bem o
espírito de ‘Macbeth’, mas que eu não conheça, que não compreenda Shakespeare,
meu Deus! Não e não! Ele é um dos meus poetas preferidos, desde a infância.
Tenho seus livros nas mãos e os leio e releio constantemente.”
"Otello" serviu para apagar as más lembranças de
"Macbeth". Sua estreia foi uma consagração para Giuseppe Verdi. A
encenação foi freneticamente aplaudida ao final do primeiro ato. A cada
intervalo o compositor era obrigado a se levantar e saudar a plateia. No final
do espetáculo, uma ovação. O público acenava lenços e chapéus, aos gritos de
"Viva Verdi!" Uma multidão acompanhou o compositor até seu hotel.
Tudo deu certo na concepção de "Otello". O trabalho do
libretista Arrigo Boito foi extraordinário, ao condensar os 3.500 versos da
obra de Shakespeare nos 800 que constam da ópera de Verdi. O compositor, por
sua vez, foi muito bem sucedido na concepção de uma ópera arrojada, compacta,
inovadora, ignorando as convenções que marcaram a cena lírica italiana do
século XIX. Com isso, alcançou o inimaginável objetivo de, através da música,
tornar ainda mais intensa a força dramática do texto Shakespeareano.
A consagração de "Otello" parecia encerrar com chave de
ouro a carreira de Verdi. Aos 74 anos de idade, não tinha mais nada a provar. O
que mais lhe poderia ser cobrado?
Arrigo Boito, o genial libretista de "Otello", foi
competente, também, para propor ao compositor um novo desafio irrecusável.
Disse-lhe: "Só existe um meio de você encerrar sua carreira de maneira
ainda mais gloriosa do que com "Otello". Com uma comédia! Com
"Falstaff"! Algo novo e desafiante, que vai deixar atônito o público
acostumado aos dramas que você produziu ao longo de cinquenta anos!"
Boito tocara o ponto fraco do compositor. Verdi havia produzido uma
única comédia, "Un Giorno di Regno", sem sucesso, em 1840. A produção
dessa obra coincidiu com um período terrível da vida do compositor. Ele ficou
seriamente doente, perdeu seus dois filhos e, dois meses antes da estreia,
também morreu Margherita Barezzi, sua primeira mulher. A montagem da ópera
revelou-se inadequada e sua acolhida junto ao público foi desastrosa. Para
desespero do jovem autor, a encenação foi retirada de cartaz. Verdi nunca perdoou
o público milanês pelo que considerou um ato de crueldade, uma reação
intempestiva destituída de seriedade.
Se a composição de "Otello" foi cercada de mistério,
muito mais secreto foi o processo de criação do "Falstaff". O libreto
que Boito lhe propôs, baseado no texto de Shakespeare "As Alegres Comadres
de Windsor", há muito atraía o compositor. Mas a resposta de Verdi tardou
um pouco. No verão de 1889, ele cedeu à insistência de Boito: "Que assim
seja. Vamos fazer esse "Falstaff".
Mas ninguém foi avisado desse projeto. Até o fim, Verdi sustentava
que compunha uma nova ópera apenas para seu próprio prazer, sem intenção de
apresentá-la ao público. De sua disposição de enfrentar essa nova empreitada, o
mundo só tomou conhecimento em novembro de 1890. Num jantar na casa do editor
Giulio Ricordi, que reunia Verdi, Boito e alguns amigos próximos. A horas
tantas, Boito propôs um brinde ao personagem de enorme pança. Todos se
entreolharam. Todos eram magros. Ricordi matou a charada, com um grito: "É
Falstaff !"
Muito provavelmente o compositor deve ter finalizado sua derradeira
criação num clima de tristeza. Sabia que ali encerrava sua carreira. Não
comporia mais nenhuma ópera. Somente suas "Quattro Pezzi Sacri" ainda
dariam um testemunho final de sua extraordinária energia criadora.
Tolstoi, Saramago, Beethoven, Chopin, Camile Claudel, Frida Kahlo, Verdi, tantos e tantos.
ResponderExcluirGênios não deveriam ter seus corações dilacerados pelas reles questões da vida mas este não é um planeta fácil.
Não podendo citar todos, não deveria ter esquecido de quem para mim foi o ícone do sofrimento, ou melhor, da grande angustia existencialista, Van Gogh.
ResponderExcluirVerdi, não há dúvida, sofreu alguns percalços. Dois deles mencionei
ResponderExcluirnesse texto. Conceber uma ópera cômica ao tempo em que perde seus dois filhos e, em seguida, a es´posa, por quem era apaixonado, difícil imaginar algo mais angustiante. O fracasso do "Macbeth", para alguém que venerava Shakespeare, certamente foi difícil de engulir. Mas ouso dizer que, no geral, ele foi um homem muito feliz. Coberto de reconhecimento e sucesso, até o final da vida. Ficou riquíssimo, viveu muito bem, cercado de uma família bem constituída e um punhado de amigos muito especiais.
Na minha relação de gênios da música que passaram por maus pedaços destaco Beethoven e Schubert. O primeiro, com temperamento e hábitos super complicados. O segundo, distraído, tímido, sem um mínimo compromisso com seu talento extraordinário.
Sobre Mozart, há controvérsias. Vale uma pesquisa mais acurada...
Sérgio,
ResponderExcluirConsiderei os falecimentos, a obrigação de construir uma ópera cômica e a intenção anterior de aposentar-se que para mim sinalizaram sofrimento intenso. Amo biografias. A sua retificação foi muito importante para mim agora que já não tenho o mesmo vigor para circular pelas livrarias. Mostram que o trabalho árduo e o amor por ele podem modificar a vida.
Obrigada pela atenção.
Retificando...
ResponderExcluirMostra que