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domingo, 27 de agosto de 2017

3065 - SX Verdi



O  BISCOITO  MOLHADO
Edição 5325 SX                           Data: 27 de agosto de 2017

FUNDADOR: CARLOS EDUARDO NASCIMENTO - ANO XXXIV

                           
SHAKESPEARE NA ÓPERA


O assunto é o final de carreira do extraordinário compositor Giuseppe Verdi.

Depois do êxito alcançado por "Rigoletto", "Il Trovatore" e "La Traviata", consideradas as óperas de sua maturidade, Verdi diminuiu seu ritmo de trabalho. Todos entendiam que ele não tinha mais nada a provar.

Verdi produziu dezoito títulos nos quatorze anos que separam "La Traviata" de sua primeira obra, "Oberto". Depois disso, levou dois anos para terminar "I Vespri Siciliani", mais dois para apresentar "Simon Boccanegra" e, novamente, mais dois anos para concluir "Un Ballo in Maschera".

Depois do "Baile de Máscaras", Verdi chegou a anunciar sua aposentadoria. Não ficara nada satisfeito com alguns dos cantores contratados pelo empresário Jacovacci para estrear a ópera em Roma, em 1859. Além disso, estava cada vez mais envolvido com a política, motivado pela causa da unificação da Itália. Verdi foi eleito para o primeiro Parlamento Italiano, tendo tomado posse em Turim no dia 18 de fevereiro de 1861.

Para voltar a compor, ficava claro que ele precisava encontrar motivações especiais. Esse incentivo veio do soprano Giuseppina Streponi, com quem Verdi se casara secretamente em 1859. Ela fez de tudo para tirar o compositor de sua aparente aposentadoria musical, convencendo-o a aceitar convite para produzir uma nova ópera para o Teatro Imperial de São Petersburgo, na Rússia.

Assim nasceu "A Força do Destino", que estreou em 10 de novembro de 1862. Seu libreto, produzido Francesco Maria Piave, é quase tão confuso quanto aquele que Salvatore Camarano preparou nove anos antes para "Il Trovatore". Verdi não se preocupou com isso. Esse enredo muito estranho propiciou-lhe várias situações dramáticas apropriadas à expressão musical, dele resultando uma partitura vigorosa, brilhante e melodiosa.

Sete anos mais tarde um novo convite, também muito especial, mexeria com os brios do compositor. Ismail Pachá, quediva do Egito, encomendou-lhe uma ópera para comemorar a abertura do Canal de Suez e inaugurar o Teatro Italiano do Cairo.

Por motivos vários, o teatro foi inaugurado em novembro de 1869, mas "Aída" só foi ali encenada em 24 de dezembro de 1871. Na verdade, a partitura já estava concluída um ano antes da estreia. Os cenários e figurinos, confeccionados por artistas franceses, ficaram retidos em Paris quando teve início a guerra franco-prussiana. De qualquer forma, a primeira apresentação da ópera alcançaria sucesso estrondoso. Sucesso que se repetiria no Scala de Milão em 8 de fevereiro de 1872, quando Verdi foi chamado à cena 32 vezes por um público em delírio.

Chegamos, então, à penúltima ópera composta por Giuseppe Verdi. "Otello" é, por muitos, considerada a ópera perfeita. Musicólogos, críticos e historiadores costumam situar essa obra no mesmo plano de "Don Giovanni" e "Tristão e Isolda", qualificando-as como as três mais importantes obras do gênero jamais produzidas.

A consagradora estreia de "Otello" aconteceu no Teatro Scala de Milão no dia 5 de fevereiro de 1887. Verdi estava próximo de completar 74 anos de idade. Dezesseis anos haviam transcorrido desde a estreia de "Aída", em 1871. A aparente aposentadoria do compositor perdurava desde 1874, quando o mestre apresentou na Igreja de San Marco, em Milão, o Requiem em homenagem a seu amigo Alessandro Manzoni.

Não é fácil enumerar os motivos que conduziram Verdi a produzir "Otello", depois de um retiro confortavelmente desfrutado na sua propriedade rural de Sant´Agata. O incentivo e a astúcia do editor Giulio Ricordi são frequentemente apontados como muito importantes. Acrescente-se a oportunidade de uma parceria com Arrigo Boito, excepcional libretista, poeta e também compositor. É certo, também, que Verdi viu-se atraído pela ideia de transpor para a música um texto de Shakespeare, alvo de sua grande admiração.

Vinte anos antes, em 1847, o compositor apresentara "Macbeth", com enredo extraído da obra do notável dramaturgo inglês. Essa ópera foi, sempre, uma das favoritas do compositor. Dedicou muito tempo nela procedendo a diversas revisões, e seu relativo insucesso causou-lhe irritação até o final da vida. Após a estreia parisiense de uma versão revisada do "Macbeth", Verdi foi acusado, entre outras coisas, de não conhecer Shakespeare. Enfurecido, escreveu: "Posso não ter transmitido muito bem o espírito de ‘Macbeth’, mas que eu não conheça, que não compreenda Shakespeare, meu Deus! Não e não! Ele é um dos meus poetas preferidos, desde a infância. Tenho seus livros nas mãos e os leio e releio constantemente.”

"Otello" serviu para apagar as más lembranças de "Macbeth". Sua estreia foi uma consagração para Giuseppe Verdi. A encenação foi freneticamente aplaudida ao final do primeiro ato. A cada intervalo o compositor era obrigado a se levantar e saudar a plateia. No final do espetáculo, uma ovação. O público acenava lenços e chapéus, aos gritos de "Viva Verdi!" Uma multidão acompanhou o compositor até seu hotel.

Tudo deu certo na concepção de "Otello". O trabalho do libretista Arrigo Boito foi extraordinário, ao condensar os 3.500 versos da obra de Shakespeare nos 800 que constam da ópera de Verdi. O compositor, por sua vez, foi muito bem sucedido na concepção de uma ópera arrojada, compacta, inovadora, ignorando as convenções que marcaram a cena lírica italiana do século XIX. Com isso, alcançou o inimaginável objetivo de, através da música, tornar ainda mais intensa a força dramática do texto Shakespeareano.

A consagração de "Otello" parecia encerrar com chave de ouro a carreira de Verdi. Aos 74 anos de idade, não tinha mais nada a provar. O que mais lhe poderia ser cobrado?
Arrigo Boito, o genial libretista de "Otello", foi competente, também, para propor ao compositor um novo desafio irrecusável. Disse-lhe: "Só existe um meio de você encerrar sua carreira de maneira ainda mais gloriosa do que com "Otello". Com uma comédia! Com "Falstaff"! Algo novo e desafiante, que vai deixar atônito o público acostumado aos dramas que você produziu ao longo de cinquenta anos!"

Boito tocara o ponto fraco do compositor. Verdi havia produzido uma única comédia, "Un Giorno di Regno", sem sucesso, em 1840. A produção dessa obra coincidiu com um período terrível da vida do compositor. Ele ficou seriamente doente, perdeu seus dois filhos e, dois meses antes da estreia, também morreu Margherita Barezzi, sua primeira mulher. A montagem da ópera revelou-se inadequada e sua acolhida junto ao público foi desastrosa. Para desespero do jovem autor, a encenação foi retirada de cartaz. Verdi nunca perdoou o público milanês pelo que considerou um ato de crueldade, uma reação intempestiva destituída de seriedade.

Se a composição de "Otello" foi cercada de mistério, muito mais secreto foi o processo de criação do "Falstaff". O libreto que Boito lhe propôs, baseado no texto de Shakespeare "As Alegres Comadres de Windsor", há muito atraía o compositor. Mas a resposta de Verdi tardou um pouco. No verão de 1889, ele cedeu à insistência de Boito: "Que assim seja. Vamos fazer esse "Falstaff".

Mas ninguém foi avisado desse projeto. Até o fim, Verdi sustentava que compunha uma nova ópera apenas para seu próprio prazer, sem intenção de apresentá-la ao público. De sua disposição de enfrentar essa nova empreitada, o mundo só tomou conhecimento em novembro de 1890. Num jantar na casa do editor Giulio Ricordi, que reunia Verdi, Boito e alguns amigos próximos. A horas tantas, Boito propôs um brinde ao personagem de enorme pança. Todos se entreolharam. Todos eram magros. Ricordi matou a charada, com um grito: "É Falstaff !"


Muito provavelmente o compositor deve ter finalizado sua derradeira criação num clima de tristeza. Sabia que ali encerrava sua carreira. Não comporia mais nenhuma ópera. Somente suas "Quattro Pezzi Sacri" ainda dariam um testemunho final de sua extraordinária energia criadora.

5 comentários:

  1. Tolstoi, Saramago, Beethoven, Chopin, Camile Claudel, Frida Kahlo, Verdi, tantos e tantos.
    Gênios não deveriam ter seus corações dilacerados pelas reles questões da vida mas este não é um planeta fácil.

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  2. Não podendo citar todos, não deveria ter esquecido de quem para mim foi o ícone do sofrimento, ou melhor, da grande angustia existencialista, Van Gogh.

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  3. Verdi, não há dúvida, sofreu alguns percalços. Dois deles mencionei
    nesse texto. Conceber uma ópera cômica ao tempo em que perde seus dois filhos e, em seguida, a es´posa, por quem era apaixonado, difícil imaginar algo mais angustiante. O fracasso do "Macbeth", para alguém que venerava Shakespeare, certamente foi difícil de engulir. Mas ouso dizer que, no geral, ele foi um homem muito feliz. Coberto de reconhecimento e sucesso, até o final da vida. Ficou riquíssimo, viveu muito bem, cercado de uma família bem constituída e um punhado de amigos muito especiais.
    Na minha relação de gênios da música que passaram por maus pedaços destaco Beethoven e Schubert. O primeiro, com temperamento e hábitos super complicados. O segundo, distraído, tímido, sem um mínimo compromisso com seu talento extraordinário.
    Sobre Mozart, há controvérsias. Vale uma pesquisa mais acurada...

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  4. Sérgio,
    Considerei os falecimentos, a obrigação de construir uma ópera cômica e a intenção anterior de aposentar-se que para mim sinalizaram sofrimento intenso. Amo biografias. A sua retificação foi muito importante para mim agora que já não tenho o mesmo vigor para circular pelas livrarias. Mostram que o trabalho árduo e o amor por ele podem modificar a vida.
    Obrigada pela atenção.

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