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segunda-feira, 7 de agosto de 2017

3060 - SX fogo de palha


           
O  BISCOITO  MOLHADO
Edição 5320 SX                           Data: 07 de agosto de 2017

FUNDADOR: CARLOS EDUARDO NASCIMENTO - ANO: XXXIV


SUCESSO NEVER MORE


O encontro se repete todo final de tarde. Mario Henrique Simonsen, Paulo Fortes e Carlos Eduardo Nascimento, o “Biscoito”, criador e redator-chefe do Biscoito Molhado, se reúnem para conversar sobre seu assunto favorito, o mundo da ópera. O local, o de sempre. Um barzinho honesto, como de resto acontece com tudo que existe no céu, situado na Avenida da Paz Celestial, quase esquina com Rua dos Arcanjos.

“Biscoito” dá início aos debates com um tema, para ele, absolutamente recorrente. Como explicar que Pietro Mascagni, o autor da “Cavalleria Rusticana”, e Ruggero Leoncavallo, compositor de “I Pagliacci”, tenham alcançado sucesso exclusivamente com essas óperas, passando a vida inteira sem conseguir reeditar esse êxito em tudo o mais que produziram?

Paulo Fortes considerou pertinente a indagação do amigo Carlos, mas ponderou que aquela circunstância, do sucesso jamais repetido, certamente não era uma prerrogativa do mundo da ópera. Comentou que, puxando pela memória, certamente apontaria outros exemplos, relacionados com diversos campos de atividade. Para incrementar a discussão, lembrou o caso do sujeito que, com uma flecha, trespassou a maçã colocada sobre a cabeça do filho muito corajoso. Em tom dramático, próprio dos artistas líricos, indagou: “Quantas vezes mais terá ele repetido essa façanha?” Com a frieza própria dos expoentes da matemática, Simonsen acrescenta: “E se repetiu a experiência, não terá exterminado metade das crianças da vizinhança?”

Paulo e “Biscoito” aceitam a ponderação. Simonsen passa, então, a comentar o sucesso imenso alcançado pela “Cavalleria Rusticana”. Não sem antes salientar que essa ópera não se situa entre suas favoritas. Está, a seu ver, longe de alcançar a dimensão de um melodrama wagneriano, do “Otello” de Verdi ou do “Don Giovanni”, de Mozart. Feita a ressalva, o Professor, dotado de monumental conhecimento sobre o mundo da ópera, dá início à sua digressão. Lembra que em 1886 Mascagni, com 26 anos de idade, não passava de um obscuro músico de uma pequena cidade no interior da Itália. Ostentava um curriculum inconsistente e irregular. Havia produzido uma “Messa di Gloria” e várias peças litúrgicas, sem qualquer repercussão. Estava trabalhando numa ópera intitulada “Guglielmo Ratcliff”, baseada numa peça de Heinrich Heine. Foi quando tomou conhecimento de um concurso promovido pelo famoso editor Edoardo Sonzogno, voltado para a premiação de uma ópera composta em um único ato.

Mascagni decidiu musicar um romance de Giovanni Verga, do qual já fora extraída uma tragédia de sucesso, estrelada pela grande atriz Eleonora Duse. A ópera de Mascagni venceu o concurso de Sonzogno praticamente por aclamação popular. Sua estreia, no Teatro Constanzi, de Roma, em 17 de maio de 1890, significou a consagração instantânea de Pietro Mascagni. Nos anos subsequentes, “Cavalleria Rusticana” ganhou os palcos de todo o mundo. Em determinado momento, chegou a ser apresentada, simultaneamente, em sessenta teatros de ópera.

Carlos Eduardo, o “Biscoito”, ousa fazer alguns acréscimos aos comentários do Professor Simonsen. Lembra que o texto de Verga havia sido publicado pela primeira vez num jornal de pouca expressão, em 1880. Sua adaptação para o teatro aconteceu em 1883. Pietro Mascagni assistiu à encenação quando de sua apresentação em Milão. Para participar do concurso de Sonzogno, o compositor abandonou seus projetos que estavam em andamento. A partitura da “Cavalleria” ficou pronta em 1889. Mas aí aconteceu o inesperado. Considerando que sua música não estava à altura do concurso, Mascagni decidiu não apresentá-la. Quem o fez foi sua mulher, Lina Carbognani. Mesmo chegando às mãos dos juízes com três dias de atraso, ela foi escolhida por unanimidade.

Decidido a não ficar calado, Paulo Fortes menciona outros trabalhos de Pietro Mascagni. Especialmente duas óperas que havia cantado, “Iris” e “L´Amico Fritz”. As duas estiveram longe de alcançar o sucesso da “Cavalleria”. Mas são dois trabalhos repletos de melodias maravilhosas. “L´Amico Fritz” foi produzida em 1891. Um trabalho lírico, sentimental, em que, segundo o barítono, nada de muito dramático acontece. O compositor parecia querer responder à insinuação de que o sucesso da “Cavalleria” se devera exclusivamente à qualidade do libreto e ao potencial da ação dramática contida no texto de Giovanni Verga.

A ópera não fez sucesso. Sucesso que Mascagni permaneceu buscando, em vão, durante os cinquenta anos seguintes. Sobre essa frustração, Paulo lembra uma lamentação do compositor: “ Foi uma pena. Escrevi a “Cavalleria” primeiro. Fui coroado antes de ser rei...”

Nesse ponto da conversa os três amigos concluem que o tema “Cavalleria “Rusticana” está devidamente analisado. “Biscoito” é desafiado a abrir os trabalhos referentes a “I Pagliacci”, a ópera famosa de Ruggero Leoncavallo. Aceita a incumbência, o criador do Biscoito Molhado lembra que o início da carreira do compositor não havia sido nada promissor. Sua primeira ópera, “ Tommaso Chatterton “, deixou de ser encenada porque, às vésperas de sua apresentação, o empresário fugiu com o dinheiro.

Outra tentativa aconteceu com a ópera “I Medici”, primeira de uma trilogia épica nacional, concebida à maneira de Wagner. O tema era o renascimento italiano e ela seria completada com mais duas obras. O editor Ricordi chegou a financiar aquele primeiro trabalho mas ele foi por muitas vezes adiado.

Lembrou Carlos Eduardo que Leoncavallo decidiu lutar pela sobrevivência primeiramente no Cairo e, posteriormente, em Paris. Foi na cidade-luz que sua vida começou a mudar. Ali ele fez amizade com o célebre barítono Victor Maurel. Este o convenceu a tentar seguir os passos de Pietro Mascagni, que fazia muito sucesso com a “Cavalleria Rusticana”.

O compositor decidiu apostar todas suas fichas nesse projeto. Ele viajou para Chiasso, um lugarejo que fica no cantão italiano da Suiça. Durante cinco meses de trabalho ininterrupto produziu o libreto e a música de “I Pagliacci”, seguindo muito de perto os métodos de Mascagni.

No concurso de Sonzogno, no entanto, Leoncavallo não obteve o mesmo sucesso. Ele encontrou dificuldades para adaptar sua ópera às normas do certame. “I Pagliacci” tinha originalmente dois atos.

Simonsen, até então quieto, comentou que o destino havia reservado uma série de coincidências para os dois compositores. Ambos participaram do importante concurso promovido pelo editor milanês Sonzogno. O fato de suas obras serem de curta duração resultou em outra incrível coincidência: as duas óperas costumam ser apresentadas em programa duplo. Tornaram-se, de certa forma, gêmeas nas temporadas líricas dos teatros de todo o mundo. E, finalmente, uma terceira coincidência, desta feita cruel. Tanto “Cavalleria” quanto “Pagliacci” foram obras produzidas no início das carreiras dos dois compositores. E o imenso sucesso que fizeram jamais seria repetido. Tanto Mascagni quanto Leoncavallo passaram o resto de suas vidas na tentativa de reeditar aquele êxito. Em vão.

Para evitar o que definia como “entrar mudo e sair calado”, expressão que usava para ridicularizar papéis insignificantes no mundo da ópera, Paulo Fortes decidiu arrematar a conversa lembrando que Leoncavallo tinha sido um grande amigo do extraordinário tenor Enrico Caruso. E que a gravação que este fizera da ária “Vesti la Giubba”, de “I Pagliacci”, foi a primeira a vender mais de um milhão de cópias. Um feito histórico. Acrescentou que a ópera de Leoncavallo foi a primeira a ser gravada em sua versão completa. E a primeira a ser filmada, também completa. Finalizou sua intervenção observando que o título original da ópera era “Pagliaccio”, e não “I Pagliacci”. A pedido do barítono Victor Maurel Leoncavallo adotou o título no plural. Maurel queria valorizar o papel de Tonio, a ele destinado. No singular, “Pagliaccio” enfatizava apenas a parte de Canio, o tenor.


Simonsen não se sentiu intimidado diante dos conhecimentos revelados pelo barítono. Pelo contrário, desafiou Paulo Fortes a apresentar alguma revelação bombástica em relação ao “Don Giovanni”, de Mozart. No próximo encontro do “trio”, deixaria clara sua proficiência insuperável em tudo que diz respeito à genial criação de Wolfgang Amadeus Mozart.

7 comentários:

  1. Creio que o supremo dom de Deus concedido ao homem é viver exclusivamente de sua arte e por amor à arte. Não chega a ser "ganhar a vida com o suor do rosto" pois a paixão e o prazer estão intimamente interligados ao trabalho. Quando, em que momento, Da Vinci, Monet ou Van Gogh consideraram seu quadro finalizado?
    Aquela cor de ouro brilhando como em Escola de Samba sempre me levou a uma pergunta, o porquê da presença de Carla Camurati no Theatro Municipal?
    Depois da sua crônica lembrei de fazer a pergunta na NET. Li a resposta em:
    http://www.operasempre.com.br/2012/11/o-desmonte-do-theatro-municipal-do-rio.html
    Isto, aqui, é Literatura, uma leitura que leva à outra, que levará à outra e assim por diante sempre aumentando o prazer pelo conhecimento.
    Estarei aqui, "rente que nem pão quente", no próximo encontro.
    O Theatro Municipal como tb toda a cultura carioca estão agonizando.
    Espero que o "trio" não esteja assistindo. Melhor não ter janela no barzinho da Av. da Paz Celestial, quase esquina com Rua dos Arcanjos.

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  2. Não gostar de ópera, teatro e ballet são predicados comuns a quem se propõe a administrar instituições culturais que funcionam ( ou deixaram de funcionar? ) no Rio de Janeiro . Paulo Fortes foi poupado de presenciar a tragédia que se abateu sobre o seu queridíssimo Teatro Municipal, onde atuou durante 51 anos. Pela primeira vez em 76 anos não temos uma temporada da Orquestra Sinfônica Brasileira. Seus músicos não recebem salários desde novembro de 2016. Do último a abandonar essas naus que não param de fazer água, administradas nos últimos anos como balcões de negócios, solicita-se apagar a luz.

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    1. Triste demais. Parece coisa articulada para destruir o RJ.
      Já me disseram que carioca tem mania de uma Teoria da Conspiração. Será?

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  3. Sergio,
    Sou uma carioca criada na Praça XV, apaixonada desde a mais tenra infância pela sua cidade, sua cultura, sua gastronomia, seus prédios históricos, museus, igrejas, praias, praças e ruas.
    Sou uma carioca atuante, ligo para jornais, canais de televisão, faço reclamações, sugestões tentando amenizar uma dor que amigos já me disseram exagerada. (?)
    Como perder a antiga Catedral, seus maravilhosos lustres, sua iluminação que encantava minhas missas de domingo.
    Como perder a minha Praça, a quem chamava quintal da minha casa?
    Praça que se manteve a praça da minha infância e que um déspota teve a coragem de descaracterizar?
    E a Praça Mauá? Boulevard? Deserto. E a minha Santa Teresa? Deserta. E a minha escola na Lapa? Lindo prédio com capela interna, pátios, biblioteca, belos pianos antigos, lindas imagens pelos corredores maravilhosos e até um pequeno palco com uma gruta. E o Mercado Municipal com a exuberância de suas lojas, onde frutas, verduras, flores e aves enchiam meus admirados olhos como telas de Van Gogh.
    Em um recente jornal de domingo um carioca é chamado de grajauense.
    Nossa identidade está sendo roubada. Nossos sambas proibidos de tocar em nosso carnaval.
    Racismo, separatismo, desagregação excluindo um povo que a todos recebe de braços abertos como o faz o seu próprio Redentor.
    Perdão pelas lágrimas.

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  4. Bom dia,
    Feliz Dia dos Pais aos talentosos redatores e visitantes.

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    1. Obrigado, em nome dos demais pais aqui redatores. Por oportuno, esclareço que já tivemos colaborações femininas e masculinas ainda desprovidas de paternidade. Em outras palavras, qualquer um pode ser um biscoito molhado, está provado e reprovado.

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