O BISCOITO MOLHADO
Edição 5310 SX
Data: 09 de julho de 2017
FUNDADOR: CARLOS EDUARDO
NASCIMENTO - ANOXXXIV XXXIV
A BUICK DO
“SEU” WALTER
Fui morar no Leblon em 1954. Paulo Fortes estava
cantando na Itália quando recebeu uma carta do irmão indagando sobre a duração
da temporada lírica do Teatro Comunale de Florença. Meu tio justificava sua
preocupação: “os velhos estão com muitas saudades...” Foi o que bastou para que
meu pai jogasse tudo para o alto e embarcasse no “Conte Grande” de volta ao
Brasil. Meu avô viria a falecer em outubro daquele ano.
Para ficar perto do pai, Paulo Fortes trocou a Joana
Angélica, em Ipanema, pela Aristides Espínola, no Leblon. O prédio era (e ainda
é) o Dom Marco, lançado pela Construtora Canadá. Meu tio Sergio, um dos sócios
da empresa, encheu a zona sul de “Doms”: Dom Heitor, Dom Romeu, Dom Navarro,
Dom Rolando...
O cronista Rogério Barbosa Lima define com brilho o que era
o Leblon dos anos 50. Seu livro “O Antigo Leblon- Uma Aldeia Encantada” é um
documento precioso. Fala dos atrativos de um lugar insuperável. Que, à época,
não abrigava políticos safados.
A Aristides Espínola era uma rua repleta de casas. Muitas
delas podiam ser avistadas da janela da sala de visitas do meu apartamento. Uma
delas, por motivos especiais que vou relatar, chamava especialmente minha
atenção.
Um espetáculo imperdível. Todo santo dia, por volta das 8 e
meia, eu interrompia os afazeres que antecediam a chegada do ônibus escolar do
Santo Inácio e me plantava na janela da sala para assistir a saída do carro do
“Seu” Walter.
O ritual não se alterava. Com pontualidade britânica, no
caso germânica, aquele senhor alto, cabeleira loura tendendo para o branco,
abria as duas lâminas do portão da garagem de uma das mais bonitas casas do
Leblon. Junto dele permanecia o Valdir, uma espécie de empregado pau pra toda
obra, que eu e os garotos da rua invejávamos com todas as nossas forças, por ter
acesso, com exclusividade, aos segredos daquela mansão inexpugnável que atiçava
a curiosidade da garotada da Rua Aristides Espínola.
“Seu” Walter fazia questão de cumprir sem ajuda todas as
etapas da abertura do portão. Dentre elas, um item me parecia de altíssima
precisão. Tratava-se de fixar na calçada dois ganchos que asseguravam a
manutenção do portão sempre aberto, independentemente de ventania, chuva,
nevasca ou qualquer outra intempérie. Valdir a tudo assistia, atento, mas sem
interferir. Ritual cumprido, ficava eu na expectativa da eletrizante
performance.
Não durava mais do que dois minutos. “Seu” Walter
desaparecia em direção à garagem. Apurando os ouvidos, era possível perceber o
momento em que o motor da Buick era ligado. Depois, a satisfação de assistir à
saída daquele carro maravilhoso rumo ao desconhecido, já que eu e meus amigos,
e possivelmente até mesmo o Valdir, jamais tivemos qualquer informação precisa
acerca da ocupação do “Seu” Walter.
Lembro-me bem de ter perturbado o Valdir para que indagasse
ao patrão a marca e o ano do automóvel. Ele considerava esse encargo um
desrespeito, mas um dia encheu-se de coragem e perguntou. Levei algum tempo para
decifrar a resposta, que desde então permanece em minha memória: Buick
Roadmaster 1950.
Da mesma maneira que um amigo decorou uma infinidade de
páginas de “A Ilha do Tesouro”, de Robert Louis Stevenson, ou que outro querido
companheiro, cinéfilo inveterado, conseguia reproduzir intermináveis diálogos
de “Casablanca”, pelo menos até chegar a cena em que Humphrey Bogart se recusa
a acompanhar Ingrid Bergman (nesse momento, tomado de revolta, ele sempre
abandonava a sala de projeção), tenho viva até hoje a imagem da Buick saindo da
garagem do “Seu” Walter.
A primeira atração eram dois alqueires de pára-choques e
grades cromadas que envolviam completamente a frente do automóvel. Com sol de
frente, a sensação era a de estar diante de uma aurora boreal. Depois vinha o
capítulo das bandas brancas. Larguíssimas, imaculadas. A suspensão do automóvel
era de chorar. A descida das pequenas rampas, da garagem e do meio-fio, era
cumprida no melhor estilo dos desenhos animados da época. O carro parecia
caminhar, colocando uma roda de cada vez na calçada, depois na rua, com uma delicadeza
de movimentos digna de uma bailarina.
A cor do automóvel? Um maravilhoso azul marinho que
contrastava lindamente com as tais bandas brancas que me enfeitiçavam. E, para
finalizar, mais uma comitiva de cromados na traseira da Buick.
A esse espetáculo assisti centenas de vezes, durante cinco
ou seis anos. Ao longo desse tempo poucas informações obtivemos sobre “Seu”
Walter. Definitivamente, não era um sujeito simpático. O atestado de maldade
que eu e meus amigos lhe conferíamos residia no fato de não devolver as bolas
de futebol que caíam no seu bem cuidado jardim. Mas esse problema tinha
solução. Fazendo muito mistério, parecendo que poderia ser a qualquer momento
apunhalado pelas costas, Valdir nos devolvia a bola quando o dia escurecia.
Estavam os dois devidamente rotulados: “Seu” Walter, o mau; Valdir, o bom. Como
se o apavoradíssimo empregado não dependesse da permissão do patrão para
devolver o brinquedo...
Com o passar do tempo, fomos percebendo que, para obter
maiores informações sobre nosso misterioso vizinho, não podíamos contar com a
ajuda do Valdir. Crescendo em discernimento, eu e minha turma constatamos que
ele reunia todos os requisitos do mau informante. Não era particularmente
inteligente, tinha um temor insuperável do cidadão a ser espionado e, mal
maior, possuía uma imaginação sem limites. Para não deixar sem respostas seus
pequenos vizinhos, começou a inventar histórias cada vez mais tresloucadas
sobre seu patrão.
De Comandante do Bismarck a piloto de Stuka, de General na
frente russa a auxiliar direto de Rommel, “Seu”Walter, na incrível imaginação
do Valdir, teria tido uma participação efervescente na Segunda Guerra Mundial.
Lembro bem da minha primeira desconfiança séria em relação às suas histórias.
Foi quando ele nos repassou a informação, ultra-secreta, é claro, de que um
dirigível nos moldes do Graff Zeppelin, permanecia escondido nos fundos da casa
do “Seu” Walter. “Esvaziado, é claro...”
Um belo dia a Buick fez forfait. E também no dia seguinte.
“O velho está doente”, informou o Valdir. “Está chegando uma enfermeira”,
acrescentou. E chegou mesmo. Durante algum tempo quem saía pela
porta da garagem era a enfermeira, e não o automóvel. “Péssima troca”, avaliei
eu.
Dois anos depois, “Seu” Walter morreu. Por circunstâncias
que o Valdir não soube explicar, a enfermeira permaneceu na casa, e o mundo
voltou ao seu ritmo normal.
Saí do apartamento do Leblon, fiz um estágio em Copacabana e
retornei já no final dos anos sessenta. Um dia, estava próximo à janela da sala
quando assisti à chegada de um reboque. Meus pressentimentos começaram a se
materializar. Após complicada manobra, ele encostou a traseira na garagem do
“Seu” Walter. Tudo o que eu tinha a fazer a partir daquele momento decidi
adiar. Poderia ter ido assistir à cena de perto, mas faltou-me coragem.
Coloquei-me na posição em que durante anos, trepado na poltrona, assistia à saída
da Buick.
A operação não foi fácil. Deve ter durado umas duas horas. O
automóvel resistia. Interpretei como gemidos os barulhos que vinham do fundo da
garagem. Quando tudo parecia estar concluído, vi o reboquista entrar no seu
desengonçado veículo, ligar o mal cuidado motor e arranhar a primeira marcha. O
jurássico caminhão começou a se mover. Para minha tristeza apareceu em seguida
o carro que eu tanto havia admirado, durante anos. Estava, agora, em péssimas
condições. Castigado pela maresia. O antigo brilho dos cromados substituído
pela ferrugem. O azul marinho desbotara por completo, dando lugar a inúmeros
focos de corrosão. Os pneus de banda branca, tendo se recusado a participar do
cortejo, haviam sido substituídos por um conjunto de rodas descasadas que enfeavam
ainda mais o triste quadro.
Completada mais uma complicada manobra, coloquei o corpo
para fora da janela para assistir a Buick dobrar a esquina da Ataulfo de Paiva.
Voltei os olhos para a casa, agora mal cuidada, a tempo de ver o Valdir, já de
cabeça branca, fechar o portão da garagem.
Pouco tempo depois também a casa desapareceu, dando lugar a
um prédio modernoso inevitavelmente batizado com um nome idiota, de origem
francesa.
O desaparecimento da Buick doeu muito, juntando o sentimento
de perda com a angustiante sensação de que ali se encerrava minha adolescência.
Com o tempo, aprendemos a conviver com nossas ausências. No
caso da Buick, solucionei bem o
problema. É só chegar na janela da sala. Imprescindível estar na posição
correta, voltado com os olhos fechados para onde ficava o portão da garagem do
“Seu” Walter.
Não demora e a Buick reaparece.
Magnífica como sempre.
Bom dia,
ResponderExcluir...
Dois alqueires de pára-choques...
aurora boreal...
tendo se recusado a participar do cortejo...
Continuo lendo muito. Ganhei e acabei de ler A Filha Perdida, de Elena Ferrante, mas o delicioso prazer das palavras, o encanto e a magia que me conduz ao sonho parece que serão enterrados com a nossa geração.
Seguindo o conselho, pensei em, para hoje, em lugar da Buick, chegar à janela e aspirar o delicioso perfume das madeleines do Sr. Proust.
O lindo domingo promete!
Como sempre, Elvira está coberta de razão. Decididamente somos os últimos moicanos. Li, ontem, sobre uma reivindicação no sentido de que provas do Itamaraty sejam "simplificadas" através do sistema de cotas. Sou do tempo em que a carreira diplomática abrigava gente muito bem preparada. O mundo acabou ( ou somente o brasil ?). Permitam-me descer...
ResponderExcluirLembro do meu espanto, quando ainda bastante jovem, soube que ciências humanas, filosóficas e linguagem não mais fariam parte de diversos cursos acadêmicos, só restando grades curriculares específicas. O resultado da reforma foi fácil mensurar.
ResponderExcluirTenho uma curiosidade. Como, no futuro remoto ficará conhecido o ser humano. "Homo sapiens, mas nem tanto?"
Creio que o "nosso mundo" acabou. Não apenas no Brasil.
Por favor, não desça.
Bom dia,
ResponderExcluirDeixei um recado para o Fernando no dia 03.07.17
Grata,