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quinta-feira, 6 de julho de 2017

3049 - SX A japona estava prenha


           
O  BISCOITO  MOLHADO
Edição 5309 SX                           Data: 06 de julho de 2017

FUNDADOR: CARLOS EDUARDO NASCIMENTO - ANO: XXXIV


COMEÇA MAL, TERMINA BEM

Com frequência minha avó usava a expressão “No começo tudo são flores”. E ria muito, repetindo uma história que com ela aconteceu na primeira década do século passado. Alguém decidiu que a menina Zélia deveria aprender a tocar piano. Naquele tempo, no Rio de Janeiro, todo mundo tocava piano. Especialmente meninas bem nascidas, como era seu caso. O acadêmico Marco Luchesi, em seu livro “Teatro Alquímico”, descreve com propriedade a febre pianística que assolava o Rio de Janeiro.

Uma professora foi contratada. No início tudo corria às mil maravilhas. Parentes, vizinhos, todos tinham certeza de que, num curto espaço de tempo, a jovem artista estaria encantando os frequentadores das salas de concerto.

Mas nada disso aconteceu. Rapidamente Zélia tomou-se de horror pelo piano. E passou a infernizar a vida da tal professora. Tocava com os dedos crispados, o que levava a mestra à loucura. Que argumentava: “Zélia, no começo você tocava tão bonitinho...” A resposta estava na ponta da língua: “Pois é professora. No começo tudo são flores...”

No mundo da ópera a expressão nem sempre se aplica. Alcança, é certo, algumas obras que tiveram estreias gloriosas, para cair, depois, no mais absoluto ostracismo. Simplesmente, sumiram do repertório. Mas também é verdade que existem óperas que fazem sucesso há cem, duzentos anos, depois de premières marcadas por terríveis percalços. É o caso de alterar a expressão. Passa a valer: “No começo, nem tudo são flores”.

Vamos nos prender a dois exemplos conhecidos no mundo da ópera: “O Barbeiro de Sevilha”, de Gioacchino Rossini, e “Madame Butterfly”, de Giacomo Puccini.

Quando o “Barbeiro de Sevilha” estreou, no Teatro Argentina, em Roma, no dia 20 de fevereiro de 1816, Rossini, então com 24 anos de idade, já era o consagrado compositor de 15 óperas. Seu primeiro trabalho, “La Cambiale di Matrimonio”, foi apresentado quando ele mal havia completado 18 anos.

“O Barbeiro de Sevilha” consagrou definitivamente o compositor. Mas sua estreia foi uma tragédia. A ópera estreou com outro título: “Almaviva, o sia L´inutile Precauzione”. Esse foi um cuidado de Rossini. Trinta e quatro anos antes, Giovanni Paisiello havia composto um outro “Barbeiro”, sobre o mesmo enredo de Beaumarchais. Seus partidários achavam um desrespeito outro músico se utilizar de um tema já tão bem explorado por seu ídolo. Por conta disso, compareceram à estreia da ópera de Rossini dispostos a vaiá-la.

Mas, além disso, vários outros problemas aconteceram. A serenata do primeiro ato, improvisada pelo tenor espanhol Manuel Garcia, foi um tremendo fiasco. Sua guitarra estava desafinada e, pior ainda, o rompimento de uma corda passou a provocar um som estranhíssimo. Um gato circulava insistentemente pelo palco, provocando gargalhadas. A roupa de Don Basílio estava apertadíssima. Ele mal conseguia se mexer. No meio da encenação, Basílio simplesmente desapareceu, em busca de alívio. Na “ária da Calúnia”, ele tropeçou e bateu com o nariz no chão. O nariz sangrou até o final do espetáculo.

O insucesso da estreia não desanimou Rossini. Na sua segunda apresentação a ópera foi assistida em delírio, por um teatro completamente lotado. Só mais tarde, numa temporada em Bolonha, quando o sucesso da obra já estava consolidado, Rossini, num repto a Paisiello, alterou sua denominação para “Il Barbiere di Siviglia”.

A partir daí o sucesso da ópera espalhou-se por toda a Europa. Wagner e Berlioz consideravam-na uma realização perfeita no gênero “ópera-bufa”. Quando recebeu a visita de Rossini em Viena, em 1822, Beethoven teria exclamado: “Não se esqueça de escrever outros “Barbeiros”! Muitos “Barbeiros”!

O assunto agora passa a ser “Madame Butterfly”, de Giacomo Puccini. Ela também se transformou numa ópera queridíssima do grande público, depois de registrar em sua estreia um fracasso assustador.

Fracasso, diga-se a bem da verdade, surpreendente. ‘Butterfly” foi oferecida ao Scala de Milão e prontamente aceita. Não havia dúvidas de que o grande teatro daria à nova ópera de Puccini uma montagem memorável. A direção do espetáculo estaria a cargo do célebre Giulio Gatti-Casazza. O cenário foi desenhado em Paris pelo famoso cenógrafo Jusseaume. Giovanni Zenatello faria o papel de Pinkerton, Giuseppe de Lucca o de Sharpless e o regente seria o Maestro Campanini. Cio-Cio-San seria vivida pela bela Rosina Storchio. Pequenina, delicada, inteligente e considerada uma grande cantora, ela era a favorita de Arturo Toscanini.

Em suas memórias, Gatti-Casazza definiu esse elenco como ideal. Terminado o ensaio geral, a orquestra levantou-se e aplaudiu o compositor calorosamente. Não havia dúvidas de que a ópera ia ser um sucesso. Puccini, que sempre pedia à família que não comparecesse às estreias de suas óperas, no caso de “Butterfly” abriu uma exceção. Três de suas irmãs, muito elegantes,  podiam ser vistas num dos mais bem situados camarotes do Scala de Milão. Os preços dos ingressos foram majorados. Um record de vendas foi registrado pelas bilheterias.

Mas tudo deu errado. Diante dos acordes que marcam a entrada em cena de Butterfly, surgiu a primeira reação negativa. Um brado foi ouvido dos balcões: “Isto é La Bohème! Bohème! Bohème! Já conhecemos! Queremos coisa nova! “ No segundo ato, cantando “Um bel di vedremo”, uma corrente de ar inflou o quimono da Storchio. Foi o bastante para que um gaiato começasse a gritar: “Butterfly está grávida!” Ela pôs-se a chorar. Esses e mais uma série de acontecimentos terríveis deixaram Puccini tremendamente acabrunhado. Ele promoveu uma ampla reformulação no seu trabalho, que re-estreou com muito sucesso num pequeno teatro de Brescia, quatro meses depois.

Em seguida a ópera chegou aos grandes teatros da Itália e alcançou êxito marcante no Covent Garden, Metropolitan Opera House e Opéra- Comique.


De lá para cá a história é bastante conhecida. “Madame Butterfly” ocupa, nos dias de hoje, a sexta posição entre as óperas mais encenadas em todo o mundo.

3 comentários:

  1. Respeito pelo trabalho alheio parece que não é muito o forte nas plateias, por vezes bem seletas(R$). rs
    Ainda bem que no caso o talento, merecidamente, se fez flores.
    Essas histórias são saborosíssimas!!!

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  2. Elvira está coberta de razão! Platéias são, eventualmente, muito barra pesada! Meu pai cantou numa pequena cidade da Itália que era o terror de todos os artistas líricos. Saiu-se muito bem. A grande Maria Callas dizia : " Vá, Signor Fortes, é a sua vez de cantar para os animais !"

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  3. Grande Maria Callas. Não apenas como cantora mas em saber enfrentar o sofrimento. Graças aos Céus recuperou a saúde e o cantar.
    A vida de seu pai daria uma bela biografia. Aliás, o Biscoito, na totalidade daria um ótimo livro.

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