O BISCOITO MOLHADO
Edição 5309 SX
Data: 06 de julho
de 2017
FUNDADOR: CARLOS EDUARDO
NASCIMENTO - ANO: XXXIV
COMEÇA MAL, TERMINA BEM
Com
frequência minha avó usava a expressão “No começo tudo são flores”. E ria muito, repetindo uma história que com ela aconteceu na primeira década do século
passado. Alguém decidiu que a menina Zélia deveria aprender a tocar piano.
Naquele tempo, no Rio de Janeiro, todo mundo tocava piano. Especialmente
meninas bem nascidas, como era seu caso. O acadêmico Marco Luchesi, em seu
livro “Teatro Alquímico”, descreve com propriedade a febre pianística que
assolava o Rio de Janeiro.
Uma
professora foi contratada. No início tudo corria às mil
maravilhas. Parentes, vizinhos, todos tinham certeza de que, num curto espaço de
tempo, a jovem artista estaria encantando os frequentadores das salas de
concerto.
Mas nada
disso aconteceu. Rapidamente Zélia tomou-se de horror pelo piano. E passou a
infernizar a vida da tal professora. Tocava com os dedos crispados, o que
levava a mestra à loucura. Que argumentava: “Zélia, no começo você tocava tão
bonitinho...” A resposta estava na ponta da língua: “Pois é professora. No
começo tudo são flores...”
No mundo
da ópera a expressão nem sempre se aplica. Alcança, é certo, algumas obras que
tiveram estreias gloriosas, para cair, depois, no mais absoluto ostracismo.
Simplesmente, sumiram do repertório. Mas também é verdade que existem óperas
que fazem sucesso há cem, duzentos anos, depois de premières marcadas por
terríveis percalços. É o caso de alterar a expressão. Passa a valer: “No
começo, nem tudo são flores”.
Vamos nos
prender a dois exemplos conhecidos no mundo da ópera: “O Barbeiro de Sevilha”,
de Gioacchino Rossini, e “Madame Butterfly”, de Giacomo Puccini.
Quando o
“Barbeiro de Sevilha” estreou, no Teatro Argentina, em Roma, no dia 20 de
fevereiro de 1816, Rossini, então com 24 anos de idade, já era o consagrado
compositor de 15 óperas. Seu primeiro trabalho, “La Cambiale di Matrimonio”,
foi apresentado quando ele mal havia completado 18 anos.
“O
Barbeiro de Sevilha” consagrou definitivamente o compositor. Mas sua estreia
foi uma tragédia. A ópera estreou com outro título: “Almaviva, o sia L´inutile
Precauzione”. Esse foi um cuidado de Rossini. Trinta e quatro anos antes, Giovanni Paisiello havia composto um outro “Barbeiro”, sobre o mesmo enredo de
Beaumarchais. Seus partidários achavam um desrespeito outro músico se utilizar
de um tema já tão bem explorado por seu ídolo. Por conta disso, compareceram à
estreia da ópera de Rossini dispostos a vaiá-la.
Mas, além
disso, vários outros problemas aconteceram. A serenata do primeiro ato,
improvisada pelo tenor espanhol Manuel Garcia, foi um tremendo fiasco. Sua
guitarra estava desafinada e, pior ainda, o rompimento de uma corda passou a
provocar um som estranhíssimo. Um gato circulava insistentemente pelo palco,
provocando gargalhadas. A roupa de Don Basílio estava apertadíssima. Ele mal conseguia
se mexer. No meio da encenação, Basílio simplesmente desapareceu, em busca de
alívio. Na “ária da Calúnia”, ele tropeçou e bateu com o nariz no chão. O nariz
sangrou até o final do espetáculo.
O
insucesso da estreia não desanimou Rossini. Na sua segunda apresentação a ópera
foi assistida em delírio, por um teatro completamente lotado. Só mais tarde,
numa temporada em Bolonha, quando o sucesso da obra já estava consolidado,
Rossini, num repto a Paisiello, alterou sua denominação para “Il Barbiere di
Siviglia”.
A partir
daí o sucesso da ópera espalhou-se por toda a Europa. Wagner e Berlioz
consideravam-na uma realização perfeita no gênero “ópera-bufa”. Quando recebeu
a visita de Rossini em Viena, em 1822, Beethoven teria exclamado: “Não se
esqueça de escrever outros “Barbeiros”! Muitos “Barbeiros”!
O assunto
agora passa a ser “Madame Butterfly”, de Giacomo Puccini. Ela também se transformou
numa ópera queridíssima do grande público, depois de registrar em sua estreia
um fracasso assustador.
Fracasso,
diga-se a bem da verdade, surpreendente. ‘Butterfly” foi oferecida ao Scala de
Milão e prontamente aceita. Não havia dúvidas de que o grande teatro daria à
nova ópera de Puccini uma montagem memorável. A direção do espetáculo estaria a
cargo do célebre Giulio Gatti-Casazza. O cenário foi desenhado em Paris pelo
famoso cenógrafo Jusseaume. Giovanni Zenatello faria o papel de Pinkerton,
Giuseppe de Lucca o de Sharpless e o regente seria o Maestro Campanini.
Cio-Cio-San seria vivida pela bela Rosina Storchio. Pequenina, delicada,
inteligente e considerada uma grande cantora, ela era a favorita de Arturo
Toscanini.
Em
suas memórias, Gatti-Casazza definiu esse elenco como ideal. Terminado o ensaio
geral, a orquestra levantou-se e aplaudiu o compositor calorosamente. Não havia
dúvidas de que a ópera ia ser um sucesso. Puccini, que sempre pedia à família
que não comparecesse às estreias de suas
óperas, no caso de “Butterfly” abriu uma
exceção. Três de suas irmãs, muito elegantes, podiam ser vistas num dos mais bem situados camarotes do
Scala de Milão. Os preços dos ingressos foram majorados. Um record de vendas
foi registrado pelas bilheterias.
Mas tudo
deu errado. Diante dos acordes que marcam a entrada em cena de Butterfly,
surgiu a primeira reação negativa. Um brado foi ouvido dos balcões: “Isto é La Bohème!
Bohème! Bohème! Já conhecemos! Queremos coisa nova! “ No segundo ato, cantando
“Um bel di vedremo”, uma corrente de ar inflou o quimono da Storchio. Foi o
bastante para que um gaiato começasse a gritar: “Butterfly está grávida!” Ela
pôs-se a chorar. Esses e mais uma série de acontecimentos terríveis deixaram
Puccini tremendamente acabrunhado. Ele promoveu uma ampla reformulação no seu
trabalho, que re-estreou com muito sucesso num pequeno teatro de Brescia,
quatro meses depois.
Em
seguida a ópera chegou aos grandes teatros da Itália e alcançou êxito marcante no
Covent Garden, Metropolitan Opera House e Opéra- Comique.
De lá
para cá a história é bastante conhecida. “Madame Butterfly” ocupa, nos dias de
hoje, a sexta posição entre as óperas mais encenadas em todo o mundo.
Respeito pelo trabalho alheio parece que não é muito o forte nas plateias, por vezes bem seletas(R$). rs
ResponderExcluirAinda bem que no caso o talento, merecidamente, se fez flores.
Essas histórias são saborosíssimas!!!
Elvira está coberta de razão! Platéias são, eventualmente, muito barra pesada! Meu pai cantou numa pequena cidade da Itália que era o terror de todos os artistas líricos. Saiu-se muito bem. A grande Maria Callas dizia : " Vá, Signor Fortes, é a sua vez de cantar para os animais !"
ResponderExcluirGrande Maria Callas. Não apenas como cantora mas em saber enfrentar o sofrimento. Graças aos Céus recuperou a saúde e o cantar.
ResponderExcluirA vida de seu pai daria uma bela biografia. Aliás, o Biscoito, na totalidade daria um ótimo livro.