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terça-feira, 18 de julho de 2017

3054 - SX Em terra de cego, apanha-se muito.


                                                                                                                        
O  BISCOITO  MOLHADO
Edição 5314 SX                           Data: 18 de julho de 2017

FUNDADOR: CARLOS EDUARDO NASCIMENTO - ANO: XXXIV
  
                                

ANDRÉ, O PRECURSOR

Sou doido por automóveis. Trata-se de mania muito antiga. Entendo que começou com a paixão que eu devotava ao Ford 1948 conversível do meu avô paterno. Passou pelas várias Cadillac Coupé de Ville que meu tio avô José Gomes de Paiva importou nos anos 50. Pelo Belair 56 do Dr. Rafael Xavier, meu avô materno. E, morador da Paula Freitas nos anos 60, não posso deixar de registrar os fantásticos automóveis que de tempos em tempos eram “inaugurados” pelo corretor Marcelo Leite Barbosa, morador do “Jabaquara”, prédio vizinho aquele em que morava o Dr. Rafael.

Contaminado pelo vírus da ferrugem, acabei comprando alguns carros antigos. Tive o bom senso de não ultrapassar os limites que a prudência recomenda. Pelo menos, é o que penso. Minha mulher, claro, não concorda. Mas o certo é que nunca cheguei perto dos acervos ciclópicos que alguns queridos amigos amealharam. Posso também dizer, em meu favor, que meu quarto não cheira a borracha. Não tenho o hábito, disseminado entre muitos companheiros, de armazenar pneus de banda branca embaixo da cama do casal.

Puxo pela memória para lembrar que o primeiro antigomobilista que conheci se chamava André. Também morava na Paula Freitas, bem próximo ao prédio do meu avô. Era um cara bem nascido. No seu edifício, colado ao então recém-inaugurado Hotel Trocadero, morava o poeta Augusto Frederico Schmidt, em grande evidência na época, por conta de sua atividade literária, empresarial e, também, da estreita amizade que mantinha com o Presidente Juscelino Kubitschek.

A notoriedade do poeta fazia com que a Paula Freitas fosse invadida com frequência pelos gigantescos caminhões que eram então utilizados nas transmissões externas de televisão. TV Tupi, TV Rio, TV Continental...todas interessadas em ouvir o que Schmidt tinha a declarar sobre os mais variados assuntos, colhendo, ainda, imagens de um gigantesco papagaio branco que habitava o jardim de inverno do poeta.

Nunca entrei no tal prédio mas sabia, de boa fonte, que seus apartamentos eram descomunais, imponentes.

Na época, início dos anos 60, eu tinha doze, treze anos. O André, nosso personagem, portador de carteira de motorista, teria pelo menos dezoito. Nunca lhe dirigi a palavra. Naquele tempo, essa diferença de idades configurava obstáculo intransponível.

A fama do André teve início no dia em que ele invadiu a Paula Freitas com um enorme Hudson, cinzento e enferrujado, do final dos anos quarenta. O carro chegou resmungando até a frente do imponente prédio e lá ficou meses, imóvel como o Cristo Redentor. Capot sempre aberto, ali nosso herói permanecia mergulhado durante horas, num monta e desmonta sem fim, executando tarefas que em nada contribuíam para que o Hudson voltasse a rodar.

Com o passar do tempo, esses saraus mecânicos tornaram-se alvo dos comentários da vizinhança. Diziam os porteiros que o pai do rapaz não se conformava com a mania do filho. E, sobretudo, não entendia como ele havia encarado com tamanha indiferença a sugestão de abandonar a Hudson em troca da permissão para utilizar, sem restrições, a maravilhosa Cadillac Fleetwood que habitava a garagem da família.

O pior é que a coisa havia mal começado. Logo a Hudson ganhou a companhia de um Chevrolet Coupé 1941 amarelo, também em estado terminal. Em seguida a dupla virou trio, com a chegada de uma Pontiac 1947 caindo aos pedaços. Lembro de minha avó dizendo: “Não fica bem. Esse rapaz devia ser internado”.

Essa última aquisição precipitou o Waterloo do André. Três carros caindo aos pedaços, enfileirados numa rua classuda como a Paula Freitas dos anos 60...

A antipatia dos vizinhos aumentava a cada dia, inconformados com aquelas ruínas estacionadas em tão nobre recanto.

Nosso precursor cedeu, finalmente, às inúmeras pressões recebidas. Optou por racionalizar a coleção. A providência adotada foi dar um sumiço no Hudson, no Chevrolet e na Pontiac, substituindo-os por um Packard 1940, em estado bem razoável de conservação. O importante é que o Packard andava! Ou melhor, andava e parava. Nas minhas caminhadas por Copacabana, acostumei-me a detectar com razoável frequência a presença do André, enguiçado com o Packard. Os sintomas eram sempre os mesmos: um ajuntamento de gente, o teto do automóvel preto se sobressaindo em meio à multidão e fumaça por todo lado, anunciando o super-aquecimento do bicho.

Tento não ser maldoso, mas era evidente que, em seus enguiços, o Packard revelava uma atração fatal pelos recantos boêmios do bairro. O Le Rond Point, na esquina de Fernando Mendes com Avenida Copacabana, onde Antonio Maria curtia sua tristeza depois de brigar com Dolores Duran, era um must para o Packard. Ali suas panes criavam grande confusão, sendo a Fernando Mendes uma rua muito estreita. Mais tranquilos eram os enguiços em frente ao Bolero, na Avenida Atlântica, ou próximos ao Beco da Fome, no Lido. Civilizadas eram as panes que ocorriam no Posto Esso que ficava embaixo da Boîte Fred´s, na esquina de Atlântica com Princesa Isabel. Onde hoje se localiza o Hotel Meridien. Lá o Packard enguiçava e passava verdadeiras temporadas, até que o André conseguisse convencê-lo a retornar à Paula Freitas.

Enguiços do Packard eram, assim, triviais. Passavam desapercebidos.

Um deles, no entanto, ficou registrado em minha memória. Numa tarde de sábado, disputava-se no Posto 3 uma acirradíssima partida de futebol de praia. E os dois times envolvidos, por conta de arruaças e brigas promovidas em outros jogos do campeonato, haviam perdido o mando de campo, sendo obrigados a jogar as partidas remanescentes do torneio sempre em campo neutro. Jogavam desta feita em frente à Paula Freitas. Calçada apinhada de torcedores, berrando e xingando o tempo todo. Conhecido, só o juiz. Era o Ceguinho, vendedor da loja das Persianas Colúmbia, na Avenida Copacabana. Enxergando muito mal, como o próprio apelido atestava, Ceguinho, goleiro, fora barrado do time de futebol de praia da Paula Freitas. Imprudente, tornou-se juiz, devidamente oficializado pela Federação. No tal jogo, Ceguinho tantas fez, tantos erros cometeu, que levou uma corrida das duas torcidas. Desesperado, fugiu em direção à Avenida Atlântica, no momento exato em que passava seu amigo André com o Packard.

Num filme de final feliz, o André teria salvo o Ceguinho. No filme que eu assisti, o Packard enguiçou cinquenta metros adiante. Os três apanharam muito, nessa ordem: Ceguinho, André e o Packard.

Essas são as lembranças que tenho do André e de seus automóveis, placidamente parados na Paula Freitas, onde uma vaga, atualmente, é disputada a tiro de revólver.


Concluí que aquela figura, que nunca mais encontrei, foi um precursor do hobby de colecionar carros antigos, um visionário, naquele momento em que maravilhosos automóveis dos anos 40 e 50 eram avidamente trocados por fusquinhas e DKWs ou, pior ainda, conduzidos sem cerimonia ao ferro-velho.

3 comentários:

  1. "Em terra de cego, apanha-se muito."
    Daria para escrever um compêndio, um ensaio, uma tese de mestrado, ou quem sabe, um programa de humor ou até mesmo uma novela.
    Li a crônica e perdi o sono.
    Quantas vz, na mais completa cegueira, enfrentei "otoridades', corruptos, radicais doutrinados, imaginando que tivessem o direito de escolha.
    Tenho cicatrizes até hoje. Na alma.
    Ah, consegui dormir com o dia clareando.

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  2. Muito obrigado Elvira! Muitas felicidades é o que desejamos a todos os leitores do "Biscoito Molhado" !

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