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quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

2999 - B hinos e merendas


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O BISCOITO MOLHADO

 

Edição 5249B                                 Data:  16 de dezembro de 2015

 

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A ESCOLA 5-2 SANTA CATARINA

Eram três as escolas públicas no bairro, geometricamente localizadas como as três pontas de um triângulo: a Santa Catarina, em Paula Mattos, a Julia Lopes de Almeida, perto do Dois Irmãos e a Machado de Assis, no Curvelo.

Da “Escola Julia Lopes de Almeida”, homenagem à primeira escritora profissionalizada no Brasil, pouco ou nada sei. A localização muito afastada do núcleo que frequentávamos, não. o﷽﷽﷽﷽﷽﷽﷽stimento  primeira escritora profissionalizada no Brasil,endereço acima mencioanado, deixou outra lembrança além do conhecimento de sua existência. Há alguns anos, participando de um movimento dos artistas junto aos “Aprendizes de Santa Teresa”, estive lá. Foi a única vez em que pus meus pés na velha escola, justa homenagem ao perfil educador de Julia de Almeida, precursora da mulher moderna e independente.

Já da “Escola 4-3 Machado de Assis”, lembro de alguma coisa e alguma história, graças aos meus primos Fernando e Carlos, que cursaram  nela até o quarto ano primário. A escola granjeava, na época, de prestígio no tocante ao ensino, o que minimizava o aspecto físico de um projeto pouco feliz. Nada nele inspira o lúdico ou dá espaço à fantasia. O prédio é prismático, paredão pintado de cinza,  janelas só no primeiro andar. O único acesso é através de uma monumental porta em aço; um bloco duro e hermético também cinzento, que veta qualquer tentativa de se perscrutar o que se passa no seu interior. Sempre me sugeriu um reformatório, mas não foi o que meus primos viveram lá, ou a lembrança que de lá trouxeram.

Carlos gostava, sim, da escola, das brincadeiras no vão imenso que compreendia o andar térreo.  À hora da entrada, não sabe o porquê, o hino tecia loas à América.

“Deus salve a América, terra de amor e paz.

Verdes mares, florestas, lindos campos cobertos de flor.

Berço amigo, da bonança, da esperança e do altar.

Deus salve a América, meu céu, meu lar.”

Como era norma na rede pública de ensino, a bandeira era hasteada à entrada do turno e arriada à saída. As cerimônias contavam com alunos perfilados junto ao mastro, dois manejando os cordões do mastro e o outro, como porta bandeira. Carlos teve a honra de participar na condição desse último, cabendo-lhe receber o pavilhão já dobrado e levá-lo até o gabinete da Diretora. Pompa e circunstância.

Nós, moradores de Paula Mattos, estudávamos no final do ramal da mesma linha, poucos metros abaixo do Largo das Neves.

A Escola Pública “5-2 Santa Catarina” foi inaugurada em 1935, como Ginásio Estadual Santa Catarina. Ocupa um terreno de boas dimensões, bem no meio da Rua das Neves (atual Rua Eduardo Santos), ladeira íngreme que descia em direção à Rua Paula Mattos. Podia-se entrar pela Rua das Neves, pela entrada principal, ou pelo portão dos fundos, na Rua Fluminense (atual Rua Pintora Djanira). O prédio deixava uma boa área livre nos fundos, servindo para a recreação das turmas do jardim de infância e outra, duas ou três vezes maior na frente, onde todo o primário brincava. A fachada da escola era virada para essa área maior, de tal forma que, estrategicamente, do gabinete da Diretora, tinha-se boa visão dela. Parte da área de lazer era cimentada, sendo o resto chão de terra batida, local preferido dos meninos. Tínhamos ainda um grande pátio coberto, onde antes do início das aulas, as turmas ficavam em forma para entoar os hinos. O prédio da escola tinha três andares: no andar térreo, a sala da Diretoria, o gabinete dentário, salas de aula, salas dos jardins de infância, banheiros feminino e masculino. Uma escada levava ao segundo andar, ocupado apenas pelas salas de aula e, num último lance, ao refeitório e à cozinha. Quase não subíamos ao refeitório, porque nossa merenda vinha de casa, mas era um espetáculo, a mesa comprida ladeada pelos alunos, regalando-se com mingaus de sagu, canjica, ou tapioca. Sempre me causou espanto o cardápio da merenda e jamais quis ao menos prová-lo. 

A hora da merenda era cercada de rituais: o primeiro, formação de fila para ida aos banheiros, sempre acompanhada pela professora da turma. Com as sacolinhas a tiracolo, personalizadas pelos nomes bordados íamos, de três em três, primeiro aos sanitários, depois às pias para lavar as mãos. Quando no caminho de volta à sala de aula, entoávamos a canção:

“Estamos com as mãos lavadas, com água e sabão.

Já podemos merendar, preparemo-nos  então.

Merenda bem sadia e muito gostosinha; -Quem foi que preparou?

Foi a nossa mamãezinha.”

Assim merendados, corríamos ao pátio e às brincadeiras. O terreno parecia do tamanho do mundo e aquele mundo, muito divertido.

Aliás, no segmento musical, a escola fornecia cantos e hinos da melhor qualidade, inesquecíveis para os alunos que por lá passaram. Sob a supervisão da inspetora, os uniformes avaliados e aprovados, ou não, seguíamos para o pátio coberto, turma por turma, enfileiradas, perfilando-nos para o início do canto do Hino Nacional. Os hinos variavam, mas sempre exaltando o patriotismo e celebrando os feitos históricos da História do Brasil. Com o mesmo espírito e fervor solenes, soltávamos a voz louvando, ora a Bandeira, ora a Independência, ora a Proclamação da República.  Depois do hino, já nos preparando para deixar o pátio, era a vez de exaltar o estudo, razão maior de estarmos ali. Então o saudávamos com afã, entoando a singela melodia:

“Cantemos felizes, a canção do dia.

Hoje é terça feira (4ª,5ª,6ª...) dia de alegria.

A escola nos ensina que devemos estudar.

O estudo é nossa vida;  estudemos a cantar...”

Nossas professoras eram rigorosamente preparadas  para o ofício e a maioria, realizada e feliz com ele. Algumas mais severas, mais exigentes, mas sobretudo muito amigas e empenhadas no sucesso de seus alunos. A Diretora, a despeito do cargo ocupado, jamais se valia da posição para intimidar quem quer que fosse pela arrogância. Seu gabinete era mais frequentado em busca de suporte financeiro do que em razão de séria repreensão, embora essa também se desse na medida justa e quando necessária.  Mas, assim que Dona Odette assomava na entrada da sala de aula, levantávamos ligeiramente apreensivos...

Dona Carlinda usava uns óculos que não disfarçavam seu tique nervoso: piscava em série, franzindo os olhos; Dona Isabel era uma figurinha miúda, feições delicadas, cabelos curtos e escuros sempre impecáveis; Dona Carmem fazia jus ao nome emblemático: exuberante, vaidosa, cabelos louros, batom e unhas vermelhas, sapatos de saltos bem altos.  Estas, entre outras, foram professoras que nos ensinaram muito além do que exigia o currículo escolar. 

Especial era a “Caixa Escolar”, instituto que consistia em cobrar uma taxa mensal dos alunos, criando um fundo para socorrer os mais necessitados. A cobrança era arbitrada pelos próprios pais ou responsáveis pelos alunos, assumindo mensalmente o valor da contribuição. Nenhuma discriminação. Filhos das famílias tradicionais, dos comerciantes, dos prestadores de serviços, dos domésticos, enfim, éramos todos iguais perante o corpo docente e perante nós mesmos. Outros personagens que povoam as memórias escolares são os serventes. Infelizmente não gravei seus nomes, com exceção do seu Celestino, mas as imagens permanecem nítidas. Ao final do turno, suspendiam as cadeiras, varriam o chão das salas e corredores, limpavam os banheiros, levavam o lixo, guardavam o que os alunos esqueciam sobre as carteiras. Na única ocasião em que me vi “sem saída”, a presença de uma servente foi meu consolo no desamparo da escola vazia e observar o seu trabalho, meu único derivativo. A visão da sua figura e o barulho familiar de uma faxina foram minha sobrevivência ao castigo e lamento não ter tido a oportunidade de jamais lhe ter agradecido.

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