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quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

2991 - passando fome 2


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O BISCOITO MOLHADO

Edição 5241                             Data:  28 de novembro  de 2015

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129ª VISITA À MINHA CASA

2ª PARTE

 

Haydn esboçou um sorriso bonachão e eu lhe perguntei:

-Não era só a música, e as mulheres?...

-Apaixonei-me por um das minhas alunas, mas ela estava destinada ao convento. Casei-me, então, com a sua irmã mais velha, Maria Anna Keller.

-Foi um desastre?

-Se eu não ficasse atento, ela faria papelotes com as minhas partituras. Mais tarde, arrumei uma amante, Luigia Polzelli, que era cantora. Quando enviuvei, senti-me livre.

-Você ficou também preso à família Eszterházy por 29 anos. Como foi isso?

-O conde Morzin, com problemas financeiros, dissolveu o seu estabelecimento musical, e eu fiquei desempregado, mas não por muito tempo. A família dos príncipes de Eszterházy, uma das mais proeminentes da nobreza húngara, me contratou como mestre de capela assistente.

-Os termos do contrato eram duros: você vestiria a libré e as suas criações seriam destinadas ao seu patrão.

-Na prática, não o foi, porque o príncipe Paul II Eszterházy se encantava com a arte musical; não me tratou como criado e não impediu que as minhas obras fossem divulgadas fora do círculo familiar.

-Mas  Paul II Eszterházy não viveu muito.

-Veio, depois dele, o seu irmão Nikolaus I Eszterházy, que gostava ainda mais de música; deu-me todas as condições precisas para eu desenvolver o meu dom criativo. Quando o mestre de capela titular morreu, eu assumi o seu posto.

-Você tinha inteira liberdade para lidar com a orquestra privativa do príncipe Nikolaus I Eszterházy?

-Inteira – acentuou. Eu compunha para ela, eu a regia; assim, cheguei a criar uma centena de sinfonias.

-Como mestre de capela da família Eszterházy, o que mais você fazia?

-Eram muitas as tarefas: execuções de música de câmara, de óperas que eu compunha para o teatro do palácio da família, etc.

-Mesmo com o seu quase confinamento no palácio dos Eszterházy, localizado a 80 quilômetros de Viena, as suas criações chegaram a Paris.

-Eu podia reger minhas obras em Viena. Quando chegou um convite da rainha Maria Antonieta para eu me apresentar diante da corte francesa, o príncipe não opôs objeção, e viajei até lá.

-Foi quando você, compositor profícuo que era, compôs as seis sinfonias de Paris.

-A Sinfonia nº 85 ficou conhecida como “La Reine”, porque era a favorita da rainha Maria Antonieta. – acrescentou.

-Quando você conheceu Mozart?

-Em 1781; ele estava com 25 anos de idade, e eu com 49 anos.

-Você, que foi o maior influenciador do estilo de música, durante um grande período de tempo, também influenciou Mozart.

-Ele me chamava de Papá, mas o seu gênio era tão divino que não pude deixar de sofrer também influências suas.

-Mozart compôs e lhe dedicou seis quartetos de cordas, denominados “Seis Quartetos de Haydn”, uma homenagem a quem criou essa formação.

-Eram obras-primas. Quando ouvi as óperas compostas por Mozart, deixei-as de lado no meu trabalho de compositor. Como eu poderia escrever óperas que chegassem perto da magnitude das dele?

-Ninguém conseguiu, Haydn?  

-Certa vez, eu disse a seu pai, Leopold Mozart: “Digo-o perante Deus e como homem honesto, que vosso filho é o maior compositor que eu conheço em pessoa ou em nome, porque tem o gosto e a maior das ciências de composição”.

-Certo, você admirava o divino Mozart, mas era recíproco. Contam que um desses compositores catava com lupa uma nota errada nas partituras das suas obras e corria, satisfeito da vida, para mostra-la a Mozart. Este, um dia, se enfureceu com essa mesquinhez, e lhe disse mais ou menos isto: “Se juntarem eu e você não se fará meio Haydn”.

-Ele estava muito irritado mesmo. – comentou com um sorriso.

-Não bastassem os quartetos de corda e as sinfonias, você criou a forma sonata de composição, que é dividida em três grandes partes: exposição, desenvolvimento e reexposição com subdivisões em cada uma dessas partes. Digo isso grosso modo, pois, em matéria de música, sou apenas um diletante.

-A ideia da forma sonata de composição foi de Carl Philipp Emanuel Bach.

-Sim, Haydn, mas esse esquema de composição que dominou o pensamento da música erudita é devido quase que exclusivamente a você, que a desenvolveu na sua extensa obra. – salientei.

Ele se limitou a sorrir generosamente.

-Mozart, que era maçom, o levou para a maçonaria?

-Eu era católico, mas Mozart me convenceu. Ele não precisava falar muito, bastava me mostrar uma nova criação sua que eu já ficava convencido de qualquer coisa vinda dele.

-E o seu contrato com os Eszterházy?

Em 1790, o príncipe Nikolaus I Eszterházy faleceu. Quem o sucedeu tinha um espírito de pedra, não gostava de música, desfez-se de todo o arcabouço musical da família e me liberou.

-Depois de 30 anos praticamente.

-A seu favor, diga-se, pagou-me uma pensão pelos bons serviços prestados aos Eszterházy.

-Bem, Haydn, seu contrato foi rompido, você estava viúvo de uma mulher que embrulhava carne com as suas partituras... Sentia-se, enfim, livre como um passarinho.

-Fui chamado, logo em seguida, para trabalhar na Inglaterra em ótimas condições financeiras. Ao me despedir de Mozart, ele me disse que estava com um mau pressentimento. "Sinto-me muito bem, ainda pretendo viver bastante.” E ele: “Não é a você que me refiro, Papá”. Ordenei-lhe que arrancasse essas nuvens negras do espírito e que tratasse de compor bastante.

-No ano seguinte, ele morreria com 35 anos. Foi a maior tragédia da história da música ele partir tão jovem.

-Lá, na Inglaterra, compus as minhas doze últimas sinfonias.

-O seu triunfo foi tal que os ingleses queriam que você se estabelecesse lá como Handel o fizera alguns anos antes.

-Eu já estava numa idade avançada, beirava os 70. Dinheiro não era mais problema para mim. Voltei para a minha terra com a motivação de não deixar nunca de compor.

-E compôs obras de grande fôlego: “A Criação”, “As Estações”, o “Te Deum”.

-Compus ainda nove quartetos de cordas, seis missas que dediquei a um Esztereházy que gostava tanto de música como aqueles com que trabalhei.

-Você só parou quando morreu?

-Era a minha intenção, mas uns sete anos antes da minha morte, a debilidade física me impossibilitou de pôr no papel as ideias que ainda jorravam da minha mente.

-Você deixou esta vida em 1809, na sua casa, em Viena com 77 anos de idade.

-Morri ouvindo um bombardeio infernal que contrastava inteiramente com as harmonias que eu procurei por toda a minha vida.

-Era o exército de Napoleão bombardeando Viena.

Não ouviu as minhas últimas palavras, pois já havia partido para bem longe.

  

 

 

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