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terça-feira, 1 de dezembro de 2015

2989 - Avoado Dicionário Biográfico


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O BISCOITO MOLHADO

Edição 5239                             Data:  26 de novembro  de 2015

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MINIDICIONÁRIO AUTOBIOGRÁFICO

 

PATOS E GALINHAS – Quando a minha mãe retornou da costumeira visita que fazia à mãe dela, fez um escarcéu dos diabos: mataram o seu pato de estimação.

Hoje, quando ela toca no assunto, não entra em detalhes, diz apenas que o meu pai, aproveitando que ela saíra, me fez levar o pato até uma mulher que matava os bichos e os preparava para serem saboreados pelos seus fregueses. Não me lembro de ter saído pela Rua Cachambi levando um pato pelas mãos até o matadouro da tal mulher. Eu era pequeno demais, o que explica as falhas na minha memória quando tento reproduzir esse caso, para executar essa missão ingrata. Talvez o meu pai, sim, tenha juntado as asas do pato na sua mão fechada e o levou para ser executado e posto na panela, enquanto eu apenas lhe fazia companhia.

Em um ponto a minha mãe não deixa a menor dúvida: eu trouxe o pato de volta para casa já preparado para ir ao forno e ser comido.

A minha mãe passou uma descompostura no meu pai, mas ele, com toda certeza, comeu o pato, eu, também – nós éramos boa boca; quanto à minha mãe, tenho dúvidas, mas deve ter comido: pato, naquela época, saído da panela, não era comida que se recusasse.

Soube, muitos anos depois, lendo algumas páginas sobre o Marquês de Sade, que ele, com nove anos de idade, comeu o seu pato de estimação, na maior das ignorâncias, quando a verdade lhe foi dita, vomitou-o e ficou perturbado a ponto de perder a fome por alguns dias. Quem pensa que o Marquês de Sade comia pato cru, cuspindo as penas enquanto o sangue da ave lhe escorria pelos cantos da boca como baba, está redondamente enganado. A sua família nobre convocou um padre para lhe convencer que os animais eram diferentes das pessoas, mas ele não ficou convencido. Adulto, mudou bastante.

A minha mãe, evidentemente, não se transformou numa Marquesa de Sade.

Lembro-me muito bem, porque esse fato se deu mais recentemente, início dos anos 70, que, numa visita domingueira à família da irmã caçula da mamãe, almoçamos um pato assado. O marido da minha tia criava patos e galinhas no quintal da sua casa em Jacarepaguá. Quando a minha mãe soube que um daqueles patos fora para a panela, não deu, evidentemente, uma reprimenda no cunhado, como o fizera com o meu pai muitos anos antes, mas instigou seus sobrinhos, garotos cujas idades variavam de 3 a 7 anos, a dizer que o pai deles era mau por matar o pato, e eles disseram: “Papai é mau, papai é mau”. O meu tio fechou a cara.

Depois da primeira garfada, tudo entrou em paz naquele almoço de domingo.

Recordo-me bem, apesar do acontecimento ter sido anterior ao primeiro que aqui narrei, que a minha mãe degolava, com facas bem amoladas, as galinhas que comíamos. Naquela época, compravam-se as galinhas vivas que, depois, eram, geralmente, mortas pelas donas de casa e, por elas, cozinhadas.

A galinha era um prato requintado para as famílias remediadas. “Apareça lá em casa, compade, que vô mandá matá umas galinha pra almoçá.” - assim dizia um texto do meu livro de português da primeira série ginasial. “A galinha é um prato de luxo, principalmente, no interior”- explicou nosso professor.

Uma das galinhas degoladas pela minha mãe, no quintal da nossa casa na Rua Cachambi, ainda correu alguns metros sem o pescoço deixando-nos apavorados. Creio que foi a última vez que a minha mãe matou uma ave na vida.

 Sempre que eu tocava nesse tempo em que ela matava galinha, a minha mãe se perturbava e me dizia não saber por que fizera essas maldades.

Era a necessidade, que nos obriga a fazer o que não queremos.

Diferentemente da viagem que fiz com o pato, a da galinha, pronta para ser digerida, ficou bem marcada na minha mente. Ficamos mais ou menos um mês, acampados na casa da minha avó, em 1957, porque a minha mãe perdeu o filho, na quinta gravidez e correu sério risco de vida durante alguns dias. Lá, em São Cristóvão, ela, com flebite, era submetida a sessões de luzes infravermelhas emitidos por uma lâmpada. Nós, as crianças, tínhamos de ficar longe, mas certa vez, deixaram a porta do quarto entreaberta e eu vislumbrei a minha mãe deitada na cama num quarto iluminado por uma cor diferente. Tudo me pareceu misterioso.

Então, incumbiram-me de levar, numa tigela, pedaços de uma galinha cozida até uma vizinha que morava perto da Rua São Januário. E lá fui eu, pela Rua General Padilha, já de noite, carregando a tigela coberta por uma toalha de cozinha. Quando eu passava por uma vila, tropecei e caí; a tigela se espatifou na calçada e os pedaços de galinha se espalharam pelo chão. Como um autômato, juntei cacos e pedaços da galinha, sujos de terra, na toalha da cozinha e fiz o caminho de volta. Agoniado, eu imaginava os piores castigos. Nesse dia, meu pai, em vez de ir do trabalho para a nossa casa no Cachambi, foi para São Cristóvão e foi a ele que entreguei o embrulho do meu fracasso. Ele fez uma piada bem humorada sobre a minha ação desastrada; a minha avó, que era a maior prejudicada, não reclamou. E tudo terminou bem.

 

 

 

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