Total de visualizações de página

quarta-feira, 28 de maio de 2014

2622 - a saga dos Ferreira da Silva



----------------------------------------------------------------------------
O BISCOITO MOLHADO
Edição 4872                                        Data:20  de  maio de 2014
------------------------------------------------------------------------------

EU E ELIO NO BANDO DE LAMPIÃO

-Carlos, a água que vemos é o suor. A boca secou sob esse sol escaldante. A poeira rejeita qualquer vida sob ela. Os animais não têm carne sobre a carcaça.
-Elio, não estamos no ambiente das filmagens de Vidas Secas. Deixe de exageros, até mandacaru se vê por aqui. - chamei-o à fria realidade, que não estava assim tão fria.
-Mas que estamos na inóspita caatinga, é uma verdade. - frisou.
-Seus ascendentes viveram no clima frio da Europa, mas logo você se acostumará. - animei-o.
E andamos, andamos, desviando-nos dos espinhos e das queixadas de boi, até que o Elio parou e fez uma observação:
-Se pelo menos a Baleia estivesse conosco para distrair a nossa atenção...
-Baleia?!...  Pensando em mar numa hora dessas?
-É a cadela, Carlos.
De repente, divisamos no horizonte um bando a cavalo que crescia à nossa vista como se o olhássemos com binóculos.
Eram cangaceiros.
-Vocês não são macacos?...
-Eu não, nem acredito no evolucionismo. - garantiu o Elio com a voz titubeante.
-Quando cubro um macaco com a mira do meu rifle, ele morre porque Deus quer; se Ele não quisesse, eu errava o alvo.
Em seguida, percorreu-nos com os olhos dos pés à cabeça e concluiu:
-Bem, vocês não estão vestidos com o uniforme dos macacos.
Virou a cabeça para trás e disse com a determinação de quem não é contrariado.
-Carne Seca, traga dois cavalos, alpercatas e roupa para os dois.
-Vocês não vão se juntar a nós com esses trajes de palhaços. - voltou-se para nós?
-Sim, Seu ...
-Virgulino Ferreira da Silva.
-É o Lampião. - disseram os olhares que eu e Elio trocamos com uma eloquência que a fala não atingiria.
E assim, eu e Elio entramos para o bando de Lampião.
No meio daqueles cangaceiros armados até os dentes, nós dois não trocávamos uma sílaba, mas, quando nos víamos fora do alcance dos ouvidos deles, que eram uns 100, conversávamos.
-Carlos, você reparou como a Maria Bonita é jeitosinha...
-Controle-se, Elio, pense que nem costureira ela é.
-Ela me olhou de uma maneira...
-Desvie o olhar, Elio, desvie o olhar. Você sabe o que aconteceu com o marido dela?...
-Ela era casada antes de conhecer o Lampião?
-Era casada com José Neném, um sapateiro. Lampião a viu, quando ela estava com 19 anos de idade. Maria Neném aceitou ser Maria Bonita, enrolou o seu colchão debaixo do braço e acenou um adeus ao marido abandonado que, ainda assim, levou sete tiros, e um deles o cegou do olho direito.
Eu não estava certo desses sete tiros, mas precisava amainar o fogo do Elio.
-O diabo é que este potente sol inflama o meu instinto reprodutor, mas controlarei o dito cujo.
-Controle, Elio, controle.
Cético, com a promessa do Elio, intentei ser convincente no meu discurso.
-Você sabe por que ele recebeu o codinome de “Rei do Cangaço”?... Pela crueldade com que tratava as pessoas. Lampião mata seus inimigos encravando punhais entre a clavícula e o pescoço. Ataca, com seu bando, fazendas e cidadezinhas, pilhando, queimando, estuprando e até sequestrando crianças. Uma vez, antes de executar um desafeto, obrigou-o a comer 1 quilo de sal, ou seja, se escapasse da peixeira, morreria de derrame cerebral.
-Carlos, um livro que li dizia que Lampião era um Robin Hood, que roubava os comerciantes e fazendeiros abonados para distribuir com os mais pobres.
-Certamente um livro de autor comunista, que romantiza os bandoleiros. - bradei com veemência.
-Uma coisa é certa, ele inferniza o sertão por quase 20 anos; várias volantes já foram enviadas pelo governo e o seu bando derrotou todas.
-Já deteve a sua atenção nas armas deles, Elio?... São espingardas Mauser, pistolas semiautomáticas, rifles Winchester...
-Contrabandeadas não foram, pois os meliantes do cangaço ainda não tinham chegado a esse nível de crime como nos Estados Unidos da Lei Seca.
-Essas armas são despojos das volantes e grupos paramilitares que eles derrotam pelo caminho. - disse-lhe.
-Todos concordavam numa coisa, Carlos: Lampião era um arguto estrategista.
-E conhecia bem o terreno; foi almocreve antes de passar para a sobressaltada vida de criminoso. - acrescentei.
A máquina do tempo nos fez recuar 10 anos, conduzindo-nos a 1926, mas sem nos arrancar daquele lugar espinhoso e de vegetação rala. Continuávamos no bando de Lampião.
A aproximação de um cangaceiro de maus bofes interrompeu uma conversação entre mim e o Elio.
-O chefe quer falar com vocês dois.
E, enquanto estremecíamos com o inesperado, o sujeito bradou:
-O que estão esperando?... Vamos lá.
Se fosse alguma coisa terrível para nós, seríamos arrastados até ele, e não convocados, embora de maneira ríspida. Tínhamos de manter a tranquilidade.
Diante de Lampião, nesse momento, por estranho sortilégio da mente, vieram-me as incontáveis histórias que li e ouvi sobre ele, os muitos filmes, e nenhum deles terminou bem.
Recebeu-nos com uma carta na mão e ajeitando os óculos no nariz.
-Chamei vocês dois porque quero ouvir a opinião de quem é de fora.
Era algo sério, pois o seu rosto, envolto pelos cabelos espicaçados, estava mais crispados do que o costumeiro.
-O governo federal pediu a nossa ajuda para combater a Coluna Prestes. Vocês, que me parecem bonitinhos das cidades do sul, sabem o que é isso?... Essa Coluna?...
-É uma marcha que reúne militares rebelados, principalmente tenentes. - antecipei-me
-A importância da Coluna Prestes foi tamanha que inspirou Mao Tse Tung na Grande Marcha, na China, o que consolidaria a sua vitória sobre Chiang Kai-shek.
Ouvi e cutuquei o Elio, que saíra do contexto.
-Esses tenentes são rebeldes como nós?!... Ainda assim, penso em combatê-los, pois nos oferecem fuzis automáticos. O diabo é eles quererem que usemos as suas fardas; nenhum dos meus homens quer vesti-las, muito menos eu. Prefiro usar as roupas com que vocês chegaram aqui.
Enfim, jogou fora a sua hesitação:
-Aceitarei a proposta do governo pelos fuzis automáticos.
Dispensados, eu e Elio cochichamos.
-A que ponto caiu o governo Artur Bernardes, pedir ajuda a cangaceiros criminosos.
-E o Prestes não era ainda comunista, Carlos, nessa época.
Avançamos 12 anos no tempo, estávamos em 1938, numa fazenda, cujo nome nós não sabíamos, no Sergipe. Adormeci lendo as notícias sobre as ações autoritárias do Estado Novo de Getúlio Vargas num jornal datado de 27 de julho de 1938.
Amanhecia. Uma voz chegou-me aos ouvidos: “Acorda, Maria Bonita. Levanta, vá fazer o café.”
Alguns do bando ainda dormiam, outros estremunhavam. De repente, espocaram tiros de todos os lados. Aquele terrível despertador colocou todos de pé. Uns se levantavam para retornar ao chão, esvaindo-se em sangue.
-Malditos macacos! Caímos numa emboscada!
O som de armas, que não perdia o fôlego, colocava todos de cabelo em pé; eram as metralhadoras Hotchkiss, em número de quatro, que tornavam a luta desigual.
-Carlos, agora, sei o nome desta fazenda: Angicos. - sacudiu-me o Elio.
Lampião já estava morto, Maria Bonita, ao seu lado, agonizava. Os policiais, que vinham de Alagoas, não temendo mais as balas inimigas, vieram empunhando facões terminar o serviço.
Deu-se início à degola dos derrotados.
-Carlos, vão cortar a cabeça da Maria Bonita, que ainda vive. - disse o Elio tomado pelo horror.
Vislumbrei que um cangaceiro sobrevivera e dava início a sua fuga.
-Elio, vamos atrás dele para escapar desta carnificina.
E assim o fizemos. Depois de horas de cavalgada, soubemos o seu nome: Corisco.
-Elio, começamos esta história na “Vidas Secas” e vamos terminar no  “Deus e o Diabo na Terra do Sol”.

Nenhum comentário:

Postar um comentário