Total de visualizações de página

terça-feira, 13 de maio de 2014

2611 - o biscoito de Dickens



-----------------------------------------------------------------------------------
O BISCOITO MOLHADO
Edição 4861                                        Data: 01 de  maio de 2014
------------------------------------------------------------------------

131ª VISITA À MINHA CASA

-Charles Dickens, você menino, sofreu muito, mas o paroxismo do seu sofrimento foi provocado por sua mãe, que queria que você continuasse trabalhando na colagem de rótulos de graxa na fábrica de um amigo da família, não é isso?
Eu não pretendia lembrar casos delicados da vida do grande escritor inglês, que me visitava, mas ele mesmo me demoveu dessa ideia, contando-me tristes acontecimentos da sua infância.
-Meu pai era um perdulário, sonhador, não aceitava a realidade, que a sua posição social caíra; endividou-se muito.
-E os credores foram implacáveis?
-Nós nos mudamos para um bairro mais pobre de Londres, Camden Town; moramos em quartos baratos. Meu pai empenhou os talheres, para fazer frente às dívidas e se desfez do meu paraíso, que era a biblioteca. Mas a realidade foi ainda mais cruel e ele foi preso.
-O prisioneiro por dívidas, naquele tempo, na Inglaterra, podia ter a família morando com ele no presídio?
-Sim; e eu fui destacado para trabalhar numa fábrica que produzia graxa para os sapatos com betume. Eu ganhava seis xelins por semana para sustentar a minha família encarcerada na prisão para endividados. Eu só ia para lá dormir e, depois, seguia para o torturante trabalho.
-Com essa quantia irrisória, Dickens, você não conseguiu sanar as dívidas do seu pai?
-Claro que não. Ele conseguiu sair da cadeia, com a família, e melhorar a sua situação financeira, quando recebeu uma herança do meu avô.
-A sua mãe, no entanto, queria que você permanecesse no trabalho de rotular frascos de graxa.
-Nunca a perdoei por essa maldade. Se eu dissesse o contrário, estaria mentindo para mim mesmo, o que é a pior forma de mentira.
-Você se identificava com o seu pai, não é verdade?
-Gostava mais dele, apesar das suas estripulias que se refletiram na minha vida, como vimos.
-Os estudiosos da sua obra afirmam que o personagem Wilkins Micawber, do David Copperfield, foi inspirado no seu pai.
Sem tocar nessa questão, por demais óbvia, disse-me que certa vez, ainda menino,  se encantou com uma grandiosa mansão, era a Gad' s Hill Place. Ao expressar meu deslumbramento, papai me disse que, se eu fosse perseverante, se trabalhasse duro, eu poderia algum dia vir a morar nela.
-Os sonhos do seu pai o contagiaram? - interrompi.
-Ao saber que cenas do Henrique V de Shakespeare foram encenadas lá, fiquei ainda mais encantado com o passar dos anos. Trabalhei duro e com o dinheiro que consegui com a minha obra literária, adquiri aquela casa.
-Foi uma maneira de demonstrar que seus sonhos de infância não soçobraram todos diante da dura realidade. - disse, arrependendo-se, logo em seguida, por esse comentário tosco.
-Meu pai não foi um doidivanas, como muitos podem julgar.
-Ficou gravada numa placa em Gad' s Hill Place o conselho que o seu pai lhe dera para consegui-la e o tempo em que foi sua propriedade, de 1856 até 9 de junho de 1870, data da sua morte.
-Apraz-me saber que lembraram as palavras do meu pai para mim, sem elas, provavelmente, eu moraria em outro lugar.
As desilusões amorosas o marcaram muito, Dickens? - perguntei, mas com tonalidade afirmativa.
-Meu primeiro grande amor foi Maria Beadnell, e eu era correspondido, porém, o pai dela era banqueiro, enquanto eu pulava de um emprego para outro, de escritório de advocacia – tenho minhas reservas com os advogados – a estenógrafo de tribunal. O pai a levou para uma viagem à França para curá-la do seu amor por mim e, quando ela retornou, viu-me com outros olhos. Como eu sofri!
-Maria Beadnell viu um pobretão com dezoito anos de idade. Muito tempo depois ela intentou requentar esse amor.
-Como me iludi! Eu não vivia bem com minha esposa há muito tempo, quando soube que iria rever meu primeiro grande amor, o meu coração acelerou. A realidade desabou para mim: passaram-se vinte e cinco anos no segundo em que a vi; enrugada, gorducha, feia, tola...
-E a sua esposa Catherine Hogarth?
-Casamos em 1836, e foram dez filhos. Minha cunhada Mary, de 17 anos, veio morar conosco para ajudar a irmã grávida. Ela morreu no ano seguinte nos meus braços. Sua morte prematura me aniquilou por muito tempo.
-Você sublimou esse drama na tocante narrativa da morte da pequena Nell no seu romance Loja de Antiguidades?
-Sempre se encontrará passagens da minha vida e pessoas que me marcaram nos meus livros.
-Você se separou da sua esposa, mas sem se divorciar.
-Vivíamos a era vitoriana, o divórcio era um estigma. Nós nos apartamos um do outro, contudo, custeei todos os seus gastos enquanto viveu.
-Outra irmã dela, Georgina, também cuidava dos seus filhos, e permaneceu nessa tarefa mesmo depois da sua separação. Houve rumores...
Charles Dickens interrompeu-me com alguma brusquidão.
-Daqui a pouco, terei de ir-me, e não nos detemos em uma só obra literária minha.
-Sei que você era um trabalhador compulsivo, que foram muitas as páginas que escreveu. Seu primeiro romance foi “Os Documentos Póstumos do Clube Pickwick”.
-Eles me queriam para redigir textos baseado em ilustrações; fui, evidentemente, contrário a isso, apesar de iniciante, o razoável seria a inversão de papéis.
-As imagens surgindo dos textos.
-Robert Seymour foi um talentoso ilustrador, suicidou-se, o que é lamentável. Havia outro ilustrador, que era conhecido pela alcunha de Phiz, e ele ilustrou também o meu romance seguinte, “Oliver Twist”.
-Conheço “Oliver Twist” pelo livro, pelas versões cinematográficas, pela minissérie realizada pelo BBC. Como o menino sofreu até alcançar um verdadeiro lar!
-Primeiramente, “Oliver Twist” foi divulgado em folhetins semanais,
-Você mostrou, nesse romance, o submundo da sociedade vitoriana, os desfavorecidos, os males sociais.
-Em Londres, na época, viviam mais de um milhão e meio de almas. Muitos camponeses tinham sido expulsos das terras para que se expandisse, principalmente, a criação de ovinos; eles vieram, então, procurar emprego nas fábricas de tecido londrinas.
-Os socialistas alardeavam que os espoliados eram a mão de obra barata da indústria têxtil. E que o trabalho infantil foi a grande chaga da economia britânica.
-Eu senti isso na pele, mas não limitei tudo o que vivi ao cenário econômico, a ser um porta-voz da classe operária.
-Você era talentoso demais para isso. Você era um artista. - enfatizei.
Como se mantivesse calado, prossegui:
-Por não ter sido um revolucionário, politicamente falando, suas criações foram aceitas por todos, ricos e pobres, e a sua fama se espalhou pelo mundo e perdura até hoje.
-Meus personagens não melhoraram de vida pegando em armas.
-”Canção de Natal”, publicado em 1843, quando você estava com trinta e um anos de idade, é lembrado até hoje em quase todo o espectro da arte. O “Scrooge” da sua história é a personificação da sovinice. É nome de uma das mais conhecidas figuras da história em quadrinhos que, no Brasil, é chamado de Tio Patinhas.
-Os fantasmas assombraram o avarento. - esboçou um sorriso aludindo ao seu conto de Natal.
-Leon Tolstoi, um dos mais consagrados romancistas da literatura universal, apontava “David Copperfield como a grande obra-prima das letras.
-Eu tinha, no meu espírito, toda a matéria-prima para transformá-la em obra de arte.
-David Copperfield foi o romance em que você expôs mais a sua vida?
Não me respondeu, pois partira para outras plagas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário