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sexta-feira, 14 de março de 2014

2573 - de bom humor também se vive



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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4373                      Data: 02 de março de 2014
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126ª VISITA À MINHA CASA

-Camões, você estudou mesmo na Universidade de Coimbra? - foi a primeira pergunta que fiz ao grande poeta logo que ele se materializou à minha frente.
-Fatos da minha vida que se encontram envoltos em mistério, nele permanecerão para não perder a magia.
-Os pesquisadores o desagradam na sua busca obstinada pelos fatos passados?
-Às vezes.
-Você promete, Camões, não falar o português quinhentista?
-Prometo, mas se lessem mais “Os Lusíadas” e outras obras minhas, não haveria estranhamento algum.
-Você conheceu profundamente o latim, o espanhol e, evidentemente, a língua portuguesa.
-Conheci.
-Aliás, você consolidou o português culto.
-Houve outros autores portugueses que também contribuíram para isso. - ponderou.
-Camões, você viveu em pleno Renascimento, um período de acentuadas mudanças culturais e da sociedade, que marcaram o fim da Idade Média.
-Sim, houve com o Renascimento a redescoberta e revalorização da Antiguidade Clássica. Valorizou-se o homem, colocando-o no centro do universo.
-Vasco da Gama. - veio-me logo à mente o herói da sua obra-prima.
-Vasco da Gama tinha de ser exaltado. - limitou-se a dizer.
-No Renascimento, a especulação científica floresceu com vigor. Os diversos ramos do saber – Física, Matemática, Astronomia, Engenharia e outros – tiveram um acentuado avanço. - comentei.
-Sim. - disse-me.
-As grandes navegações, que se beneficiaram desse progresso também, contribuíram sobremaneira para o conhecimento do planeta em que vivemos. - aduzi.
-Vivia-se na Terra sem conhecê-la na sua inteireza. - complementou.
 -Então, no início do século XVI, Garcia de Resende, que foi poeta, músico, cronista, desenhista e arquiteto, além de Moço da Câmara de Dom João II, em 1490, lamentou que não houvesse alguém capaz de celebrar as façanhas portuguesas. Para ele e para muitos, havia material épico superior a dos romanos e a dos troianos. - lembrei.
-Garcia de Resende fatiou seu talento em tantas partes que não enfrentou o desafio de escrever um poema épico. Eu o compreendo; não bastava empunhar a pena. - comentou.
-João de Barros fez a tentativa, mas com uma novela de cavalaria em formato épico. Antonio Ferreira, apesar de ter recebido o cognome “o Horácio Português”, não conseguiu criar o grande poema épico por que Garcia de Resende tanto clamava.
-Antonio Ferreira encontrava mais facilidade em criar odes, epístolas, elegias e peças de teatro. - justificou.
-Virgílio tinha de ressuscitar para enaltecer um povo que havia guerreado encarniçadamente com os mouros e, em seguida, com Castela, para conquistar a sua soberania?... E esse mesmo povo, escarmentado pelas lutas forjou um espírito aventureiro que o levou a navegar pelos sete mares, expandindo as fronteiras do mundo e desbravando novas rotas de comércio e exploração. Fazendo, nessa faina, frente a exércitos inimigos a às forças sobre-humanas da natureza.
Quando parei para tomar fôlego, Camões retomou a palavra.
-Como era um trabalho de Virgílio, e ele já morrera há mil e quinhentos anos. Eu li, reli as suas obras, mormente “Eneida”, e utilizei a técnica concebida por ele para o meu poema épico.
-Virgílio conduziu Dante Alighieri até a porta do Paraíso.
-Deixou-o com Beatriz e veio me ajudar. - brincou Camões.
-De tal grandeza foram os feitos portugueses, que ser conhecedor profundo da obra de Virgílio e possuir sólida erudição também em mitologia greco-romana não bastariam para criar um poema à altura. Sem falar na centelha de gênio, que se fazia necessária.
-De fato, se eu fosse apenas um poeta da corte não teria alcançado o meu objetivo com a mesma amplitude.
-Você, Camões, sentiu na carne a na alma o mesmo que os grandes navegantes lusos?
-De certa maneira, sim. Fui soldado que viu a morte com a espada na  mão. Fiz-me ao mar, conheci muitos países e até de naufrágios escapei. Longe da pátria, sofri de saudades como os heróis navegadores de outrora.
-As experiências que você acumulou, por tantos anos, como homem de ação, açularam o seu talento de poeta?
-Eu complementaria afirmando que, sem essas experiências, eu não seria capaz, unicamente, de dar à luz a “Os Lusíadas”.
-A corte de Dom João III, que você frequentou, era demasiadamente tranquila para o seu temperamento, e, então, você procurou a boemia e a turbulência das ruas.
-Principiou-se a minha carreira de poeta, de fato, na corte de Dom João III. Havia lá damas da nobreza inacessíveis que me inspiravam. A tranquilidade lá era só aparente. Sabemos nós das artimanhas dos cortesãos, dos entrechoques de grupos rivais. Um ambiente de falsidades, entremeado de palavras venenosas, incomoda.  Procurei a sinceridade, muitas vezes bruta, dos plebeus. Uma boa parte da minha vida foi turbulenta.
-Seus biógrafos, alguns deles, pelo menos, afirmam que, por causa de um amor contrariado, você se alistou como militar e partiu para a África.
-Para reagir contra os amores insatisfeitos, eu tinha a pena de poeta. Na verdade, eu precisava de respirar novos ares. Portugal se tornara pequeno para mim, fisicamente falando, é evidente. E parti.
-Na África, você perdeu um olho numa batalha.
-Muitos só me conhecem hoje em dia, pelo que vejo, pelo fato de eu ter sido um caolho;
-Você é nome de um prato no Brasil: “Bife à Camões”.
-E nada entendo de culinária. Isso por que escrevi “Os Lusíadas”?
-Não, porque perdeu um olho.
Depois de uma pausa constrangedora, prossegui:
-Deixe-me explicar: nos restaurantes, ou casas de repasto, do Brasil, servem um prato chamado “Bife à Cavalo”, que contém dois ovos estrelados.
-Quando contém um, passa a chamar-se “Bife à Camões”. - deduziu com uma gargalhada.
-Um homenagem dos artistas da culinária ao grande poeta. - contemporizei.
-Se eu soubesse que a minha fama de caolho correria o mundo, não teria feito versos apenas para Perdigão que perdeu as asas. - afirmou com outra sonora gargalhada.
 






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