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quinta-feira, 5 de setembro de 2013

2461 - janelas partidas



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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4261                     Data:  31 de  agosto de 2013
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GUERRA DAS MALVINAS

O barulho foi ensurdecedor.
-A Guerra das Malvinas chegou aqui. - alardeou numa voz trêmula a secretária do nosso chefe.
Bem, o General Figueiredo deu o apoio do Brasil à Argentina contra a Inglaterra, mas não era caso de os ingleses nos bombardearem, o máximo que eles fizeram, até então, contra nós, belicamente falando, foi se apossar da Ilha Trindade que, poucos anos depois, eles devolveriam sem a necessidade de trocas de tiro. E o apoio dado, agora, pelo nosso governo à Argentina, além disso, fora diplomático apenas.
Passada a barulheira, que parecia eterna, embora não tenha durado um minuto, colegas meus de trabalho, ainda assustados, se debruçaram nas janelas do 11º andar, do nº 115 da Avenida Rio Branco, onde se achava a nossa sala e anunciaram que viam vidraças  de prédios estilhaçadas, mas que o nosso edifício suportou o impacto.
Enquanto isso, outros ligaram o rádio em busca de notícias que chegavam em edição extraordinária. Um supersônico britânico, o bombardeiro Vulcan, com problemas de abastecimento de combustível, invadiu o espaço aéreo brasileiro e dois caças F5 alçaram voo para interceptá-lo.
Correu o boato que o Brasil reteve o Vulcan e o deixou partir sem um míssil, que seria copiado para ser posteriormente fabricado. Tudo é possível, até mesmo a negociação de combustível por um artefato de ataque entre o Brasil e o Reino Unido.
No nosso serviço, o conflito já se refletia desde a invasão das Ilhas Malvinas/Falklands pelo governo ditatorial argentino; os pedidos dos armadores para a implementação da Sobretaxa de Risco de Guerra para cobrir os seguro da carga e do casco dos navios subiram exponencialmente. E o Bureau de Fretes, que tinha uma metodologia de cálculo para tudo, pegou a que usava para a área do Oriente Médio, mudou os números e os fretes dos navios subiram como os aviões supersônicos.
Na época, eu era um frequentador assíduo da Corretora Caravello, da Rua da Alfândega. Almoçava em quinze minutos, saía do restaurante, ia para lá, onde ficava até 13h 30min, quando encerrava o pregão na Bolsa do Rio de Janeiro.
Os preços das ações caíram, evidentemente. Eu e os demais investidores que encaravam fixamente o monitor de vídeo com as últimas cotações, ficávamos decepcionados, outros exasperados:
-Esses ditadores alcoólatras da Argentina exageraram na dose e se meteram logo com a Inglaterra, que enfrentou sozinha Hitler e Stalin. Nós é que sofremos com a queda da bolsa. - vociferou um desesperado, que apostara no mercado de opções, com o ímpeto de um jogador de cassino e sofria com os fortes prejuízos.
-Carlos, a Argentina infringiu todas as normas internacionais seculares ao invadir as Ilhas Falklands, que eles chamam de Malvinas. - sussurrou-me o Coronel, o frequentador mais ligado a mim, na Corretora, avesso à jogatina com ações.
Sim, a Argentina dera um tiro no concerto das nações, pensei, mas apenas demonstrei minha concordância com o parecer do Coronel, meneando a cabeça.
-E foram se meter com a Margareth Thatcher!... - bradavam.
Nardelli, meu agente na Caravello, confessou-me a sua preocupação com uma guerra tão pertinho de nós.
-As sobretaxas de guerras estão sendo homologadas na SUNAMAM. - informei-lhe.
E como as minhas colegas de trabalho (parece coisa do Sílvio Santos) reagiram ao confronto? Uma delas, moradora no Leblon, reportou-se a uma família argentina que morava num apartamento vizinho ao seu. Tratava-se de um casal com um filho de seis anos. Seus amiguinhos, com a crueldade própria das crianças, zombaram da força do seu país e lhe disseram que a Inglaterra venceria a guerra com os pés nas costas.
  Para quê?... Segundo as minha colega, ele reagiu como um adulto fanático, bradando:
-”Las Malvinas son nuestras”.
Essa mesma colega chamava carinhosamente o seu filho indisciplinado ao extremo de “Meu Exocet”. Por que Exocet?... Explico aos que se esqueceram dessa guerra ou nasceram depois dela. Pilotando um avião Super Étendart, um piloto disparou mísseis Exocet, que atingiram em cheio o poderoso navio Sheffield, que se tornaria a primeira embarcação de guerra britânico a ser afundada depois da Segunda Guerra Mundial.
-O Exocet passou a ser tema de todas as conversas, sempre com a lembrança de que era uma arma francesa e seu valor cresceu exponencialmente no mercado de armas.
-Ah, se eu tivesse comprado ações do Exocet antes de estourar essa guerra!- exclamou um viciado em subidas e descidas das cotações de papéis, na Corretora Caravello, como se existisse uma empresa, ainda por cima sociedade anônima, que negociasse esses mísseis na nossa bolsa.
Numa coisa, todos estavam de acordo: a indústria armamentista francesa acarretaria rios caudalosos de dinheiro com essa arma letal.
Mas voltemos à SUNAMAM, o órgão que pagava meus caraminguás mensais. Lá, apareceram logo os expertos em estratégias e táticas de guerra. Embora, esbarrássemos em comandantes da Marinha a cada dez passos que dávamos, esses conhecedores profundos de conflagrações bélicas eram civis. Entre eles, destacava-se o Mário Márcio, representante do Lloyd Brasileiro nas Conferências de fretes, que sempre aparecia na nossa sala por causa das questões operacionais dessa empresa. Com pose de General Patton, tramando os planos do 3º Exército nas Ardenas, ele recapitulava os acontecimentos no teatro da guerra e  dizia qual seria o próximo passo da Grã Bretanha.
Certa vez, quando ele chagou até nós, eu me antecipei:
-Mário Márcio, o que você leu hoje no Jornal do Brasil, para nos contar?
-Você é mau. - acusaram-me depois que ele saiu da nossa sala de volta para o Lloyd Brasileiro.
Todas as pessoas lúcidas sabiam o porquê da guerra; a economia do país governado por uma junta militar apresentava os mais catastróficos indicadores, mesmo maquiados e a solução, para fazer o povo argentino esquecer-se  das agruras internas foi clamar pelo patriotismo – o último refúgio dos canalhas, segundo Samuel Johnson – e invadiram  as Ilhas Falklands/Malvinas.
As forças argentinas obtiveram uma ou outra façanha, mas quando o Cruzador General Belgrano foi afundado por um submarino nuclear, fato inédito até então, não restou mais dúvidas de que o Reino Unido não fora até os arquipélagos austrais para brincar.
Dois meses depois, em junho de 1982, precisamente, a Argentina reconheceu a derrota. Restou, para o povo argentino, o consolo de a derrocada antecipar a queda da ditadura, e, no ano seguinte, 1983, Raúl Alfonsin se elegia presidente do país.
Antes, ou seja, na Copa do Mundo de 1982, um mês após a guerra, a Argentina seria eliminada pelo Brasil pelo placar de 3 a 1. Na ocasião, um torcedor portenho, ouvido por um jornalista brasileiro, desabafou:
-Perdemos as Malvinas para a Inglaterra, perdemos para o Brasil no futebol, só falta agora nós descobrirmos que Gardel não era homem.


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