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segunda-feira, 29 de agosto de 2011

1999 - cartas, poemas e violinistas

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O BISCOITO MOLHADO

Edição 3829 Data: 12 de agosto de 2011

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CARTAS DOS LEITORES

-Vinícius de Moraes foi tão amigo assim do Manuel Bandeira, como eu depreendi da visita que o poeta e letrista fez, recentemente, à casa do redator do Biscoito Molhado? Olavo

BM: Sim, e Vinícius de Moraes contou mais sobre essa convivência ao seu biógrafo, José Carlos Pecci, irmão do Toquinho. Leia esse trecho que reproduzimos da sua biografia:

-“Vi-o pela segunda vez no Salão de Belas Artes. Fez-me as mesmas festas, perguntou pelo violão, falou vagamente em se marcar alguma coisa. Uma noite saímos juntos. Grande noite para mim e Manuel Bandeira, paternal, me levou ao cinema, me levou à Americana para tomarmos um malted milk, depois me levou ao Beco, onde subi sete andares num elevador vermelho. Conheci seu quarto, às vezes para o poeta um lugar de tristezas e que, para mim, se tornou um lugar de sossego. E banhei-me no verso exemplar de “Estrela da Manhã”, ainda inédito, que o poeta leu para mim, ou melhor, que me jogou em cima, com aquele seu modo brusco de ler poesia.”

Nós, que já ouvimos as suas declamações pela Rádio MEC, sabemos desse modo brusco do Manuel Bandeira recitar. Mas vamos prosseguir com as palavras do Vinícius de Moraes:

-“Não acho a minha poesia parecida com a do Bandeira. O que houve, por parte dele, foi uma influência vital, o oposto do que representava a Faculdade de Direito. Era um homem mais ligado à vida, ao cotidiano, que fazia uma poesia mais simples, se bem que formalmente admirável. Para mim, a grande dificuldade foi aceitar as palavras novas. Estava muito ligado às retumbantes, aquela antiga terminologia claudeliana, metafísica e bem soante. Aquela história de achar que estava com a graça pairando sobre mim, que era o “inquilino do sublime”, como dizia o Otto Lara Resende.”

-O André, citado como um dos quatro filhos do Otto Lara Resende, é o economista? Alberto

BM: Sim; quando ele era um menino de dez anos, Nélson Rodrigues escreveu uma crônica em que dizia que o Otto tinha um filho tão inteligente, chamado André, que seria presidente do Brasil. Como a inteligência dele era ainda maior do que o obsessivo amigo do Otto imaginava, André assessorou, direta ou indiretamente, três presidentes da República num ponto fundamental: o extermínio da hiperinflação. André Lara Resende não estava só, atuou com uma equipe de cabeças pensantes, ligando-se principalmente ao Pérsio Arida. O primeiro presidente assessorado foi o José Sarney que, colocando os conchavos políticos acima do racionalismo dos técnicos, jogou tudo por água abaixo. O segundo foi o Itamar Franco, que tinha um cacoete populista, porém o coordenador da equipe do André era o ministro da Fazenda Fernando Henrique Cardoso que, com o seu poder de convencimento junto ao presidente, impediu que o desastre se repetisse. Assim, o Plano Real não se transformou no Plano Cruzado II, ou Plano Cruzado III, se considerarmos nesse interregno o Plano Bresser. O terceiro presidente que ele assessorou?... É preciso falar?...

-O Biscoito Molhado número 2000 será dedicado às crianças pobres do Brasil? Raimundo

BM: Caro leitor, o número 2000 do nosso jornalzinho teimoso chegou às bancas em 2003, meses depois de ser empastelado. Com o rumoroso empastelamento, passamos a ver o teatro político com outros olhos: os colegas de trabalho perderam o papel de protagonistas e se tornaram, na melhor das hipóteses, coadjuvantes; com isso, iniciamos uma nova contagem partindo do zero, que, agora, se aproxima do número 2000.

Vez ou outra, aparecem um e outro saudosistas para dizer que, voltando às abordagens dos “bons tempos”, o Biscoito Molhado não teria só um dia de loucura por semana, o sabadoido, e sim cinco: a segunda-doida, a terça-doida, a quarta-doida, a quinta-doida e a sexta-doida. E mais: a minha casa não precisaria de sessões espíritas com escritores, pois o pessoal da Marinha Mercante não me deixaria sem assunto.

Esses mesmos saudosistas me remetem à ditadura militar, quando uma extensa turma, entre um copo e outro de chope, vibrava com os artistas da música popular brasileira, do teatro e do cinema que contestavam o regime militar. Os contestadores amargavam exílios, prisões e torturas, enquanto essa turma festiva não saía do papel de torcedores. Era cada um deles, para usar uma frase da sabedoria do PSD – partido fundado por Getúlio Vargas - “Tiradentes com o pescoço dos outros”.

Saudosistas do Biscoito Molhado da fase pré-empastelamento: sejam Tiradentes com os seus próprios pescoços.

-Por que o Biscoito Molhado não dedica uma edição aos artistas de rua, como o saxofonista da Estação Carioca do metrô? Vicente

BM: Falando do saxofonista da Estação Carioca do metrô, certa vez, de volta do trabalho, eu me aproximei dele, que tocava “A Pantera cor de rosa”, de Henry Mancini. À proporção que as notas musicais, que ele ia soprando chegavam aos meus ouvidos, a pantera se tornava vermelha, azul, amarela, roxa, lilás, etc... devido à sua desafinação.

Houve uma época que eu já sabia que às quatro e meia da tarde, a caminho de casa, as suas notas, em desacordo com a partitura musical, machucariam os meus ouvidos.

Um dia, porém, depois de almoçar com uma amiga num restaurante do Edifício Central, pisei a calçada da Avenida Rio Branco e ouvi um agradável som de saxofone. Segui a música, como os ratinhos melômanos da Flauta de Hamelin e me vi na entrada da Estação Carioca do metrô. E quem tocava?... Ele mesmo. Não foi difícil concluir que, àquela hora, a bebida ainda não danificava a embocadura do saxofonista.

Uns quatro anos atrás, o jornal Washington Post propôs ao violinista Joshua Bell, um dos mais conceituados do mundo, que dias antes se apresentara num teatro de Boston, por 100 dólares o preço médio, que tocasse no metrô da cidade de Washington, passando-se por uma pessoa que esmola. Ele aceitou o desafio e, vestindo calças jeans e uma camisa simples, foi para o metrô às 7 horas da manhã, horário de maior movimento. Tocou Bach, no seu Stradivarius (violino avaliado em 3,5 milhões de dólares), e mais de mil passageiros passaram por ele apressadamente. Três pessoas se detiveram e, em seguida, seguiram adiante. Apenas uma senhora o reconheceu de toda aquela gente.

Vi a notícia e, dias depois, li uma inspirada crônica da Martha Medeiros sobre o caso. Ela escreveu um parágrafo que merece a nossa reflexão.

-”Esta história do violinista demonstra que não estamos preparados para a beleza pura: é preciso um mínimo de conhecimento para valorizá-la. E demonstra também que temos sido treinados para gostar do que todo o mundo conhece. Se uma atriz é muito comentada, se uma peça é muito badalada, se uma música é muito tocada no rádio, estabelece-se que elas são um sucesso e ninguém questiona. São consumidas mais pela insistência do que pela competência, enquanto que competentes sem holofotes passam despercebidos.”

No parágrafo seguinte, Martha Medeiros revela que gostaria de ter circulado na estação do metrô de Washington no momento em que Joshua Bell tocou. Ela queria testar a sua “capacidade de encantamento sem estímulo prévio” e saber se pararia para ouvir ou passaria apressada.

A dúvida da Martha Medeiros também me tomou. Eu, que segundo os amigos que me veem na rua, não ando, corro, ficaria paralisado pela arte de um “artista de rua”? - perguntei-me também.

Agora, que o filme com a experiência artística de Joshua Bell no metrô chegou a mim pela internet, e eu vi, não tenho a menor dúvida: eu pararia.

Só não lhe daria esmola.

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