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O BISCOITO MOLHADO
Edição 3827 Data: 10 de agosto de 2011
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57ª VISITA DE ESCRITORES À MINHA CASA
Com a saída de Plínio Doyle, pude dedicar toda minha atenção ao recém-chegado.
- Otto Lara Resende, todos nós esperávamos que você chegasse aos noventa e quatro anos de idade, como seu pai e, no entanto, você nos deixou na flor dos setenta.
- Os números do papai eram difíceis de ser batidos; teve vinte filhos. Eu alcancei apenas o quarto filho, com muita dificuldade. Heleninha foi uma filha temporã.
- Recordo-me de sua frase: “Consegui ser avô da minha filha e pai da minha neta, eliminando a intermediação antipática do genro.”
- Eu me lembro perfeitamente do comentário do Paulo Francis, no Jornal Nacional, da TV Globo, sobre sua morte: “-Otto Lara Resende é mais um que morre de médico.”
- Faz sentido. Eu estava com problemas de coluna, mas morri de infecção hospitalar.
- A falta de cuidado nos impediu de desfrutar sua inteligência até a idade provecta.
- Qual!... Com cinquenta anos de idade, eu já dizia: “Ultimamente, passaram-se muitos anos.” Imagine se eu chegasse à casa dos noventa, como meu pai?! Diria então que, ultimamente, passaram-se muitos séculos.
- Você não vibrava de otimismo.
- Em certa ocasião, escrevi: “Não sou alegre. Sou triste e sofro muito. Dentro de mim há um porão cheio de ratos, baratas, aranhas, morcegos, escuro, melancolia, solidão.”
- Mas isso não o impediu de cultivar admiravelmente o humor por toda vida.
- O humor é a grande expressão, o melhor canal para dar notícia da vida, da nossa tragédia interior e exterior.
- Esta sua frase, quando completou sessenta anos, é um primor de humorismo: ”Hoje eu reúno duas condições que em princípio se excluem: sou careca e grisalho”.
Sorriu com a reminiscência, enquanto prossegui:
- Você não repetiu os números do estóico Antônio de Lara Resende, mas herdou uma parte acentuada de seu dom.
- Ele era professor, gramático e memorialista, além de pertencer à Tradicional Família Mineira. Fui professor, gramático e memorialista. Mas quanto à Tradicional Família Mineira...
Quando o rosto do Otto Lara Resende se crispou, eu o interrompi:
- Mais tarde, nós falaremos dessa parte desagradável... Seu pai tinha um colégio
- Como Guimarães Rosa foi o segundo colocado no concurso para o Itamaraty, que teve o Roberto Campos como nono colocado, não se pode negar que nosso colégio contribuiu com uma boa base didática.
- Como ficou o colégio depois que sua família foi para Belo Horizonte, em 1938?
- O Instituto Padre Machado também foi transferido para lá. Transcorridos alguns anos, o controle do colégio passou para os padres barnabitas.
- Havia jornalzinho, lá na escola?
- Sim, e eu era o gerente, eleito pelos meus colegas em eleição secreta. No entanto, o diretor era o Benone Guimarães, professor, que tinha a mão férrea.
- Este não foi eleito?...
- Foi imposto. Eu me desesperava, porque não reconhecia meus textos, naquilo que saía publicado no jornalzinho, tamanha a intromissão do professor.
- No entanto, a frase que você cunhou, já adulto, investe contra os revisores, não contra os copydesks.
- “O único erro humano que merece a pena de morte é o de revisão”. - citou.
- A sua vida intelectual começou e foi ao fim como jornalista, não foi?
- Sim, entrei primeiramente no jornalismo, depois, na literatura. Através do Professor Benone, tive contato com o Boletim de Ariel, uma revista literária, e com a obra de Agrippino Grieco, que me atraiu bastante. Resolvi, então, ser escritor.
- Quais foram mesmo as palavras que você escreveu sobre essa descoberta, Otto?
- “Eu estava convencido de que tinha vindo ao mundo para escrever, para lutar com as palavras, por mais vã que fosse essa luta.”
O Professor Benone lhe desvendou também o mundo machadiano.
- Eu me tornei um leitor voraz... Aos quatorze, quinze anos, talvez eu fosse mais amargo e pessimista do que Machado de Assis...
- Vem-me à mente uma crônica, Otto, de Nélson Rodrigues, que li quando adolescente. Ele falava de um amigo que dormia pensando em Machado de Assis, sonhava com Machado de Assis e seu primeiro pensamento, ao acordar, era Machado de Assis. Ao fazer a barba, tinha pendurado junto ao espelho, para ler, um texto de Machado de Assis. Fiquei intrigado, pois Nélson Rodrigues não revelou o nome desse amigo.
- Era eu, mas no estilo exagerado do Nélson.
- Voltando aos seus quatorze anos, ainda na escola...
- Aprendi Francês e já ensinava o idioma de Racine.
- Isso em 1936?!... – falei, enquanto somava quatorze com o ano de seu nascimento.
- Sim.
- Dois anos depois, você e sua família se mudam para Belo Horizonte.
- Eram os anos trinta, quando Minas Gerais ditava os rumos da cultura do Brasil. O Presidente Getúlio Vargas nomeou o mineiro Gustavo Capanema Ministro da Educação e Saúde. Este chamou Carlos Drummond de Andrade, de Itabira, para ser seu chefe de gabinete. O Ministro também se acercou do belo-horizontino Rodrigo Melo Franco de Andrade, que viria a criar o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico - IPHAN.
- E o quarteto do romance “Encontro Marcado” estava se formando, na mesma época? - perguntei.
- Eu já conhecia Paulo Mendes Campos, de São João del Rei.
- Apesar de a cultura mineira estar no poder, vocês faziam oposição ao governo?...
- Os jovens são, geralmente, contrários à ordem estabelecida. Eu e Hélio Pellegrino, com a ajuda financeira de Afrânio de Melo Franco, publicamos e distribuímos, clandestinamente, o jornal “Liberdade”, que fazia oposição ao Estado Novo. Contamos com outros jovens promissores na redação, como Autran Dourado, Sábato Magaldi...
- Era o Otto Lara Resende, impregnado de Brasil, longe daquele que foi trabalhar na Bélgica e retornou contra a vontade. - adiantei-me.
- A Europa é uma burrice aparelhada de museus. - citou uma das frases que o fez merecedor da fama de grande frasista.
- Apesar desse meu aforismo, voltei do continente europeu, realmente, contra minha vontade.
- Depois, entenderemos o porquê disso. Mas voltemos ao período da oposição feroz de vocês ao governo. Juscelino Kubitschek tinha sido nomeado prefeito de Belo Horizonte por Benedito Valadares, então Interventor
- De fato. O representante do satânico Estado Novo mais próximo dos nossos arroubos oposicionistas era Juscelino Kubitschek.
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