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terça-feira, 30 de agosto de 2011

2000 - passarinho que dorme com morcego(*)

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O BISCOITO MOLHADO

Edição 3830 Data: 14 de agosto de 2011

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59ª VISITA DOS ESCRITORES À MINHA CASA

-Carlos, eu me sinto muito feliz com o convite que você me fez para ajudá-lo a receber Mario Del Monaco, mas... - titubeou o Sérgio Fortes.

-Por favor, prossiga. - pedi.

-... Mas na sua casa só baixam os escritores e Mario Del Monaco, com a sua voz excepcional, foi tenor.

-Relaxe, Sérgio, ele escreveu um livro de recordações, “Minha Vida, Meus sucessos”, o que o qualifica a frequentar a nossa sessão espírita.

-Vindo de Copacabana para Del Castilho, vi o Dieckmann no Aterro do Flamengo.

-Por que não o trouxe para cá, Sérgio?

-Ele disse que não perderia de jeito algum o torneio de aeromodelismo que estava acontecendo lá, no Aterro.

De súbito, uma robusta voz chegou aos nossos ouvidos:

-Morir! tremenda cosa! ...

Carlos, é a voz do Mario Del Monaco cantando “A Força do Destino”, de Verdi, no registro de barítono.

Em segundos, o antigo ídolo da cena lírica se materializou à nossa frente.

-Desculpem-me por não usar o figurino do Otelo nesta visita. - disse ao acomodar-se na poltrona que lhe ofereci com um gesto.

-Soube que a sua pretensão era ser enterrado com a vestimenta do Otelo, de Verdi. - falei.

-Sim, o além seria para mim mais um palco a ser enfrentado e foi com essa ópera que alcancei os meus maiores triunfos.

-Eu sou filho do Paulo Fortes, que estudou canto com a legendária Gabriella Besanzoni Lage. Papai me contou que, certa vez, na casa dela, você deu uma espécie de recital, deixando-o quase surdo tamanho o seu vozeirão.

-Lembro-me bem, foi em 1947, quando bati o meu recorde, participando de 107 récitas em um ano. Quando estive no Rio de Janeiro, fui convidado, com toda companhia, pela Gabriella Besanzoni, que havia cantado “Carmem” com Caruso, e agora era esposa de um armador brasileiro, a ir à sua casa. Casa?!... Era uma mansão das mil e uma noites, onde jantamos. Os bifes eram colossais, o meu correspondia à ração de dois meses de carne, na Itália, durante a guerra.

-A riqueza do contralto italiano, que casou com Henrique Lage, o impressionou? - perguntei.

-Tinha joias inacreditáveis. Uma vez perdeu no palco um diamante de doze quilates e não se preocupou com o fato. Por outro lado, era compreensível: ela possuía dois brilhantes entre os maiores do mundo e conjuntos de esmeraldas e rubis que trocava todas as noites, de acordo com o espetáculo e com o vestido.

-Se você admirasse carros, como Giacomo Puccini, consideraria os Isotta-Fraschini dela como a sua maior joia, e eram três. - interveio o Sérgio Fortes.

-Del Monaco, não foi nessa récita de 1947 em que você cantou “O Guarani” de Carlos Gomes? - perguntei.

-Sim; imortalizaram-me com uma gigantesca fotografia, um pouco engraçada, vestido – ou melhor, despido – como entrei em cena - no museu do Teatro Municipal.

-Os tenores que personificam o Peri, desde o barbudo Villarini, da estreia da ópera, vestem um figurino mais próximo de um cacique asteca. Você, de tanga, virilha à mostra, mostrou o índio brasileiro de verdade.- comentei.

-Eu tinha 65 quilos, sem dobras de gordura pelo corpo...

-Quando estive em Buenos Aires, fiz questão de me hospedar no mesmo hotel em que você se acomodara décadas antes. Era uma maneira de eu demonstrar mais uma vez a minha admiração pela sua lendária voz. - reverenciou-o o Sérgio Fortes.

-A minha apresentação no Teatro Colón, em 1950, foi um divisor de águas para mim. Buenos Aires me acolheu como se eu fosse um de seus concidadãos retornando à pátria. Também ali, vieram-me convites, recepções e asados (churrascos) nas ricas casas de campo dos criadores de gado. A Argentina era, então, um país rico ainda não tocado pelos problemas sociais e econômicos destes últimos anos. O público de Buenos Aires era particularmente exigente. Era um pouco como cantar em Parma. Os espectadores gostavam do “matiz”, das nuanças na voz e não se deixavam enganar facilmente. Era diante desse público de gosto tão apurado que eu me arriscava com a ópera mais comprometedora do repertório de tenor, Otelo, de Verdi.

-Mas você não vinha estudando o papel?... Não ouviu todas as gravações dos seus antecessores?- indagou Sérgio Fortes.

-Sim, mas não se esqueça que os grandes Enrico Caruso e Beniamino Gigli evitaram, cuidadosamente, cantar essa ópera no palco.

-Mais recentemente, podemos citar o Luciano Pavarotti; cantou uma só vez o Otelo, e num estúdio de gravação. - lembrei.

-Bem, às vésperas da minha apresentação em Buenos Aires, fui tomado por uma crise de insegurança. Vinha-me sempre à mente o problema técnico que o Otelo exige. Uma ópera que, por instinto, sempre se enfrenta exigindo o máximo da voz; uma ópera que requer voz, voz e interpretação. O Otelo estava no limite das possibilidades humanas e disso eu tinha plena consciência. O meu físico, já fortalecido, mas ainda não na forma ideal, resistiria àquele compromisso? Pedi que convocassem o tenor substituto, mas o maestro Antonino Votto me convenceu a enfrentar as feras.

- Foi um triunfo a sua apresentação. - interveio o Sérgio Fortes.

-A crítica de Buenos Aires escreveu: “O Otelo de Del Monaco ficará escrito no Livro de Ouro do Teatro Colón”. No mês seguinte, voei para o Rio de Janeiro e repeti a façanha.

-Apesar do seu destaque em outras óperas, você ficou também conhecido como o maior Otelo de todos os tempos. (veio-me à mente Francesco Tamagno, o tenor que estreou no papel, em 1887, mas como Verdi ficou contrariado com a escolha, mantive o “maior”).

-Mas foi em Viena, em 1957, que bati um recorde: cantei Otelo com Herbert von Karajan no Staatsoper. A atração de tão grande maestro e de um elenco igualmente notável transformou a récita num acontecimento histórico. Diante das bilheterias, formaram-se filas intermináveis. Havia pessoas que tinham trazido colchonetes, mesas, tabuleiros de xadrez, baralhos, radinhos de pilha, comida e, naturalmente, garrafas de cerveja. Era um grande acampamento que durou dois dias. Dormiam, comiam, revezavam-se nas filas, para não perder a chance de assistir ao espetáculo. E que, no final, ficaram com a sensação de terem gastado bem seu tempo e dinheiro. Quando a cortina caiu sobre a última cena, fomos chamados cinquenta e sete vezes. Cantores, maestro, comprimários, algumas vezes toda a companhia, não faziam outra coisa senão aparecerem no palco, retirarem-se e serem obrigados a apresentar-se novamente. Um triunfo memorável e absoluto.

(*) O título completo é: “passarinho que dorme com morcego acorda de cabeça pra baixo”. Obviamente, o distribuidor do seu O BISCOITO MOLHADO se refere ao primeiro passarinho convidado pelo morcegão para uma sessão espírita. E mais não escrevo, para não ter que inventar outra história.

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