O BISCOITO MOLHADO
Edição 5323 SX
Data: 21 de agosto de 2017
FUNDADOR: CARLOS EDUARDO
NASCIMENTO - ANO: XXXIV
MEU
PRIMO, QUEM DIRIA...
Sou avesso a inovações. Mas sempre acabo por incorporar
algumas delas, com defasagem de tempo razoável. Entrei para a comunidade do
email alguns anos depois que a ferramenta estava amplamente difundida. Acho que
para isso contribuiu a implicância do meu amigo Artur da Távola. Ele detestava
a denominação email. Só usava "correio eletrônico". Em diversas
ocasiões flagrei o Artur fazendo referência ao "correio eletrônico",
deixando seus interlocutores com uma expressão levemente apalermada.
O tal do "WhatsApp" é uma conquista recente.
Operações bancárias através do computador, nem pensar. Quando muito, tomo
conhecimento do saldo de minha conta corrente pelo telefone. Mas não me
acostumo. Quando a moça do Itaú fornece a cifra com voz maviosa e precisão cirúrgica,
não há quem me convença de que aquilo não é coisa do diabo (*).
Recentemente dei outro passo gigantesco em termos de
conquista tecnológica. Recorri ao tal do "Uber". Dois motivos me
conduziram a esse destemor. Em primeiro lugar, meu destino, a Rua Vlaminck, no
Cachambi. Não tinha a menor ideia de como chegar lá. A considerar, também, a
tensão que envolvia a tarefa inesperada que me estava reservada.
Tudo começou com uma comunicação que recebi do Poder
Judiciário, atestando que eu era o único herdeiro de Carlos Afonso Fraga de
Castro, um primo distante que não encontrava há pelo menos cinquenta anos. Os
Fraga de Castro são originários de Campanha, Minas Gerais. A família produziu uma
penca de magistrados, desembargadores e, consta, até mesmo um Ministro do
Supremo Tribunal Federal. Carlos Afonso, alto, bonitão, elegantíssimo, fugiu à
regra, enveredando pela carreira diplomática. Pelas informações de minha avó
paterna, de quem era próximo, ocupou postos importantes na Europa, sem jamais
chegar a Embaixador, topo da carreira.
Desconfiado, pedi a meu advogado que me confirmasse os
termos do tal comunicado da justiça. Estava tudo certo. Carlos Afonso deixara
um testamento em que me destinava todos os seus bens. O que significava uma
casa gigantesca no Cachambi. Com tudo que se encontrava lá dentro.
A vida inteira Carlos Afonso morou nessa casa. O que não
totalizava muito tempo, porque passou boa parte de sua vida servindo no
exterior. Eu era muito garoto quando lá estive, uma única vez, acompanhando
minha avó, em visita ao primo distante. Devia ter dez ou doze anos de idade.
Fiquei impressionado com o incrível tamanho da casa, a profusão de quartos, o
terreno gigantesco que ocupava. Tinha mais jeito de sítio, de casa de campo.
Toda minha família morava na zona sul do Rio de Janeiro. Copacabana, Ipanema e
Leblon. Aquela visita ficou gravada na minha memória como uma grande aventura.
Aventura que quase terminou em desastre. Na ocasião, Carlos
Afonso, depois de um dia repleto de conversas e novidades, fez questão de
conduzir avó e neto de volta ao Leblon. Tirou da garagem seu carro novíssimo,
que acabara de comprar. Um Kaiser Manhattan, que identifiquei muitos anos
depois por conta de seu pára-brisas que lembrava o formato de um coração. Nunca
esqueci esse detalhe. O conforto extraordinário
do automóvel também ficou gravado em minha memória. Parecia um tapete voador.
O problema é que era noite e Carlos Afonso não enxergava
muito bem. A horas tantas pediu a minha avó a gentileza de lhe passar seus
óculos, que estavam guardados numa bolsa colocada sobre o banco traseiro do
belo automóvel. Havia mais de uma caixa de óculos. Minha avó fez um sorteio e
entregou ao primo o estojo que lhe pareceu mais conveniente. Daí para frente, a
viagem ficou realmente emocionante. Os óculos escolhidos eram da marca Ray-Ban,
que escureceram ainda mais a noite de Carlos Afonso. Somente no Leblon o
problema foi detectado. Rimos muito. De alívio, certamente.
Naquela excursão ao Cachambi o que mais me impressionou foi
o Nélio, o empregado faz-tudo de Carlos Afonso, responsável pela casa durante as
ausências prolongadas do patrão. Acostumado com as empregadas de minhas avós,
geralmente iletradas, tomei naquela ocasião um susto com o Nélio. O sujeito era
um poço de cultura! Discutia qualquer assunto e dava-se ao desplante de falar
inglês e francês. Ficou empolgadíssimo quando soube que eu estudava piano e era aluno do Instituto Nacional
de Música. Falou mais de uma hora sobre os pianistas de sua predileção: Rubinstein,
Horovitz, Brailowsky... Nélio anotou meu endereço no Leblon e durante alguns anos
trocamos correspondências. Que certamente cessaram por minha culpa.
Meu "Uber" chegou na Rua Vlaminck e me deixou na
porta de minha nova propriedade. Pensava no destino que poderia dar àquela casa
e àquele terreno. Diferentemente do que conheci nos anos 50, ela agora estava
cercada de prédios residenciais e de uma profusão de estabelecimentos
comerciais.
O portão estava aberto. Atravessei um jardim mal cuidado,
onde predominavam plantas e árvores praticamente mortas. Cheguei à varanda da
casa, sendo recebido por um velhinho empenado, cabeça branca, nenhuma
dificuldade para falar e concatenar suas ideias. Era o Nélio.
Fiz alguns cálculos apressados. O Kaiser de Carlos Afonso
era novo em folha no ano de 1952. Ou 1953. Quando morreu, meu primo estava à beira
de completar cem anos de idade. Faço contas. Nélio devia estar próximo dos noventa.
Ficou feliz ao me ver. Vangloriou-se de ser o responsável
pela minha herança, tendo chamado a atenção do patrão, desprovido de parentes,
para a minha existência. Falou pelos cotovelos sobre música, exatamente como
havia acontecido décadas atrás. Finalmente, concluiu que era hora de mostrar
minha herança. Parei de contar o número de quartos quando a conta chegou a
oito. Todos mobiliados à moda antiga. Dezenas de porta-retratos, estatuetas,
bibelôs. Banheiros, um monte deles. Cozinha, absolutamente decrépita. Destaque
apenas para o quarto de Carlos Afonso, cheio de imensos armários que abrigavam
elegantíssimas casacas, cartolas e ternos impecáveis, um testemunho de sua agitada
carreira diplomática.
A essa altura do "tour" eu já estava certo de que
havia me metido numa encrenca. Que destino dar àquela "tralha"? Em
que despesas iria incorrer na minha nova condição de latifundiário do Cachambi?
Nélio interrompeu minhas reflexões dizendo que era hora de
conhecer o que realmente interessava. Conduziu-me ao também gigantesco porão da
casa. Descemos uma pequena escada e adentramos um recinto comparável à caverna
de Ali Babá. Uma bagunça infernal. Móveis quebrados e uma inacreditável
quantidade de caixas absurdamente empoeiradas. Chamou minha atenção um grande
armário, semi-aberto, abarrotado de revólveres e pistolas. Nélio ignorou
completamente minha expressão de espanto. Acelerou o passo para me apresentar o
que definiu como o que de mais importante havia no porão. Uma área
cuidadosamente limpa, onde estavam expostos seis quadros lindíssimos. Obras de
arte de tirar o fôlego. Busquei identificar os pintores que haviam produzido
aquelas maravilhas. À beira de um colapso, encontrei as assinaturas conhecidas
de Matisse, Gustav Klimt, Lucas Cranach e Johannes Veermer. Com ajuda do Nélio,
inspecionei a parte de trás dos quadros, encontrando os títulos de algumas
obras. Fiz um esforço para guardar essa informação. Reproduções? Trabalho de um
competentíssimo falsário? Com o coração saindo pela boca, conclui que precisava
fazer uma pausa naquele festival de emoções. Disse ao Nélio que tinha um
compromisso inadiável, propondo-me a retornar no dia seguinte para completar
minha visita.
Novo "Uber", agora em direção ao Leblon. Não me
contive e pedi ao motorista para correr. Em casa, acordei o computador de mesa,
à custa de alguns safanões. Busquei no Google referências sobre os quadros
expostos no porão. Minhas desconfianças estavam confirmadas. Todos eram roubados.
Da Tate Gallery, de Londres, do Museu de Arte Moderna de Estocolmo, da National
Gallery e do Museu Poznam, da Polônia. Localidades, todas elas, em que Carlos
Afonso havia servido como diplomata. Roubos jamais esclarecidos, mistérios fartamente
mencionados no mercado de arte.
Impossível dormir à noite. Pior ainda aguardar, no dia
seguinte, a hora de partir rumo ao Cachambi, como combinado com o Nélio. Ele me
aguardava, segurando um envelope pardo. Fui logo dizendo:
- Nélio, aqueles quadros do porão...são roubados!
- É claro que sim!
- E quem é o responsável pelo roubo, Nélio?
- Ora, quem mais poderia ser? Carlos Afonso, o patrão!
Sentei-me, não conseguia mais permanecer em pé. Também
sentado, numa poltrona que caía aos pedaços, Nélio levou um bom tempo
contando-me uma história louca, mas certamente verdadeira. Carlos Afonso, ele
explicou, era uma peça importante na estrutura do Partido Comunista do Brasil.
Sempre dedicado ao sonho de implantar esse regime em nosso país. O ápice de sua
trajetória teria sido o Levante Antifascista da Aliança Nacional Libertadora,
em 1935. Percebendo minha expressão de dúvida, esclareceu que essa era a
denominação correta do movimento que ficou conhecido como "Intentona
Comunista", proposto pela facção legalista com o propósito de
ridicularizar os esforços daqueles que lutavam para tirar Getúlio Vargas do
poder.
Ainda medindo as palavras, Nélio, também ele envolvido nessa refrega, comentou
que seu patrão havia "expropriado" obras de arte com a finalidade de
financiar aquele projeto, certo de que o mesmo seria vitorioso. Carlos Afonso,
completou, era muito ligado a Harry Berger, o agente do Comintern que,
pressionado, apontou o local onde Luiz Carlos Prestes e Olga Benário
permaneceram abrigados ao final da Intentona, a cem metros dali, na Rua
Honório.
Não resisti e perguntei:
- E aquele monte de armas guardadas no porão?
Também eram destinadas ao movimento. Fomos esmagados pelas
forças do governo e o armamento está ali, sem uso, há mais de cinquenta anos. O
mesmo aconteceu com os quadros. O patrão chegou a cogitar destruí-los. Mas era
um homem culto, sensível. Não teve coragem para fazer isso.
Nélio não largava o envelope pardo. A horas tantas,
recomendou: "É importante você ler com atenção o que está aqui
dentro". Ao tempo em que me entregava o envelope, tirou do bolso um
pequeno vidro. Remédios certamente, pensei. Com rapidez que não pude prever,
ingeriu seu conteúdo. Estava morto, em questão de segundos.
Permaneci sentado, estarrecido, durante um bom tempo. Finalmente,
tomei coragem e abri o envelope. O conteúdo, uma carta, assinada por Carlos
Afonso. Falava de sua intenção de me poupar de explicações, certo de que eu não
entenderia suas motivações. Dizia gostar de mim e adorar minha avó. Pedia
desculpas por se ver forçado a me envolver em seus problemas. O último
parágrafo continha uma orientação sobre a maneira de me livrar da enrascada em
que estava metido. Em todos os aposentos da casa havia reservatórios de
gasolina estrategicamente dispostos. Um incêndio naquele madeirame velho,
carcomido, faria tudo desaparecer em questão de minutos. Esta seria, segundo
ele, uma solução "inteligente".
Dois quarteirões adiante peguei o "Uber", na Rua
Itamaracá. Olhei para trás. na direção da casa. As chamas já estavam altas.
(*) Soube-se mais tarde que o problema com o Itaú fora causado pela cifra muito baixa e não pelo Diabo. Problema que será contornado com a publicação do livro "O amigo capitalista do Fraga". Em breve, aqui.
O Editor
Pasma, perplexa, estupefata, atônita, amainada, acalmada e, ao final, dando "nó de gargalhadas".
ResponderExcluirConheci um Nélio no Cachambi, namorado de minha amiga Itaciara, filha de um músico. Família morava no Jacaré.
Em tempo: A expressão "nó de gargalhadas" aprendi por lá.
Morei algum tempo em Higienópolis.
Acabei de aprender como é bom viver devagarinho...
ResponderExcluir23 anos da morte de Raul Seixas e o Paulo Coelho vivo e produzindo, praticando esportes, saudável! Eu estava com 50 anos, tinha uma neta e me sentia mesmo uma vovó.
Comentando com Fernando Milfont deu uma vontade de passar dos noventa!
Como é bom ter um livro para aguardar a publicação!
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirPaulo Coelho Foi meu contemporâneo no Ato Inácio.Dois anos mais velho. Turma de 65. Tb foram alunos Atnaldo Jabor, Csca Diegues Nelson Motta, Sidney Miller Marcos e Paulo Sérgio Valle. N passado distante Vinicius de Moraes
ResponderExcluirAGUARDANDO o conserto do meu computador, amanhã
ResponderExcluirSe continuar tentando mandar mensagens pelo celular, vou sair do sério e incendiar mais ALGUMA coisa.
Você me deixou preocupada (tão!) que até excluí meu comentário!
ExcluirPor favor, fique longe de isqueiros, fósforos, não friccione pauzinhos. Galões de gasolina, nem pensar!
Uma ótima noite e até amanhã.
Prezada Elvira, as qualidades de escritor do autor não se estendem à datilografia. É só largá-lo sozinho e ele bota te no lugar de erre, exclui coisa que não lhe pertence e por aí vai. Trata-se de um incendiário de almas e faria bem o Paulo Coelho em levá-lo ao Caminho de São Thiago, ou Santo Inácio, sei lá, nunca fui bom em santos.
ExcluirBom dia???
ResponderExcluirBiscoito,
Quando a vida se me mostrou o lado avesso entrei em um estado de tristeza muito grande logo diagnosticado como depressão e rapidamente drogas lícitas e milagrosas foram receitadas. Não as usei, preferi trocar de médico que era um cardiologista e aguardar
as providências dos meus santos e da natureza.
O melhor remédio para mim foram os programas de humor. Assistia a todos, principalmente os noturnos. Rir antes de dormir cura até insônia. Ontem ri de chorar!
Gosto demais de estar aqui. Vocês fazem bem para a alma!
No Caminho de Santiago de Compostela meu tio deixou um par de muletas. Acredite!
Um fraterno abraço a todos.
Elvira
ResponderExcluirTodos os editores são intriguentos. Fui um excelente aluno no curso TED,de datilografia. Não obtive o diploma porque uma amiga, que sentava em frente, passava uma hora de aula murmurando: Essa TED é um tédio, Essa TED e UM TÉDIO...
FOI O QUE ME FEZ DESISTIR ANTES ĎE OBTER MEU DOUTORADO EM DATILOGRAFIA. QUE PTEVALECA A VERDADE !!!
Elvira
ResponderExcluirTodos os editores são intriguentos. Fui um excelente aluno no curso TED,de datilografia. Não obtive o diploma porque uma amiga, que sentava em frente, passava uma hora de aula murmurando: Essa TED é um tédio, Essa TED e UM TÉDIO...
FOI O QUE ME FEZ DESISTIR ANTES ĎE OBTER MEU DOUTORADO EM DATILOGRAFIA. QUE PTEVALECA A VERDADE !!!
A proposito; sai da TED ANTES de aprender a excluir comentários repetidos
ResponderExcluirSergio,
ResponderExcluirCreio que canários não podem excluir. Eu, como Sra Pardal, apenas preciso apertar a opção Excluir e vapt, vupt, some tudo!
Flexão do verbo ser é fogo. Acho que vou excluir mais um.... rs
E de saber operar a tecla de caixa alta. Devia estar paquerando a Tédia e nem percebeu que o curso acabou.
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
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