O BISCOITO MOLHADO
Edição 5321 SX
Data: 13 de agosto de 2017
FUNDADOR: CARLOS EDUARDO
NASCIMENTO - ANO: XXXIV
MARIA
CALLAS VIVE
O PEC - Programa de Erradicação da Cultura é uma das poucas
iniciativas que prosperam em meio à crise que se abate sobre o Brasil nos dias
de hoje.
A programação de nossos teatros oficiais é cada vez mais
pobre, quando não está suspensa. Seus corpos estáveis, orquestras, coros e
corpos de baile, têm seus salários atrasados. Algumas orquestras simplesmente
deixam de existir. Esse parece ser o destino da gloriosa Orquestra Sinfônica
Brasileira, sem programação para o ano de 2017. Ela demitiu os funcionários de
sua área administrativa e não paga salários de seus músicos há exatos nove
meses.
Registre-se que o Programa de Erradicação da Cultura tem
objetivos consistentes e de longo prazo. Alguns maledicentes podem alardear que
o PEC não passa de "fogo de palha". Mas não é verdade. O PEC veio
para ficar. As indicações de nomes estapafúrdios para ocupar importantes cargos
de direção em instituições culturais deixam clara a consistência do projeto.
Esse desabafo tem a ver com a proposta inicial dessa
crônica, a de comentar a extraordinária trajetória do soprano Maria Callas. O
primeiro item de nossa pauta é a rivalidade que incendiou os palcos de ópera
nas décadas de 50 e 60 do século passado, envolvendo Callas e Renata Tebaldi,
outra extraordinária artista.
Muita gente assegura que esse antagonismo teria começado no
Brasil, no ano de 1951, quando as duas divas andaram dividindo récitas de
"Traviata" e de "Tosca" nas temporadas internacionais de
São Paulo e do Rio de Janeiro. Não há como negar que as escalações de Callas e
Tebaldi nesses espetáculos foram cientificamente planejadas de forma a ensejar
comparações entre as duas cantoras, o que foi feito por "Callasianos"
e "Tebaldianos" histericamente distribuídos pelas dependências do
Municipal do Rio e do Municipal de São Paulo. Essa disputa chegou a um clímax
por ocasião de um concerto de gala promovido no Rio de Janeiro, envolvendo os grandes
astros estrangeiros que participavam da temporada internacional.
Na ocasião ficou estabelecido que nenhum cantor poderia
"bisar" sua apresentação, por mais extraordinária que fosse a ovação
recebida. Todos seguiram à risca essa recomendação. Com uma única exceção:
Renata Tebaldi. Todos sabiam que ela era idolatrada pelo promotor da temporada,
o deputado Edmundo Barreto Pinto. Callas enlouqueceu. E transferiu seu
inconformismo para as temporadas subsequentes,
promovidas especialmente na Europa e nos Estados Unidos.
Para confirmar essas informações, consultei "Memórias e
Glórias de um Teatro - Sessenta Anos de História do Teatro Municipal do Rio de
Janeiro", livro precioso escrito por Edgard de Brito Chaves Jr.. Não me
fez bem ler o que aconteceu no Municipal do Rio no ano de 1951. Quinze
espetáculos de ópera foram promovidos na Temporada Lírica Nacional. Trinta e
três compuseram a Temporada Lírica Internacional, que contou com a participação
de Beniamino Gigli, Maria Callas, Renata Tebaldi, Giuseppe Di Stefano, Fedora
Barbieri, Elena Nicolai, Tito Gobbi, Boris Christoff, Giulio Neri e Gianni
Poggi. Vinte e seis concertos foram promovidos pela Orquestra Sinfônica
Brasileira. Sete pela Orquestra do Teatro Municipal. Aos quais devemos somar
dezenas de apresentações do corpo de baile. O que dizer do Teatro Municipal nos
dias de hoje?
Dito isso, voltamos a falar de Maria Callas. Sobre ela vamos
colher o testemunho de seu colega Paulo Fortes, sabidamente um crítico severo:
"Sua voz não era especialmente bonita, mas você divide o teatro lírico em
duas fases. Antes e depois de Callas. Às vezes, quando cantava, parecia ter um
pente fino na boca. Mas era sensacional. Fiz, em 1951, um ensaio de
"Traviata" com ela. Eram dois elencos e eu estava no elenco da Tebaldi
que, por sua vez, tinha uma voz excepcional, lindíssima.
Mas Maria Callas tinha
um carisma incomparável. Terminado esse ensaio, em que o soprano cantara de
forma extraordinária, só faltando fazer chover, passo em frente ao seu camarim
e sou por ela chamado: "Sr. Fortes, o senhor me faria uma gentileza? Pedir
ao Maestro Ruberti para vir ao meu camarim. Preciso avisá-lo de que não posso
cantar amanhã..." Atônito, Paulo Fortes observa: "Mas Senhora, depois
de um ensaio soberbo como esse, como a senhora chegou a essa conclusão?"
Maria Callas, apontando para a garganta, comenta: "Os falsetes, Sr.
Fortes...me faltam os falsetes."
Aquele era o prenúncio do temperamento de exceção de uma
grande artista, que ao longo de sua carreira despertou ódios e paixões, levando
à loucura maestros, encenadores e dezenas de cantores que com ela
contracenaram.
Ela chegou ao Brasil em 1951, pouco tempo depois de colocar
a seus pés a plateia do Scala de Milão. O que fez reabilitando óperas que há
muito não eram encenadas, notadamente "Il Pirata", "Anna Bolena",
"I Puritani" e "Medea". Rapidamente alcançou a dimensão de
mito. E, como acontece habitualmente com os mitos, inúmeras informações sobre a
cantora permaneciam envoltas em controvérsias. A começar pelo seu verdadeiro
nome. Algumas variações são cogitadas. Desde Sophia Cecilia Kalos, até Anna
Maria Sophia Kalogoropoulou, nome que consta de sua certidão de batismo. É
certo que ela nasceu em Nova Iorque, no dia 2 de dezembro de 1923, filha de
imigrantes gregos que ali chegaram no mês de agosto anterior.
Quando seus pais se separaram, em 1937, sua mãe, Evangelia,
decidiu retornar à Grécia. No ano seguinte Callas começou a cursar o
Conservatório Nacional de Atenas. As controvérsias sobre sua carreira alcançam,
também, datas e locais de suas primeiras apresentações. Parece haver consenso
de que sua estreia profissional aconteceu na Grécia, no papel de Beatrice, da
ópera "Boccacio", de Franz Von Suppé.
Outras discussões acaloradas envolvem aqueles que se propõem
a determinar os períodos de apogeu e de declínio de sua carreira. Que foram
fortemente influenciados pelo temperamento extremado e reações inesperadas
assumidas pela cantora. O apogeu, é voz corrente, aconteceu na década de 50. A
divina dama, primadona absoluta, transformou o Scala de Milão no principal
palco de ópera do mundo. Callas era idolatrada, mas ao mesmo tempo odiada.
Sua fama não parava de crescer, ao tempo em que ela se
tornava cada vez mais imprevisível. Exigia cachês astronômicos e passou a
desprezar seus colegas. Depois de sete anos de trabalho com a estrela, tremendamente conturbados, Antonio Ghiringhelli, diretor geral do
teatro, deu-se por cansado. Em maio de 1958, depois de uma série de escândalos,
demitiu a cantora. Comentou: " Primadonas vão e vem. O Scala fica".
São desse período, também, dezenas de registros históricos
que a cantora fez para a importantíssima gravadora EMI, dirigida pelo famoso
executivo Walter Legge.
Sua estreia no Metropolitan Opera House somente aconteceria
em 28 de outubro de 1956. Coincidiu com uma terrível entrevista publicada pela
revista Time, em que Evangelia, mãe da cantora, a acusava de abandono e maus
tratos.
Na Ópera de Roma, em 2 de janeiro de 1958, ela se envolveu
em uma grande confusão. Depois de uma noitada por muitos testemunhada numa
boate da cidade, teve um desempenho abaixo da crítica numa apresentação da
"Norma", de Bellini. Estava presente Giovanni Gronchi, Presidente da
Itália. Terminado o primeiro ato, Maria Callas teve a péssima ideia de
abandonar a apresentação, fugindo por uma saída de serviço. Sua atitude foi
apontada pelos jornais como uma afronta à maior autoridade do país.
Em setembro de 1959 Callas anunciou o fim de seu casamento
com Giovanni Battista Meneghini, trinta anos mais velho, que perdurava desde
1949. Ela começou um romance de nove anos com o milionário Aristóteles Onassis,
que não resultou em casamento e terminou nove anos depois, quando Onassis
assumiu seu relacionamento com Jackie Kennedy, viúva do Presidente John
Kennedy. Esse episódio, juntamente com um regime de emagrecimento severo a que
a cantora se submeteu, resultando numa perda de peso da ordem de trinta quilos,
foi apontado como fator importante para o declínio de sua carreira.
Declínio marcado por terríveis eventos. Como aquele ocorrido
no Scala de Milão em dezembro de 1961, quando era apresentada
"Medea", de Cherubini. Callas estava, mais uma vez, muito mal de voz.
E a plateia não escondia seu incômodo. Ela percebe uma vaia iminente. Vira-se
para Jasão, interpretado pelo tenor Jon Vickers, e exclama "Crudel!"
Um segundo "Crudel !" é, desta vez, dirigido à plateia. Acompanhado
da frase "Ho dato tutto a te!" (Eu dei tudo a vocês!). Maria Callas
foi delirantemente aplaudida no final da ópera.
Maio de 1965. No papel de Norma ela contracena com Adalgisa,
interpretada pela extraordinária e então muito jovem Fiorenza Cossotto. Callas
está enfraquecida e exausta. Quase não se ouve sua voz. Cossotto transforma o
dueto entre as duas em autêntico duelo. Prolonga suas frases, sabendo que Maria
Callas não tem condições de acompanhá-la. Ao final da ópera, com o fechamento
da cortina, Callas desmaia em pleno palco.
Para finalizar, talvez a pior ideia que teve em sua
carreira: acompanhada pelo tenor Giuseppe Di Stefano, empreender uma excursão
por vários palcos da Europa e do Japão. Fazia oito anos que Maria Callas não
pisava um palco de ópera. Ambos ostentavam precaríssimas condições vocais, o que
se percebeu desde o primeiro concerto, promovido em Hamburgo. Para agravar a
situação, eles eram acompanhados ao piano por Ivor Newton, que tinha mais de
oitenta anos de idade e falava o tempo todo sobre sua morte iminente, que
coincidiria, segundo ele, com um super agudo emitido pela Callas. Certo de que
isso aconteceria, Ivor solicitou de um assistente de palco que estivesse a
postos para arrastar seu corpo até os camarins do teatro, sem que ninguém da
plateia percebesse. Não podia dar certo...
O último concerto dessa fracassada excursão aconteceu em
Sapporo, no Japão, no dia 11 de novembro de 1974. Sapporo foi o último lugar do
planeta a ouvir a voz de Maria Callas. Ela morreu em Paris, no dia 16 de
setembro de 1977.
No ano de 2006 a importante revista Opera News registrou:
"Quase trinta anos depois de sua morte, ela ainda é a definição de uma
diva como artista e uma das cantoras que ainda vende mais discos".
Sergio,
ResponderExcluirNão casar com Maria Callas e casar com com Jackie Kennedy, que para tanto foi obrigada a assinar um contrato, cujas normas extrapolaram qualquer tipo de bom senso, deixa bem claro que ganhar dinheiro não significa necessariamente ter inteligência, talvez, sorte e esperteza.
Passei, talvez influenciada pelas suas crônicas, meu final de semana ouvindo as Ave Marias. A que amo de paixão é a de Gounod, depois, ouvi a de Schubert, Somma. No meu pequeno entender Gounod e Schubert ofertaram à Maria suas melhores composições. É difícil ouvir sem se emocionar profundamente.
Como música de fundo para esta página estou ouvindo Casta Diva com Callas, também lindíssima.
Pouco entendo de técnicas, mas creio que reconheço a beleza quando com ela me deparo.
Amo Caruso com Lúcio Dalla, amei Richard Clayderman e Kenny G.
(Também gosto do Ivanildo e seu sax rs.)
Sem assistir Globo News estou fazendo uma "musicoterapia" para me desintoxicar da grande, imensa quantidade de sabotagem feita com o meu Brasil, "tão grande amado". Quem poderia acreditar no desmonte de uma Orquestra Sinfônica? Para quem já teve Projeto Aquarius com toda sofisticação no lago da Quinta da Boa Vista que foi esvaziado e iluminado para que o povo pudesse apreciar o ballet D. Quixote?
Saudade de você meu Brasil.
Como Setfan Zweig,como Paulo Fortes e minha mãe, também acreditei nele.
Citei L Dalla , R Clayderman e Kenny G pois havia bastante estranhamento com relação a eles. Mas eu encontrava neles muita emoção.
ResponderExcluirOcupei durante cinco anos o cargo de Diretor Executivo da Orquestra Sinfônica Brasileira e vi barbaridades sendo cometidas. Convivi com gente despreparada que repetia sem parar que dois mais dois são cinco e três vezes nove soma trinta e um. Em comum, revelavam uma incrível disposição de fazer fortuna. Não podia dar certo e o resultado dessa desfaçatez é colhido agora.Nos mais diversos campos da cultura estamos condenados a conviver com uma mediocridade assustadora. O padrão é ditado pelo canal Multishow, da NET. Queria ser rico para sempre arremessar um sapato em direção à televisão, quando é apresentado um tal de "Música Boa ao Vivo".
ResponderExcluirSchubert, Gounod ? Eles não tem a menor ideia de quem se trata. Vamos continuar lutando, Elvira, mas, reconheçamos, é uma briga inglória.
Que posso eu na minha simplicidade oferecer a não ser a minha experiência de 37 anos de trabalho e os meus anteriores 12 anos de convivência com as freiras "formiguinhas" do meu colégio. Como você elas também lutavam. Contra a fome, dividindo sua ração com diversos orfanatos, inclusive oferecendo matrículas às crianças dos mesmos, como voluntárias no Hospital do Câncer, como orientadoras iniciando jovens no conhecimento da cultura e aulas tao maravilhosas, que para mim se tornaram inesquecíveis, incluindo canto orfeônico. Ano letivo encerrado com exposições dos trabalhos realizados e uma pecinha de teatro.
ResponderExcluirVocê usou uma palavra mediocridade, que vem de médio, mediano. Precisamos mudar o nosso medíocre. Pensei em usar o que aprendi, na minha aposentadoria. Tem uma creche aqui perto. Infelizmente o voluntariado agora exige tanta burocracia que o torna quase impossível. Você acredita que pessoas com boa situação financeira solicitavam vínculo empregatício no final de anos de trabalho? Essa é a nossa média de cidadania. A mediocridade.
Problemas urgentes e pessoais me afastaram de todos os meus sonhos. Esmoreci. Não esmoreça. O próprio Blog já executa um ótimo serviço. Use a juventude, não deixe nada para a velhice, surpresas acontecem demais nela.
Procuro orientar minhas netas como fui orientada, sem que elas percebam. Faço com elas o trabalho que as freiras e minha família fizeram na minha vida.
Conhecer o problema e modificar o núcleo em que vive, por menor que seja a atuação é um grande diferencial e não precisa do sapato. rs