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segunda-feira, 3 de novembro de 2014

2727 - copos vazios


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O BISCOITO MOLHADO

Edição 4977                                 Data: 31 de  outubro de 2014

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SABADOIDO SEM BRIGA POLÍTICA

PARTE II

 

-Do que vocês estavam falando? - expressou o Claudio curiosidade, quando trouxe os copos de bebida.

-Dos dentes podres da Josefina Bonaparte, porque, desde criança, na Martinica, ela consumia muito açúcar.

-O açúcar é ótimo para apodrecer os dentes. - limitou-se a dizer.

-Há um programa no Canal Escola chamado “Deu a Louca na História”, inspirado no Monty Python. Num desses programas, um sujeito maluco encontra o esqueleto de um saxão do século XI, por aí, e diz que a dentição dele era perfeita, apareceu, então, uma placa na telinha da TV dizendo que era verdade, porque o consumo de açúcar do povo saxão era mínimo, só através das frutas, creio. - manifestei-me.

-Prefiro encarar a broca de um dentista a ficar sem uma coisa açucarada como uma caipirinha.

-Sei não, Claudiomiro. - mostrou-se o Luca dubitativo e prosseguiu:

-Quando me chamaram para participar da luta contra a ditadura militar, eu avisei logo: se me torturarem, eu entrego todo o mundo, pois não suporto a dor.

Meu irmão ria, e eu lhe disse que o Luca ultrapassou heroicamente barreiras que derrubam a maioria das pessoas. Com esse assunto, ocorreu ao Claudio um filme que ele vira nos anos 70.

-No “Maratona da Morte”, Laurence Olivier era um dentista, criminoso de guerra nazista que tortura o Dustin Hoffman com aquele motor para tratamento de canal...

-Sem anestesia?!... - colocou-se o Luca no lugar do torturado com a expressão de horror.

-Uma colega minha, que esteve em Portugal, ficou abismada com o número absurdo de portugueses de dentes estragados.

-Os dentistas de lá fizeram a maior guerra contra os dentistas brasileiros que foram trabalhar lá?! - lembrou meu irmão esse fato que ocupou as páginas dos jornais nos idos da década de 90, quando esses profissionais fugiam da nossa hiperinflação.

-Lá, em Portugal, antes de se praticar a odontologia, tem-se de se formar em medicina, por isso, o tratamento é mais caro para os habitantes de lá, por isso, eles rechaçaram os nossos dentistas.

-Por isso, eles têm os dentes podres, - completou o Luca as minhas palavras.

-O doutor Elói, do Manoel Bomfim, sofreu comigo. - ocorreu ao Claudio o dentista do colégio onde cursamos o primário.

-Claudiomiro, nada mais justo, você se vingou depois de sofrer na cadeira dele. - comentou o Luca com um sorriso.

-O motor dos dentistas, naquela época, mais parecia um furador de paredes.

-Não lembra, Claudiomiro. - rogou o Luca.

-Quando o doutor Elói perguntou, ao preencher a ficha do Claudio, o nome do nosso pai, ele respondeu, Amaury, goleiro do Botafogo, quase matando de vergonha a mamãe.

-O Botafogo não tinha um goleiro com esse nome, quando o do Fluminense era o Castilho?

-Isso, Luca, mas quem se tornou titular, campeão carioca de 1957, foi o Adalberto, um negão forte; depois dele, veio o Ernâni, que agarrara no Bangu.

-Carlinhos é lembrudo. - exaltou-me o Luca.

-Conheço mais os jogadores de tempos pretéritos do que os de hoje.

-Vocês tinham tratamento dentário no colégio interno da rua Ernâni Cardoso em Jacarepaguá? - indagou o Claudio.

-O Itamar, aquele beque truculento do Flamengo que saltou com os dois pés no peito do Ladeira, quando ele corria do Almir, na decisão do carioca de 1966... O Itamar que estudou com a gente, quando menino, no internato...

E arrematou com a piada:

-Ele extraía os nossos dentes a chuteiradas nas peladas do colégio.

-Escolas do curso fundamental com dentistas, hoje, é impensável. - retornou a seriedade àquela sessão do Sabadoido com a observação do Claudio.

-Havia médicos também no Visconde de Cairu da década de 60. Certa vez, senti dores abdominais, e meus colegas de classe me conduziram para o consultório do médico; ele não se encontrava no colégio. Para ser sincero, nunca vi médicos no meu curso ginasial.  Os médicos de lá eram como as bruxas do Dom Quixote: “Yo no creo, pero que las hay, las hay.”

-Já não vou ao dentista há um bom tempo. - manifestou-se o Luca.

-Acomodado, já fazia dois anos que eu fugia da doutora Flávia, que me catava para a limpeza dos tártaros. Eis que, menos de um mês atrás, caiu-me um inciso, um pivô...

-Carlinhos parecia a senadora Heloísa Helena. - gozou-me meu irmão.

-Meu tratamento é feito às segundas-feiras no cair da tarde. Voltando da Torre NorteShopping para casa, nessa última segunda-feira, o taxista disse para mim que os obreiros, nas cercanias da sede da Igreja Universal, vendem, em quiosques e barracas, “água milagrosa” para os fiéis, e o faturamento vai para o bispo Edir Macedo.

Meu irmão tomou a palavra.

-Ali, na Rua Capitão Sampaio, perto do posto de gasolina, há um galpão com garrafões dessa “água milagrosa” do chão até o teto.

-Eles exploram a ignorância do povo. - frisou o Luca.

-Se o Crivella entrar como governador do Rio de Janeiro, os evangélicos não largam mais o poder do nosso estado. Nada mais lucrativo do que explorar a ignorância do povão.

Fiz a observação acima, mas tentei logo de evitar que a nossa conversação descambasse para a política.

-Tem ouvido os programas do Rádio Memória sobre o Orlando Silva, Luca?

-Carlinhos, depois, vocês dizem que eu sou chiquista fanático, mas eu nunca disse que o Chico Buarque é o maior compositor popular brasileiro. Coloco o Tom Jobim acima dele. O Jonas Vieira, sim, não vê ninguém superior ao Orlando Silva. (*)

-O papai ouvia muito o Orlando Silva.

-Meu pai também, Claudiomiro. Depois da Bossa Nova, todo o mundo se meteu a cantar as próprias composições e a época áurea das grandes vozes recebeu um forte impacto, os cantores antigos, então... - parou o Luca nas reticências.

-Você Falou no Chico Buarque, meu pai, sem fanatismos, pois cultivava mais as óperas, considerava o Noel Rosa o maior compositor popular brasileiro. Além do talento inacreditável do Noel, havia o fator afetivo, pois ele, seis anos mais novo do que o Noel, viu-o algumas vezes, pois morou também, por um tempo, na Vila Isabel. Um belo dia, meu pai me disse que, pelas músicas que o Chico Buarque vinha compondo, não restava dúvida que ele era o novo Noel Rosa. Bem entendido: só os comparou no terreno musical.

-Os copos estão vazios, vou enchê-los. - ergueu-se, resoluto, da sua cadeira, o Claudio.

 

(*) Orlando Silva... Respeito os admiradores, mas logo depois do Homem-Calendário, eu mudo de estação.

 

 

 

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