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segunda-feira, 8 de setembro de 2014

2689 - Garoto


 

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O BISCOITO MOLHADO

Edição 4939                                     Data:  03  de  setembro de 2014

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138ª VISITA À MINHA CASA

 

-Aníbal Augusto Sardinha, a sua vida é tão marcantemente musical que você não foi bebê, já nasceu Garoto.

-Antes, eu era conhecido como Moleque do Banjo, mudei, depois para Garoto. Para ser mais preciso, Jaime Redondo , que me chamou para tocar na Rádio Cosmos, de São Paulo, me sugeriu esse nome artístico.

-Em que época foi isso?

-Em fins de 1934, eu tocava no “Conjunto Regional” liderado por Hudson Gaia. Eu contava com 19 anos de idade.

-Você era, de fato, um garoto.

-Moleque do Banjo ficou esquecido, mas o banjo, não.

-Você, que tocava praticamente todos os instrumentos de corda, não poderia ficar com o nome limitado a um só.

-Quando poucos me conheciam, participei, em São Paulo, de uma gravação com o Sílvio Caldas e outros artistas, como a Aracy de Almeida. Ele se assustou quando me viu com vários instrumentos. Toquei todos eles, cavaquinho, bandolim, guitarra havaiana, o ukelelê e violão tenor.

-Imagino o quanto ele ficou estupefato e os demais, maravilhados.

-Não me saí mal. - disse com modéstia.

-Você falou em violão tenor...

-Era um pouco menor que o violão comum, tinha apenas quatro cordas; a sua origem é americana, chamavam-no triolin. Lancei esse instrumento em São Paulo, ano 1933.  Tirávamos uma boa sonoridade dele.

-Você começou mesmo com o banjo?

-Com cinco anos de idade, eu pegava o violão do mano, o Batista, e tocava sozinho, de ouvido.

-Você pertencia a uma família de músicos, não é?

-Sou filho de casal português. Meu pai, Antônio Augusto Sardinha, tocava violão e guitarra portuguesa. Meu irmão mais velho, Batista, participava de um conjunto em que tocava banjo e outros instrumentos de corda. Ele me deu um banjo de presente.

-Ele, seu pai?...

-Não, meu irmão.

-E a sua aptidão musical deslanchou?

-Com quantos anos eu estava em 1926?... Onze. Com essa idade, eu já integrava o “Regional Irmãos Armani”.

-Foi quando o apelidaram de Moleque do Banjo?

-Isso. Passei, depois, para o “Conjunto dos Sócios”, que se apresentava em reuniões e festas.

-E as suas gravações discográficas, Garoto? Desculpe-me a precipitação; você mal completava quinze anos de idade para lançar discos.

-Mas gravei ainda assim. Fomos eu e o violonista Serelepe até o diretor artístico da Parlophon, o maestro Francisco Mignone.

-Caramba, ele foi um dos maiores compositores eruditos do Brasil.

Foi um atrevimento nosso, mas ele, depois de um teste, nos convidou para gravar.

E prosseguiu:

-Gravamos duas composições minhas num disco: “Bichinho de Queijo”, maxixe-choro; e “Driblando”, maxixe.

-Foi um duo de violão e banjo?

-Isso.

-Você começou a tocar de ouvido, mas adquiriu formação musical desde tenra idade?

-Sim, meu pai me vendo mais interessado nos instrumentos musicais do que por uma bola de futebol, contratou um professor para me dar aulas de violão, e outro, para aulas de violino.

-Também violino?...

-Eu era atraído pelo violino, saxofone, flauta, bandola, guitarra portuguesa, bandolim, cavaquinho, banjo...

-Garoto, reza a lenda que, na escola primária, o professor lhe perguntou qual foi o homem extraordinário que Deus enviou à terra, e você respondeu Ernesto Nazareth.

-Não é lenda; eu estava no mundo da música e confundi Jesus de Nazaré com Ernesto Nazareth.

-Você tirou zero?

-Ele me deu uma senhora bronca, mas o lamentável disso tudo é que o professor não sabia quem foi Ernesto Nazareth.

-Falando de novo daquela sua primeira gravação, a partir de então você conheceu muitos músicos?

-Alguns excelentes, como o Aimoré que, como eu, era desconhecido do público.

-Com ele e mais outro instrumentista, formaram um trio que se apresentava no salão nobre do Edifício Martinelli.

-Nós e mais o Petit.  Apesar de garoto, eu já era profissional. Participei da Rádio Gazeta, na época, antes, Rádio Educadora Paulista, toquei cavaquinho e bandolim no “Conjunto Regional”, substituindo o Zé Carioca.

-São Paulo já estava pequena para o seu talento.

-Viajei para o Rio Grande do Sul, Paraná... Não é verdade que acompanhei Carlos Gardel em alguns tangos que ele cantou como apregoaram.

-E quando você se estabeleceu na Capital Federal?

-Sílvio Caldas me convidou, juntamente com o Aimoré, para tocar no Rio de Janeiro.  Estreei na Rádio Mayrink Veiga, mas voltei a São Paulo por problemas de saúde. Dois anos depois, desfiz a dupla com Aimoré, casei-me e vim para o Rio de Janeiro, mas não definitivamente.

-Foi quando conheceu Laurindo de Almeida?

-Toquei com ele. Depois, fui chamado pela Carmem Miranda para integrar o “Bando da Lua”.

-E foi para os Estados Unidos?

-fiquei por lá oito meses; retornei com a ideia de criar o conjunto “Seus Garotos”, e os componentes foram Poli, Valdemar Reis, Almeida e Russo do Pandeiro.

-Mas como foi a sua experiência com a Carmem Miranda, Garoto?

-Participei com ela do filme da Fox, de 1940, “Serenata Tropical”. Nós nos apresentamos na Casa Branca para o presidente Roosevelt depois.

-Bem, de volta ao Rio, fixou-se, então, definitivamente?

-Levaram-me para a Rádio Nacional. Com o “Seus Garotos” desfeito, fiquei nessa emissora onde fiz vários programas com a Carolina Cardoso de Menezes, gravamos seis discos de 78 rpm. Fiz também um duo com o Zé Menezes no programa “Nada Além de Dois Minutos”, do Paulo Roberto, também nos programas “Ao Som da Viola” e “Um Milhão de Melodias”, e gravamos juntos muitos discos.

-E o “Trio Surdina”?

-Veio logo depois; éramos eu, Fafá Lemos e Chiquinho do Acordeon. Foram 10 LPs.

-As gravações eram no estúdio da Rádio Nacional?

-De fato; havia lá grandes nomes como o maestro Radamés Gnattali.

-Você tocou, no Teatro Municipal, com o Eleazar de Carvalho como regente?

-Toquei o Concerto para Violão e Orquestra nº 2 do Radamés Gnattali, a mim dedicado. O maestro Eleazar de Carvalho se sentiu constrangido, tinha preconceitos com o violão.

-Se Villa Lobos também compôs um concerto para violão e orquestra... - argumentei.

-É a vida... - conformou-se.

-Você, nesses anos, alcançou estrondoso sucesso com a sua música e do Chiquinho do Acordeon “São Paulo Quatrocentão”; 700 mil cópias vendida, e ainda gravou pela Odeon a valsa de autoria do Canhoto, “Abismo de Rosas”.

-Ao mesmo tempo em que eu tocava não deixava de estudar.

-Sendo um multiinstrumentista, você tinha de estar sempre com a música na sua vida.

Depois de uma pausa, prossegui:

-Nesse período, compôs “Gente Humilde” e “Duas Contas”.

-”Duas Contas” eu também escrevi a letra, sem rimas, é verdade.

-E precisava, Garoto?

-Eu não me arriscava muito com as letras, eu era, essencialmente, músico.

-Digamos, Garoto, que você escrevia poesia com notas musicais.

E prossegui:

-Estudiosos afirmam que você fez a ponte de harmonização jazzística para o violão brasileiro, antecipando-se à Bossa Nova. E que a gravação de “Falsete” de Johnny Alf, ele no piano, você no violão e Vidal no contrabaixo,  abriu o caminho para a Bossa Nova.

-Johnny Alf era um talento que despontava. - salientou.

-Os duelos de instrumentos entre você e Johnny Alf, permeados por contrapontos são estudados até hoje.

-Na época, gravamos também “De cigarro em cigarro”, do Luís Bonfá.

-E Tom Jobim, Garoto?

-Toquei com ele no Clube do Cinema. Éramos dois garotos. Pena que morri inesperadamente em 1955; nós dois faríamos grandes coisas juntos.

-Ele compôs um choro para reverenciá-lo “Garoto”.

-É hora de partir. - anunciou.

E partiu com uma suave despedida.

 

 

 

 

 

 

 

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