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quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

2538 - por quem o Biscoito assa?



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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4338                            Data: 30 de dezembro  de 2013
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123ª VISITA À MINHA CASA

-Não vejo por aqui uma pele de leopardo, a cabeça de uma gazela empalhada, figuras entalhadas de leão, rinoceronte, zebras, javalis, nem mesmo publicações sobre touradas.
Ele surgiu à minha frente, na minha casa, observando tudo em volta.
-Hemingway, a vida de muitos aventureiros foi uma calmaria se comparada com a sua, imagine a minha.
-Pois Malcolm Cowley, quando foi me entrevistar na minha casa no subúrbio de São Francisco de Paola, em Havana, encontrou essas coisas que citei...
Fez uma pausa para obter mais efeito:
-... Lá no meu quarto de escrever e dormir, pois havia mais animais empalhados, ou não, espalhados pela casa.
-Você viveu um período em Cuba antes da revolução castrista; Cuba das mansões que agora são moquiços.
-Os guerrilheiros tomaram o poder no primeiro dia de 1959; eu morri dois anos depois. Antes, no governo Fulgêncio Batista, os americanos mafiosos viajavam muito para lá, eu ia para escrever.
-Um lugar novo para você significava um novo livro.
-Mais ou menos isso.
-Já que roçamos na política... - sugeri meio titubeante que falássemos dela.
-Muitos dos chamados escritores politicamente engajados, mudam com frequência sua política. Isso é muito excitante para eles e para os seus comentários político-literários. Às vezes, eles têm até mesmo de reescrever seus pontos de vista políticos e fazê-lo depressa.
-Isso tem acontecido com sociólogos.
-Eu os entendo perfeitamente, não há rotas de fuga para eles na questão sociopolítica, mas, para o autor de romance, há saídas por todos os lados.
-Stendhal se expressou muito bem sobre essa questão.
À lembrança do grande escritor francês, ele o citou:
-”A política é uma pedra atada ao pescoço da literatura e que, em menos de seis meses, a submerge. A política, no meio dos interesses da imaginação, é um tiro no meio de um concerto.”
-Veja bem, não é uma crítica, mas assim que você apareceu, observou tudo.
-Se um escritor deixa de observar, está liquidado. - frisou.
-As suas influências, Hemingway?... Todos as têm, pois como disse John Donne: “nenhum homem é uma ilha.”
Hemingway sorriu e disse:
- Não sei se é uma provocação sua, pois John Donne não ficou só nestas palavras.
E sem nenhum esforço mnemônico, citou o poeta da Inglaterra do século XVI.
-”Nenhum homem é uma ilha isolada (...) a morte de qualquer homem diminui-me, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram, eles dobram por ti.”
-Não tive a intenção de relacionar o nome de um dos seus romances mais exitosos com o pensamento do poeta metafísico.
-O que eu fiz é uma prova, para mim, de quanto ele estava certo; nós não nos bastamos.
-Somos um mosaico ambulante.
Demonstrando que não estava com a pachorra de ouvir minha filosofia, retomou a palavra:
-Você me perguntou quais foram as minhas influências?
-Isso mesmo.
-Mark Twain, Flaubert, Stendhal, Bach, Turguenev, Kipling, Shakespeare, Virgílio, Dante, Mozart, Melville, Brueghel, Hieronymus Bosch, Maupassant, John Donne...
-Há pintores, músicos... - expressei a minha estranheza.
-Incluí pintores, eu comecei a fazê-lo porque aprendi tanto de pintores como de escritores.
-E os compositores?
-Aprende-se obviamente com eles harmonia e contraponto. Eu costumava tocar violoncelo. Minha mãe retirou-me da escola, durante um ano, com o objetivo que eu aprendesse harmonia e contraponto. Minha mãe tocava piano, minha irmã, viola. E mamãe queria que formássemos um conjunto de música de câmera, mas o som que eu arrancava do violoncelo matou todos os seus sonhos.
Enquanto ele sorria com essas reminiscências, eu não conseguia imaginar o escritor que simbolizou o machismo na literatura, velho e de barba branca, como violoncelista.
-Entre as suas influências, Marx e Keynes estão fora.
-Vade retro!-
-Hemingway, o primeiro contato meu com uma obra sua aconteceu quando, com nove anos de idade, a minha mãe me levou para uma sessão noturna do Cine Cachambi para assistir a “Adeus às Armas.”
-Não me fale o que o cinema fez com os meus romances; foi como mijar na cerveja do próprio pai.
Mas você deve ter embolsado uma boa bolada de dólares com isso. - pensei sem me manifestar.
-Muitos anos depois, li “Adeus às Armas”. Acredito que, como outras obras suas, assisti ao filme, primeiramente e depois as vi impressas em livros. Mas isso não foi intencional; para mim, as distribuidoras saíam na frente das editoras.
-Você tomou conhecimento do meu “A Farewell to Arms”, em 1957, mas o livro foi lançado em 1929.
-Com essa publicação, o mundo literário o reconheceu como um dos mais significativos escritores da nossa época.
-Meu primeiro livro, com poemas até, teve uma edição de trezentos exemplares. Depois, vieram contos, muitos contos, até eu ser reconhecido em 1929, ano do crash de Wall Street.
-Antes, você escreveu dois contos que seriam reavaliados pelos críticos como obras-primas.
-Ah,sim: “The Killers” e “The Undefeated”.
-Assisti, não no cinema, mas na televisão, ao filme “Os Assassinos”.
Ele franziu a testa, quando eu insisti com o cinema, mas eu estava entusiasmado demais para agradá-lo.
-Trata-se de um filme com Burt Lancaster, Ava Gardner, Edmund O' Brien. A estreia de Burt Lancaster no cinema, que treinou boxe durante dois meses como um campeão. A coisa foi tão realista, que foi rodada em um ringue de boxe com a presença de uma plateia de duas mil pessoas. E um lutador profissional trocou murros com Burt Lancaster.
-Não me lembro de ter visto essa fita. - disse-me com desdém.
-Lutas de pugilistas, touradas, caçadas, pescas em alto mar, todas as atividades que requeriam coragem, você vivenciava para, em seguida, transformá-las em palavras.
-Palavras escritas, fique bem assentado, pois não sou de falar do que escrevo. Quanto melhor o escritor, menos ele falará do que está escrevendo. Sou gregário, gosto de me reunir com as pessoas, mas para jogar cartas, beber, falar obscenidades e outras coisas sem muito valor. Isso tudo cessa quando me entrego ao trabalho. Quanto mais longe se vai no que escreve, tanto mais solitário se está.
E acrescentou:
-O telefone e as visitas são os destruidores do trabalho.
-Orson Welles conta, numa entrevista que concedeu no Hotel Lancaster, em Paris, que vocês eram muito amigos; que, num balé, para o qual suas mulheres os carregaram, você lhe confidenciou que preferia estar em casa escrevendo.
-E ele filmando. - acrescentou com uma gargalhada.
-Eu ... - Hemingway me fez um sinal de impaciência.
-Mas não falamos dos seus romances mais importantes.
-Tarde demais.
E partiu. 

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