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terça-feira, 21 de outubro de 2014

2718 - Modigliani


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O BISCOITO MOLHADO

Edição 4968                                 Data: 18 de  outubro de 2014

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191ª  CONVERSA COM OS TAXISTAS

 

O 162 é um dos taxistas que vejo trabalhando antes do nascer do dia, não perto do pôr do sol, estranhei, por isso, quando foi o seu táxi o que peguei na rua Domingo de Magalhães.

-Nesta hora?...

-Hoje, houve um problema, e tive de começar tarde.

Expressei outro estranhamento:

-Quando desço a Rua Van Gogh rumo à estação do metrô de Del Castilho, por volta das cinco e vinte, cinco e trinta da manhã...

-Eu sei, por várias vezes, eu vi o senhor passando. - cortou-me.

-O que houve com o ponto de táxi? ... Há alguns dias que não vejo um só carro de vocês lá.

-São os assaltantes; eles vêm de motocicleta e nos atacam.

-Assaltaram quem?

-O 009.

O 009 é o Gaguinho, já o identificaram os leitores de boa retentiva que acompanham as nossas conversas com os taxistas.

-O seu filho?!...

-Levaram o dinheiro e o celular dele.

-E quem mais foi assaltado?

-O 028, o 134...

Nunca surgiu a necessidade de o taxímetro do 028 rodar comigo, mas o 134 não é um taxista bissexto nestas páginas, pois deve suar na sua profissão umas dez horas por dia.

-O Bob Esponja?!...

-O Bob também foi assaltado. - confirmou.

Como ele se casou recentemente, já deve ter deletado da agenda do seu celular nomes e telefones de toda a mulherada que ele dizia ter  conquistado. -passou-me pela mente, como um relâmpago, esta hipótese impertinente.

-O cidadão acorda de madrugada para trazer o suado dinheirinho para casa, vêm uns vagabundos e se apossam de tudo. - indignei-me.

-Nosso ponto passou para a Rua Itamaracá, entre o posto de gasolina e a padaria, que abre às cinco da manhã; lá, é maior o movimento.

-Sim; e, às vezes, aparecem uns PM, saltando de uma viatura, para lanchar; ao que parece, pouco se importando se estão assaltando ou não nas redondezas.

-Rua Modigliani. - anunciou.

 

O taxista do dia subsequente foi o 101, um jovem que não chega aos 30 anos de idade. Eu só entrei no seu veículo uma vez e parecia que me achava num bólido da Fórmula 1. Cogitei, por isso, evitá-lo, fingindo que aguardava o ônibus para, depois de ele partir, atravessar a rua e chegar aos táxis, porém, no embalo em que eu vinha, só parei no meio deles e não houve escapatória para mim.

Dessa vez, o 101 dirigiu civilizadamente; talvez as reclamações de outros passageiros tenham abrandado a força do seu pé direito.

Como mal o conheço e ele seja, aparentemente, introspectivo, não puxei conversa.

Pelo seu bom comportamento, tirei a carteira da mochila e lhe paguei com dinheiro trocado, quatro notas de dois reais; seu rosto, por isso, se iluminou de contentamento.

 

Na quarta-feira, o taxista era o 017. É um tanto irritadiço, mas o conheço há alguns anos e sei que dá para prosear com ele.

-Eu soube que assaltaram os seus colegas na Rua Van Gogh.

-Roubaram de motocicleta a turma que começa mais cedo.

-Ali ficam o 070, o 151, o 115... foram também vítimas?

-Eu não estou ainda inteirado de tudo. - respondeu, dando mostras de que não queria se aprofundar no assunto.

-Na minha ida para a estação do metrô de Del Castilho, passo costumeiramente por eles.

-Cuidado, porque eles assaltam as pessoas que estão a pé.

-Sou cauteloso, já tomei as minhas providências. Antes de sair para o trabalho, eu coloco todos os meus documentos e cartões do Banco do Brasil e Santander numa meia, depois, eu a enfio na cueca e dou um laço na parte em que a zorbinha cobre um dos quadris.

-Não fica volumoso?

Não sou o homem-berinjela do programa humorístico, pensei em lhe responder, mas como ele não cultiva o bom humor, prossegui com seriedade.

-Não fica volume algum, e, além de não haver possibilidade de a meia cair pelo caminho, ela não me incomoda em nada.

E prossegui:

-Eu me inspirei naquele petista que foi preso com milhares de dólares na cueca, a diferença fundamental é que eu fujo dos ladrões e ele era um deles.

-E o que você faz com o dinheiro?... Não esconde também?...

-Não escondo; deixo na carteira umas 4 notas de 20 reais, no máximo, para carregarem caso o azar me faça topar com eles. O mais importante é não cair no estresse de quem tem de tirar segunda via de documentos e suspender cartões bancários.

-Isso é verdade. - concordou.

-O único problema é que, chegando ao trabalho, tenho de retirar a meia do esconderijo e, em seguida, sacar o que lá está para colocá-lo um a um no lugar que ocupam na minha carteira. 

-Modigliani. - anunciou.

 

No dia que se seguiu, a corrida foi no táxi do Botafoguense. Notei nele uma cava depressão, como escrevia o Nélson Rodrigues, não porque fora assaltado, pega no batente no horário vespertino, e sim por causa de mais uma derrota do Botafogo.

-Perder de 5 a 0 para o Santos?!... Nem no tempo do Pelé eles conseguiram esse placar. - não se conformava.

Perdeu sim, na final da Taça Brasil de 1963, poucos dias depois da vitória do alvinegro carioca por 3 a 1. Partidas essas que estão marcadas na minha memória por causa de uma aposta entre o Seu Dilmar (Santos) e o Tarzã (Botafogo roxo) na vila em que morei na Rua São Gabriel, mas isso é outra história para ser contada oportunamente.

-Eu não assisto a certames esportivos para sofrer, já foi tempo, por isso, larguei de lado programas com o Botafogo há algum tempo.

-Eu queria ser assim, digo que não vou ver o jogo do Botafogo, não resisto e, depois, vou dormir aborrecido. - lamentou.

-Eu vejo meu irmão, que é vascaíno, em casa; xinga jogadores e o técnico do seu clube o tempo todo. Já falai com ele: “Já superamos essa fase de paixão, temos de ver o futebol como lazer”.

-É incrível os gols que o Botafogo tem tomado. - remoeu a sua dor encruada.

-Os jogadores do nosso time não veem a cor do dinheiro há alguns meses, eu os vejo até com admiração.

-Admiração?!... reagiu com uma mescla de surpresa e discordância

-Admiração porque os vejo suando a camisa.

E fui além na minha argumentação:

-No meu trabalho, na época da hiperinflação, bastava o salário atrasar dois dias, que os meus colegas entravam em desespero. O telefone não parava de tocar, eram os agiotas que sabiam, melhor do que ninguém, os dias de pagamento dos funcionários públicos.

-A época da hiperinflação foi brava. - manifestou-se.

Certa vez, o Banco do Brasil depositou o nosso pagamento em agências erradas, e o pessoal foi à loucura atrás do seu minguado dinheirinho.

-Foi?

Sim, foi. Não lhe contei que, na época, o Biscoito Molhado, com a manchete, EM BUSCA DO SALÁRIO PERDIDO, se esgotou rapidamente nas bancas, porque já nos encontrávamos na Rua Modigliani.

-Vamos torcer para o nosso Fogão ganhar o próximo jogo. - disse-me enquanto eu saltava do seu táxi.

    

 

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